Ruth

Nome da Escritora: Ruth Rocha

Como se fosse dinheiro

Todos os dias, Catapimba levava dinheiro para a escola para comprar o lanche.
Chegava no bar, comprava um sanduíche e pagava seu Lucas.
Mas seu Lucas nunca tinha troco:
– Ô, menino, leva uma bala que eu não tenho troco.
Um dia, Catapimba reclamou de seu Lucas:
– Seu Lucas, eu não quero bala, quero meu troco em dinheiro.
– Ora, menino, eu não tenho troco. Que é que eu posso fazer?
– Ah, eu não sei! Só sei que quero meu troco em dinheiro!
– Ora, bala é como se fosse dinheiro, menino! Ora essa…[…]
Aí, o Catapimba resolveu dar um jeito.
No dia seguinte, apareceu com um embrulhão debaixo do braço. Os colegas queriam saber o que era. Catapimba ria e respondia:
– Na hora do recreio vocês vão ver…
E, na hora do recreio, todo mundo viu.
Catapimba comprou o seu lanche. Na hora de pagar, abriu o embrulho. E tirou de dentro… uma galinha.
Botou a galinha em cima do balcão.
– Que é isso, menino? – perguntou seu Lucas.
– É para pagar o sanduíche, seu Lucas. Galinha é como se fosse dinheiro… O senhor pode me dar o troco, por favor?
Os meninos estavam esperando para ver o que seu Lucas ia fazer.
Seu Lucas ficou um tempão parado, pensando…
Aí, colocou umas moedas no balcão:
– Está aí seu troco, menino!
E pegou a galinha para acabar com a confusão.
No dia seguinte, todas as crianças apareceram com embrulhos debaixo do braço.
No recreio, todo mundo foi comprar lanche.
Na hora de pagar…
Teve gente que queria pagar com raquete de pingue pong, com papagaio de papel, com vidro de cola, com geléia de jabuticaba…
E, quando seu Lucas reclamava, a resposta era sempre a mesma:
– Ué, seu Lucas, é como se fosse dinheiro…

Formação/Outras Atividades Profissionais: Sociologa/Educadora

Marcelo, Marmelo, Martelo

As crianças, muitas vezes, nos falam coisas interessantes.
Mas é muito engraçado quando elas criam certas palavras.
Uma vez, a minha cunhada me contou que a filha, um dia, disse assim - quando começou a anoitecer.
- Mãe, já começou a escuriar...
Claro que, naquele momento, a minha sobrinha expressou o que ela entendia pelo contrário de clarear...
É incrível as comparações que as crianças fazem ao “criar” novas palavras e organizar os seus pensamentos.
Veja só a história do martelo,
quero dizer, do marmelo,
não, do Marcelo...

