Solilóquio com o meu eu

Autor: Humberto Pinho da Silva

Contato: humbertopinhodasilva@gmail.com

Dos prazeres peculiares do avô Alberto, um, era viajar só, para o litoral paulista. Ia sozinho, sem mulher, sem filhos, sem netos e quase sem bagagem. Ficava na casinha pitoresca de Itanhaém: entre a praia dos Sonhos e a secular Pedra do Anchieta. Sentado à sombra refrescante do imponente alpendre ou na luxuriante vegetação do jardinzinho: lia, escrevia, reflectia e mantinha eruditos solilóquios. Não eram bem solilóquios, mas conversações, travadas animadamente com o outro eu. Era espiritista – chegou a ser director de jornal exotérico, – mas abandonara há muito as sessões espíritas. Asseverava que só personalidades fortes deviam assistir e participar; os outros correm sérios riscos de contraírem medos ou graves perturbações psicológicas. Nunca levou familiares ao Centro Espírita. Excepto uma neta. Nas interessantes conversas com o outro eu, não havia espíritos nem mensagens do Além. Eram diálogos em que cavaqueava com ele próprio, em voz baixa ou em pensamento.
Comentava o que estava a ler. Dialogava pareceres Criticava opiniões. Discorria sobre vários temas, que podiam ir da educação à violência no lar ou na via publica. Nessas palestras, no intimo sossego da casa de praia – que as filhas adquiriram., – passava, enlevado, horas sem fim. Ele próprio cozinhava. Quase sempre batatas cozidas com bacalhau. Prato que aprendera, na mocidade, com a mãe, em Portugal. Por vezes – segundo dizia, – se as conversas descambavam para a política e temas prosaicos. Logo as interrompia. O outro eu era condescendente. Aceitava sem discutir, sem contrariar… Desses curiosos colóquios saiam interessantes ideias e meditações de elevada espiritualidade. Certa tarde de Janeiro, na casa de Alto de Pinheiros, confessou-me à puridade: - Infelizmente não posso contar, a todos, o prazer que sinto nesses dias que passo sozinho. Não compreenderiam…Chamar-me-iam: doido. Mas é exercício salutar e enriquecedor… Sei que o é. Quantas vezes surpreendo-me a dialogar com o outro eu.
Sempre que acontece, fico a compreender melhor o que é a vida, e o porquê de muitas coisas… Só o isolamento e o silêncio podem dar esse sublime prazer.


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