Portas, paredes e retratos

Autor: Rodnério Rosa

2º andar. Você empurra a porta. Nada. Já girou a chave, mas a porta não quer abrir. "Amanhã mando consertar esta merda." Usa o ombro e encontra o chão junto a garrafas da noite anterior. O calor que faz na rua dá a impressão que tem o epicentro em seu quarto. Roupas no chão. Louça na minúscula pia. O quarto é pequeno, mas veja, você tem sorte de ter um banheiro. Isso para você vomitar o monstro que apoderou-se de suas entranhas algumas noites atrás.
Deita. Tira do bolso uma foto e coloca ao lado do colchão no piso. É o retrato dela que você devora com o olhar noite após noite, e também é a foto que noite após noite você rasga, joga no lixo e amaldiçoa a existência da imagem e sempre com a certeza de que ela não devia ter terminado. Você acha que não merecia isso. Ela quis assim. Ela, que esguia nas decisões de sua própria vida, uma noite, em que a lua brilhava em efeito de romance e a brisa convidava às melosas juras de amor, mergulhou fundo em suas orbitas e disse o adeus. Quando foi isso? Setembro? Que maldito mês em que seus sonhos morreram em uma única palavra. E basta um só mau dia ou uma só má noite, um momento e uma palavra, uma única palavra e o controle perde-se na mão que acerta o macio do rosto. Rubro: a cor da palavra "adeus" nas faces dela. Passos pequenos, lentos...ela some no escuro da rua onde a lua teima em não iluminar, enquanto petrificado observa sumir o objeto que um dia achou seria seu por toda sua vida. Ela não olha para trás e suas lágrimas deslizam pela calçada. Quer falar, gritar, arrancar o nó do peito, mas tudo fica preso no profundo da garganta. Mas é só um mau dia, ou má noite, se preferir, mas você está só. Cambaleia enquanto caminha e chora, chora e chora...e então, o riso ecoa nas trevas e a gargalhada cobre a imensidão. Louco, você está ficando louco. É só isso, um pouco de loucura afogada no primeiro bar que encontra.
Madrugada. A porta do quarto não colabora. Porrada nela e abre. "Por Deus, juro que amanhã mando arrumar esta joça." Entra em seu quartinho. Entra no banheiro. Vomita. E depois mais uma vez desde que mudou para cá , tenta abrir a porra da janela que está emperrada. Nada. Você está bêbado, está calor demais e não há forças para outra investida contra o madeirame incólume. " De manhã quando eu tiver legal, abro essa janela fodida."
Manhã. "Merda de despertador" você pensa enquanto procura as roupas fedendo à fumo e bebida. " Atrasado de novo. O Carlos Valdir vai me botar na rua desta vez." Enfia a chave na porta e a desgraçada parece não querer abrir. "Mas quem fez essa fechadura de idiota?" "Abre filhadaputa!" Nova tentativa e um pé conseguem fazer seu corpo sair do quarto. "É o que faltava, uma porta cúmplice de janela." E sai, rindo de seu último pensamento. Sem tempo para café no bar, você corre, uma, duas, três quadras e o ônibus de sua linha sai alguns segundos antes de você alcança-lo. " há, não...parece coisa do sofrenildo. Tudo culpa daquela puta ingrata." Pára um táxi. Seus últimos trocados da semana terminam. Outra vez vai pedir grana emprestada aos colegas.
Carlos Valdir não chegou ainda. Os fofoqueiros de plantão dizem que está no escritório central dando esplicação da má utilização da última verba do laboratório. Verdade ou não você se sente contente. Senta em sua mesa e liga o computador, e antes que alguém olhe, acessa um arquivo escondido e imprime uma foto. Coloca no bolso. Pluga a internet e envia um e-mail carinhoso à ela. Pede grana emprestada. "Outra vez?" "Ô, Rodrigo, te pago no fim do mês." "Igual mês passado?" "há, qual é? Vai negar mixaria?" "Tá bom, mas se não pagar desta vez, depois não vai ter mais." "Pode deixar. Confia em mim. Valeu Rodrigão. "
O passar do dia é em câmera lenta, e todos os segundos de seu cérebro são só lembrando dela. Fim de tarde. Você sai. Seu primeiro impulso após cinco dias sem contato é ligar . Orelhão. Não funciona. Anda algumas quadras, outro orelhão. Liga à cobrar. Ninguém atende. As trevas descem dos céus e a luz de um bar é a porta de sua peregrinação. Entra. Cerveja. Uma, duas, três...seis...oito...não consegue mais contar. "Onde tem telefone?" "Nos fundos." Você liga. Usa o cartão. A secretária atende. Não é a voz dela. "...você ligou para...no momento estamos ocupados em guerra de corpos, após o bip...". Risadas e gemidos de sexo na ponta da linha. Você deixa o fone fora do gancho e o cartão no aparelho. Volta ao balcão. Pede outra cerveja, no som das caixas do bar, Nick Cave canta: "...Brother, my cup is empty, and i haven’t got a penny, for to buy no more whiskey, i have go to home..." Você ri, ri e ri e seu riso enche o lugar e ganha coro de outros risos etílicos e tão sós quanto o seu. A fumaça de cigarros dissipa-se no ar e contrariando o provérbio, não há fogo...apenas o congelar do calor humano no fundo de um copo de bebida.
A noite busca seu tempo e você sabe apenas que esta só. As ruas silenciosas são sua companhia. Você sente saudade de quando sua mãe embalava o berço e cuidava do filhinho. Mamãe não vai deixar ninguém machucar seu queridinho. Mamãe não vai deixar ninguém partir seu coração. Mamãe está aqui para protege-lo. "Mãe, o que fizeram comigo?" Lágrimas buscam seus olhos e foi apenas mais um mau dia, e é só isso. Só um mau dia.
Madrugada. Prédio. 2º andar. Porta emperrada. Cinco tentativas e um chute. Calor. Abrir janela. Nada. Sem forças. Banheiro. Vômito. Deita. Tira a foto do bolso. Chora. Rasga o retrato. Cansaço. Calor. Dorme.
Manhã. Despertador. Porta emperrada. "Amanhã mando consertar." Corrida para pegar o ônibus.
Mijada do Carlos Valdir pelo atraso. Liga o computador. Imprime foto. Envia o sexto e-mail sem resposta. Pede grana para o Rodrigo... não leva. Fim de tarde...

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