Ruth

A primavera da lagarta

_Grande comício na floresta! Bem no meio da clareira, debaixo da bananeira!
Dona formiga convocou a reunião. _Isso não pode continuar!
_Não pode não! Apoiava o camaleão.
_É um desaforo. A formiga gritava. _É um desaforo!
_É mesmo. O camaleão concordava.
A joaninha que vinha chegando naquele instante perguntava: Qual é o desaforo, hein?
_É um desaforo o que a lagarta faz!
_Come tudo o que é folha! Reclamava o Louva-a-deus.
_Não há comida que chegue!
A lagartixa não concordava: _Por isso não que as senhoras formigas também comem.
_È isso mesmo! Apoiou o camaleão que vivia mudando de opinião.
_É muito diferente, depois a lagarta é uma grande preguiçosa, vive lagarteando por aí.
_Vai ver que a lagartixa é parente da lagarta. Disse o camaleão que já tinha mudado de opinião.
_Parente não! Falou a lagartixa. _É só uma coincidência de nome!
_Então não se meta!
_Abaixo a lagarta! Disse o gafanhoto. _Vamos acabar com ela!
_Vamos sim! Gritou a libélula. Ela é muito feia!
O Senhor Caracol ainda quis fazer um discurso: _É, minhas senhoras e meus senhores, como é para o bem geral e para a felicidade nacional, em meu nome e em nome de todo mundo interessado, como diria o conselheiro Furtado, quero deixar consignado que está tudo errado. Mas como o caracol era muito enrolado, ninguém prestava atenção no coitado.
Já estavam todos se preparando para caçar a lagarta.
_Abaixo a feiúra! Gritava aranha como se ela fosse muito bonita.
_Morra comilona! Exclamava o Louva-a-deus como se ele não fosse comilão também.
_Vamos acabar com a preguiçosa! Berrava a cigarra esquecendo a sua fama de boa vida.
E lá se foram eles, cantando e marchando:
_Um, dois, feijão com arroz, três, quatro, feijão no prato.
_Um, dois, feijão com arroz, três, quatro, feijão no prato.
Mas, a primavera havia chegado, por toda a parte havia flores na floresta, até parecia festa. Os passarinhos cantavam e as borboletas, quantas borboletas de todas as cores, de todos os tamanhos borboletearam pela mata. E os caçadores procuravam pela lagarta:
_Um, dois, feijão com arroz, três, quatro, feijão no prato.
_Um, dois, feijão com arroz, três, quatro, feijão no prato.
E perguntavam para as borboletas que passavam:
_Vocês viram a lagarta que morava na amoreira? Aquela preguiçosa, comilona, horrorosa.
As borboletas riam, riam, iam passando e nem respondiam. Até que veio chegando uma linda borboleta.
_Estão procurando a lagarta da amoreira?
_Estamos sim. Aquela horrorosa, comilona.
E a borboleta bateu as asas e falou:
_Pois, sou eu.
_Não é possível! Não pode ser verdade! Você é linda!
E a borboleta sorrindo explicou:
_Toda lagarta tem seu dia de borboleta, é só esperar pela primavera.
_Não é possível, só acredito vendo!
_Venha ver! Isso acontece com todas as lagartas. Eu tenho uma irmã que está acabando de virar borboleta.
Todos correram para ver. E ficaram quietinhos espiando. E a lagarta foi se transformando, se transformando até que de dentro do casulo nasceu uma borboleta.
Os inimigos da lagarta ficaram admirados
_É um milagre!
_Bem que eu falei. Disse o camaleão que já tinha mudado de opinião.
E a borboleta falou: _É preciso ter paciência com as lagartas se quisermos conhecer as borboletas.

Data de Nascimento: 02/03/1931

Biografia

Ruth Rocha nasceu em 2 de março de 1931, em São Paulo. Segunda filha do doutor Álvaro e da dona Esther, ouviu da mãe as primeiras histórias, em geral anedotas de família. Depois foi a vez de Vovô Ioiô incendiar a cabeça da neta com os contos clássicos dos irmãos Grimm, de Hans Christian Andersen, de Charles Perrault, adaptados oralmente pelo avô baiano ao universo popular brasileiro. Mas foi a leitura de As reinações de Narizinho e Memórias de Emília, de Monteiro Lobato, que escancarou de vez as portas da literatura para a futura autora de Marcelo, marmelo, martelo.
Adolescente, Ruth descobriu a Biblioteca Circulante no centro da cidade Foi um deslumbramento. Seus autores preferidos eram Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Machado de Assis e Guimarães Rosa. Lembra que, aos 13 anos, escreveu um trabalho sobre A cidade e as serras, de Eça de Queirós, que ajudou a acentuar, e muito, sua paixão pelo universo ficcional.
Formada em Ciências Políticas e Sociais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, foi aluna do autor de Raízes do Brasil, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, com quem viajou, junto com outros estudantes, para Ouro Preto.
Na faculdade conheceu Eduardo Rocha (o “Rocha” da Ruth vem daí), com quem se casou. Viveram juntos por 56 anos, até o falecimento dele, em 2012. Tiveram uma filha, Mariana, inspiração para as primeiras criações da escritora.
Entre 1957 e 1972 foi orientadora educacional do Colégio Rio Branco. Nessa época começou a escrever sobre educação para a revista Cláudia. Sua visão moderna sobre o tema, bem como o estilo claro e próprio, chamaram a atenção de uma amiga, Sonia Robato, que dirigia a Recreio, revista voltada para o público infantil. Certo dia, Sonia fez um convite-desafio para Ruth: em tom de brincadeira, trancou a amiga numa sala, dizendo que só saísse de lá com uma história pronta. Assim nasceu Romeu e Julieta, a primeira de uma série de narrativas originais e divertidas, todas publicadas na Recreio, que mais tarde Ruth veio a dirigir.
A partir de 1973 trabalhou como editora e, em seguida, como coordenadora do departamento de publicações infanto-juvenis da editora Abril.
Palavras, muitas palavras, seu primeiro livro, saiu em 1976. Seu estilo direto, gracioso e coloquial, altamente expressivo e muito libertador, ajudou — juntamente com o trabalho de outros autores — a mudar para sempre a cara da literatura escrita para crianças no Brasil. Agora, os pequenos leitores eram tratados com respeito e inteligência, sem lições de moral nem chatices de qualquer espécie, numa relação de igual para igual, e nunca de cima para baixo. Além disso, em plena ditadura militar, a obra de Ruth ousava respirar liberdade e encorajava o leitor a enxergar a realidade, sem abrir mão da fantasia.
Depois vieram Marcelo, Marmelo, Martelo — seu best-seller e um dos maiores sucessos editoriais do país, com mais de setenta edições e vinte milhões de exemplares vendidos —, O reizinho mandão — incluído na “Lista de Honra” do prêmio internacional Hans Christian Anderson —, Nicolau tinha uma Ideia, Dois idiotas sentados cada qual no seu barril e Uma história de rabos presos, entre muitos outros.
Em mais de cinquenta anos dedicados à literatura, a escritora tem mais duzentos títulos publicados e já foi traduzida para vinte e cinco idiomas. Também assina a tradução de uma centena de títulos infanto-juvenis, adaptou a Ilíada e a Odisseia, de Homero, e é co-autora de livros didáticos, como Pessoinhas, parceria com Anna Flora, e da coleção O Homem e a Comunicação, parceria com Otávio Roth.
Defensora dos direitos das crianças, sua versão, também em parceria com Otávio Roth, para a Declaração Universal dos Direitos Humanos teve lançamento na sede da Organização das Nações Unidas em Nova York, em 1988.
Recebeu prêmios da Academia Brasileira de Letras, da Associação Paulista dos Críticos de Arte, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, além do prêmio Santista, da Fundação Bunge, o prêmio de Cultura da Fundação Conrad Wessel, a Comenda da Ordem do Mérito Cultural e oito prêmios Jabuti, da Câmera Brasileira de Letras.
A menina que um dia decidiu ler todos os livros hoje tem várias bibliotecas com seu nome — no interior de São Paulo, no Rio de Janeiro e em Brasília.
Em 2008, Ruth Rocha foi eleita membro da Academia Paulista de Letras.
Apostando todas as fichas na irreverência, na independência, na poesia e no bom humor, seus textos fazem com que as crianças questionem o mundo e a si mesmas e ensinam os adultos a ouvirem o que elas dizem ou estão tentando dizer. No fundo, o que seus livros revelam é o profundo respeito e o infinito amor de Ruth Rocha pela infância, isto é, pela vida em seu estado mais latente. Pois, como ela mesma diz num de seus belos poemas, “toda criança do mundo mora no meu coração”.

Local de Nascimento: São Paulo SP

Entrevista

Entrevista de Ruth Rocha: Tudo sobre Leitura
22 de março de 2010 - sescsp
A autora de clássicos da literatura infantil diz que a infância não é tão feliz como se pensa e que tem uma relação solidária com as crianças
Seu primeiro livro foi lançado em 1976, a partir daí seus personagens passaram a povoar o imaginário de milhares de crianças: a turma do Catapimba, o Reizinho Mandão, o famoso Marcelo, com seu marmelo e seu martelo, transmitiram sempre uma mensagem de esperança e amizade.
Representante de uma geração que inovou a literatura infantil, Ruth Rocha bebeu nas tradições de Monteiro Lobato e faz da modernidade do mestre influência cabal para seus textos.
A seguir, a escritora infantil mais vendida no país fala de sua obra, de sua vida e, claro, de suas crianças queridas.
O que a motivou a escrever para crianças? Como foi o início da sua carreira?
A minha carreira começou com a revista Recreio, na qual publiquei alguns textos a convite da editora Abril. Meus primeiros livros, publicados em 1976, foram todos escritos a partir de 1969 e alguns foram previamente editados pela revista. Naquele período, publiquei treze livros em menos de um ano. Eles eram vendidos em bancas e as tiragens eram muito grandes. Meu primeiro livro, Palavras, Muitas Palavras, saiu com 35 mil exemplares, e Marcelo, Martelo, Marmelo, 20 mil.
A linguagem usada na sua obra é muito peculiar. Como foi o processo de desenvolvimento?
Eu atribuo a linguagem que utilizo a dois fatores. Um deles é o meu avô, nordestino de nascimento. Quando criança, ele me contava muitas histórias da mesma maneira que os autores nordestinos, ou seja, de uma forma muito simples, informal, recheada de músicas, brincadeiras e piadas. O outro fator é que trabalhei quinze anos como orientadora educacional, período em que tive muito contato com crianças. A minha linguagem se prende a um sentimento muito forte de solidariedade por elas. Além disso, tenho para mim que embora as crianças passem por momentos de alegria, de riso e de graça, em outros elas sofrem injustiças, infelicidade, impotência, tristeza, castigos... Sinto que as crianças não são tão felizes como muitos pensam. Daí nasceu uma grande cumplicidade entre mim e elas. Nesse sentido, acredito que eu consiga falar com elas por meio dos meus livros. Na verdade, escrevo como quem está falando, como quem está contando histórias.
A partir do fim da década de 1960, os temas abordados pela literatura infantil tornaram-se contemporâneos. Os livros passaram a tratar, inclusive, de assuntos controversos, como problemas familiares e desigualdade social. Por que isso ocorreu?
Isso se explica porque grande parte dos escritores da minha geração é leitora de Monteiro Lobato e transporta para a obra aspectos dos quais ele já tratava. Assim, eu e outros autores encaramos e transmitimos temas contemporâneos, que muitas vezes são controversos, sem problemas. Outro dado: a exemplo de Lobato, os livros desses autores são engraçados. Se você notar bem, nossas personagens são mais próximas da Emília do que das "crianças exemplares": elas reclamam, brigam, reivindicam. Lançamos mão, também, de uma certa inclinação para o "feminismo". Lobato, apesar de eu não acreditar que sua obra tenha tido essa propensão específica, criou um matriarcado no Sítio. O único homem é Pedrinho, cuja posição, na obra, é de paridade com Narizinho. A linguagem empregada por Lobato também nos inspirou muito. Sua influência foi decisiva para o aparecimento dessa nova literatura infantil, surgida no fim da década de 1960. Também não se pode esquecer que a revista Recreio foi responsável por alavancar muitos escritores. No fim dos anos 1960, por outro lado, enfrentávamos uma ditadura renhida. O regime autoritário obrigava as pessoas a se expressarem por metáforas. Nós todos, durante aquele período, falávamos por metáfora. Havia apenas dois gêneros que puderam se expressar à vontade: a história infantil e a música popular brasileira.
Em trinta anos de carreira, como a sua linguagem se adaptou às transformações da infância?
Eu acredito que ela não mudou. As histórias que faziam sucesso há trinta anos continuam fazendo sucesso até hoje. Veja o caso do Menino Maluquinho. Nossa linguagem era tão moderna que não houve alteração. Tanto que a mesma escola literária permanece atualmente, é claro que com novos autores.
Quais são os instrumentos utilizados por um escritor para transmitir um assunto controverso e delicado a uma criança?
Tudo o que é feito para a criança demanda cuidado. Mas a mensagem não precisa ser transmitida de forma tão explícita. O autor tem de ter um veículo, ou seja, uma história boa, em que personagens se movimentem de modo verossímil. Feito isso, ele pode tratar de qualquer tema. Você não pode falar de coisas abstratas para uma criança, porque ela não vai entender (a criança atinge o nível de abstração adulta com 12 ou 13 anos). Portanto, não se pode falar de egoísmo. É preciso tratar o tema de forma concreta: "Quero que você dê metade do chocolate para seu irmão". Essa mensagem ela entende. Eu, por exemplo, acho que é muito mais difícil escrever para adultos. Cada setor da literatura tem suas dificuldades e facilidades.
Como evitar que o livro infantil funcione como instrumento ideológico?
Cada escritor escreve de acordo com o que ele é. As pessoas escrevem coisas preconceituosas porque acreditam nelas.
Qual é a sua disciplina quando vai escrever um texto?
Minha casa é uma contínua bagunça. É um entra-e-sai de gente, de netos, de amigos, de jornalistas... Mas quando vem uma Ideia boa na cabeça, eu sento e escrevo.
Se a qualidade do texto literário é boa, como a senhora analisa a qualidade gráfica e editorial dos livros infantis? A importação é uma boa iniciativa?
Se o livro for bom, bem traduzido, vamos importá-lo. Agora, se for ruim... O editor teria a obrigação de triar as obras importadas. Não podemos privar a criança de ler os bons livros estrangeiros. No panorama mundial, ingleses e americanos se sobressaem da média: eles têm muitos bons autores. Já outros países não têm tantos como nós. Na América Latina, a edição é prejudicada porque a indústria gráfica é muito recente. Mas há um problema: os livros estrangeiros normalmente são bem editados, têm capa dura, papel excelente, e, às vezes, a edição de autores brasileiros fica prejudicada. Os editores, a fim de não realizar um trabalho tão sofisticado, alegam que os escritores vendem de qualquer jeito.
E o preço do livro?
Para as classes desprivilegiadas é realmente caro. Agora, para a classe média... eu acho que não. Veja só, gasta-se tanto dinheiro com bobagens... Parte da classe média tem dinheiro para comprar brinquedos caríssimos, comer em restaurantes etc. O dinheiro está aí, mas infelizmente não se compram livros.
O que falta para que as pessoas passem a comprar livros em vez de brinquedos?
Falta valorização. A sociedade brasileira é pouco culta. O número de pessoas que realmente valoriza a cultura, o conhecimento, a literatura é muito pequeno. Quer um exemplo? Nas novelas, nunca aparece uma estante. Mostra-se, isso, sim, bar com uísque. As novelas, que têm tanta penetração, quase nunca incentivam o estudo, a leitura. Então, o que há é uma desvalorização daquilo que é sério, do que é culto e inteligente.
Quais são as estratégias para a formação de um público leitor?
O nosso governo distribui mais livros do que qualquer outro país do mundo, entre didáticos e paradidáticos. Por outro lado, também já existem muitas instituições privadas que estimulam a leitura. Eu sou presidente da associação Instituto Brasil Leitor, que vai instalar cem bibliotecas, cada uma com 3.500 volumes, pela periferia de São Paulo. O projeto, financiado pelo empresariado, prevê, também, a capacitação de bibliotecárias.
As crianças de 10 anos cresceram familiarizadas com um instrumento novo: a Internet e o grande desenvolvimento tecnológico. A tecnologia é uma rival da literatura infantil?
Realmente, essas crianças têm uma oportunidade a mais que as crianças da geração anterior. Mesmo assim, eu não superestimo o mundo virtual. As pessoas ainda não o compreendem bem. Eu acho que o livro de referência vai acabar, sim. Por outro lado, o livro de ficção, o livro de prazer, o livro de literatura, deve ser lido no suporte tradicional. Esse formato tem quinhentos anos e ainda não se esgotou. Ninguém vai querer chegar em casa e ler um livro no computador. Por outro lado, o computador permite que outras linguagens sejam empregadas, mas elas também não substituem o livro. Tais linguagens significam diversão, conhecimento, jogo. É outra coisa, não é literatura. O Ziraldo tem uma frase de que eu gosto muito e que sintetiza bem esse sentimento. Ele diz que no livro eletrônico não se coloca uma violeta dentro.
A televisão é tida por muitos como a grande vilã no desenvolvimento intelectual das crianças, entre outros motivos porque ela as coloca em situações constrangedoras, próprias de adultos. Qual é a sua opinião sobre a programação infantil veiculada pela tevê?
Há programas bons e programas ruins. Mas é preciso deixar claro que grande parte da programação para crianças é de má qualidade. Eu costumo elogiar um programa desprezado pela maioria das pessoas: o Chaves. Ele é excelente. O personagem é feio, pobre, velho, mas as histórias são infantis; além disso, o texto é excelente, engraçado. Nele, abordam-se assuntos de criança. Em outros casos, às vezes, coloca-se a própria criança em uma situação humilhante, parodiando os adultos. O excesso de estímulo não é adequado à sensibilidade infantil. A criança precisa de um estímulo delicado: é preciso falar baixinho com ela. Mas o vilão não é a televisão. Os pais muitas vezes ligam a tevê em programas que eles gostam e expõem os filhos a uma violência inadequada. Isso fere a sensibilidade infantil. É claro que no processo de desenvolvimento da criança ela vai tomar contato com tudo isso, mas não é necessário massacrá-la com tanta sensualidade e violência. A televisão é um veículo maravilhoso para educação, entretenimento, cultura, mas a programação, na média, é muito ruim.
Quais são seus projetos atuais?
Estou planejando escrever dois textos para adultos. Um é um livro literário, de citações comentadas, e o outro é um livro sobre educação. Estou realizando, também, uma pesquisa sobre as bandeiras para escrever um livro infantil: a história de um menino que participa da bandeira do Bartolomeu de Gusmão. Além disso, estou preparando um material didático, bonito, engraçado, com muitas sugestões de atividades e jogos.

Principais Obras Publicadas:
Marcelo, Marmelo, Martelo
Ninguém gosta de mim
O Reizinho Mandão
Sapo ViraReiViraSapo
Catapimba
Meus Lápis de Cor são só Meus
Meu Irmãozinho me Atrapalha
A Menina que não Era Maluquinha
O Menino que Quase Virou Cachorro
Borba, o Gato
Escolinha do Mar
Faz Muito Tempo
O Que os Olhos Não Vêm
Procurando Firme
Gabriela e a Titia
Pra Vencer Certas Pessoas
Historinhas Malcriadas
A Arca de Noé
As Coisas que a Gente Fala
Bom Dia, Todas as Cores!
Como se Fosse Dinheiro
Davi Ataca Outra Vez
Este Admirável Mundo Louco
Faca Sem Ponta Galinha Sem Pé
Romeu e Julieta
Lindas Crianças
O amigo do rei
O menino que aprendeu a ver

Faca Sem Ponta - Galinha Sem Pé

Esta é a história de dois irmãos.
Com eles aconteceu uma coisa muito esquisita, muito rara e difícil de acreditar.
Pois eram dois irmãos: um menino, o Pedro. E uma menina a Joana.
Eles viviam com os pais, seu Setúbal e dona Brites.
E os problemas que eles tinham não eram diferentes dos problemas de todos os irmãos.
Por exemplo...
Pedro pegava a bola para ir jogar futebol, lá vinha Joana:
- Eu também quero jogar!
Pedro danava:
- Onde é que já se viu mulher jogar futebol?
- Em todo lugar.
- Eu é que não vou levar você! O que é que meus amigos vão dizer?
- E eu estou ligando pro que os seus amigos vão dizer?
- Pois eu estou. Não levo e pronto!
Joana ficava furiosa, batia as portas, chutava o que encontrasse no chão, fazia cara feia.
Dona Brites ficava zangada:
- Que é isso, menina? Que comportamento! Menina tem que ser delicada, boazinha...
- Boazinha? Pois sim! - respondia Joana de maus modos.
Ás vezes Pedro chegava da rua todo esfolado, chorando.
- Que é isso? - Espantava-se seu Setúbal. - O que foi que aconteceu?
- Foi o Carlão! foi o besta do Carlão! Me pegou na esquina - choramingava Pedro.
Seu Setúbal ficava furioso:
- E você? O que foi que você fez? Por acaso fugiu? Filho meu não foge! Volte pra lá já e bata nele também. E vamos parar com essa choradeira!
Homem não chora!
Pedrinho desapontava:
- Eu estou chorando é de raiva! É de ódio!
Joana se metia :
- Homem é assim mesmo! Quando a gente chora é porque é mole, é boba, é covarde. Agora, homem quando chora é de ódio...
Pedro ficava furioso, queria bater na irmã.
Dona Brites entrava no meio:
- Que é isso, menino? Numa menina não se bate nem com uma flor...
Pedro ia embora, pisando duro:
- Só com um pedaço de pau...
E as brigas se repetiam sempre.
Quando Joana subia na árvore para apanhar goiaba, Pedro implicava:
- Mãe, olha a Joana encarapitada na árvore.
Parece um moleque!
- Moleque é o seu nariz! - gritava Joana. - Você toda hora está em cima de árvore, por que é que eu não posso?
- Não pode porque é mulher! Por isso é que não pode. E não adianta vir com conversa mole, não! Mulher é mulher, homem é homem!
Quando Pedro botava camisa nova e se olhava no espelho, Joana já implicava:
- Olha a mulherzinha! Como está vaidoso...
Ou então quando Pedro ficava comovido com alguma coisa, como filme triste, que tem menininha sozinha, sem ninguém para cuidar dela, Joana já começava a caçoar:
- Vai chorar, é? E agora é de ódio, è?
Mas nas outras coisas eles eram bem amigos:
Jogavam cartas, viam televisão juntos, iam ao cinema...
Um dia...
Tinha chovido muito e os dois vinham voltando da escola.
De repente, Pedro gritou:
- Olha só o arco-íris!
- É mesmo! - disse Joana. - que grandão! Que bonito!
- Puxa! - espantou-se Pedro. - Parece que está pertinho! Vamos passar por baixo? Vamos!
Joana se riu:
- Tia Edith disse que se a gente passar por baixo do arco-íris, antes do meio-dia, homem vira mulher e mulher vira homem...
- Que besteira! - disse Pedro. - Quem é que acredita numa coisa dessas?
E os dois se deram as mãos e correram, correram, na direção do arco-íris. E de repente pararam espantados.
Eles estavam se sentindo esquisitíssimos!
- O que aconteceu? - perguntou Joana.
E a voz dela saiu diferente, parece que mais grossa...
- Sei lá! - disse Pedro.
Mas parou depressa, porque ele estava falando direitinho como uma menina.
- Aconteceu comigo uma coisa muito estranha... - resmungou Joana.
- Comigo também... - reclamou Pedro.
E os dois se olharam muito espantados...
E correram para casa.
Vocês podem imaginar o reboliço que foi na casa deles quando contaram o que tinha acontecido.
No começo ninguém estava acreditando.
- Que brincadeira mais idiota! - falou seu Setúbal.
- Vamos parar com isso? - disse dona Brites.
Mas depois tiveram que se convencer...
E naquele dia, no jantar, ninguém brigou para saber se menina podia ou não podia fazer isso ou aquilo.
Afinal ninguém sabia direito quem era quem...
O pai e mãe de Joana e Pedro ficaram conversando até de madrugada.
- Acho melhor nem contarmos pra ninguém - dizia seu Setúbal.
- Mas como é que vai ser? - argumentava dona Brites.
- Todo mundo vai notar! E podem até pensar coisa pior...
- E o nome deles? - perguntou seu Setúbal.
- Como é que fica?
- É mesmo! - choramingou dona Brites. - A Joaninha, meu Deus, que tinha o nome da minha mãe. Que Deus a tenha em sua glória, agora vai ter que se chamar Joano! Joano, Setúbal! Isso é lá nome de gente? E o Pedro, que horror! Vai ter que se chamar Pêdra. Pode uma coisa dessas?
- E tem um outro problema em que estou pensando - disse seu Setúbal. - Está bem que a gente vista o Joano de homem... afinal as mulheres hoje em dia só querem se vestir de homem... mas vestir a Pêdra de mulher... não sei, não! E se ele, quer dizer, ela, virar homem outra vez?
- Ah, sei lá! - disse dona Brites. - Jà nem sei o que pensar. Acho melhor a gente ir dormir...
No dia seguinte o problema da roupa foi resolvido com facilidade. Foi só vestir calça de brim nos dois, mais camiseta e tênis.
Joano e Pêdra estavam brincando e rindo, como se nada estivesse acontecido, disfarçando para que os pais não se preocupassem ainda mais do que já estavam preocupados. Mas assim que saíram de casa ficaram sérios. Eles não sabiam como é que iam fazer na escola.
Logo na esquina, Pedro, quer dizer Pêdra, que agora era menina, deu o maior chute numa tampinha de cerveja que estava no chão.
- Vamos parar co isso? - disse Joano. - Menina não faz essas coisas.
- E eu sou menina? - reclamou Pêdra.
- É, não é?
- Ah, mas eu não me sinto menina! Tenho vontade de chutar tampinha, de empinar papagaio, de pular sela...
- Ué, eu também tinha vontade de fazer tudo isso e você dizia que menina não podia - reclamou Joano.
- Mas é que todo mundo diz isso - disse Pêdra. - que menina não joga futebol, que mulher é dentro de casa...
- Pois é, agora agüenta! Não pode, não pode, não pode...
- Ah, mas agora eu posse chorar a vontade, posso dizer fita, posso ter medo de escuro...
Quando tiver que ir buscar água de noite você é que tem que ir... e quando eu quiser ver novela ninguém vai me chatear...
E eles ficaram ali, uma porção de tempo, discutindo a situação.
De repente Pêdra lembrou-se de que precisava ir para o colégio.
- Sabe de uma coisa? - disse Joano. - Eu é que não vou para escola desse jeito ridículo.
- Não sei por que ridículo. Ridículo estou eu, aqui, virado em mulher.
- E você quer ir para escola? - perguntou Joano.
- Eu não - respondeu Pêdra.
E sentou num murinho, muito desanimada.
Joano sentou também.
- Sabe de uma coisa? - disse Pêdra. - Nós temos é que encontrar o arco-íris pra passar por baixo outra vez.
- Mas não está nem chovendo - choramingou Joano, que agora era menino mas bem que estava com vontade de chorar...
- É, mas se a gente não procurar não vai encontrar. E se não encontrar vai ficar desse jeito o resto da vida!
Então Joano tomou uma decisão:
- Olha aqui. Eu vou mas não vou levar você, não! Vou é sozinho! Menina só serve pra atrapalhar.
Pêdra ficou danada da vida:
- Ah, é? Então vire-se! Eu também vou procurar sozinha e não quero conversa com você.
Vamos ver quem encontra primeiro.
E cada um foi para o seu lado, sem nem olhar para trás.
Os dois rodaram o dia inteirinho, mas não tinha caído nem uma chuvinha, de maneira que não havia jeito de encontrar o arco-íris. E no outro dia foi a mesma coisa, e no outro, e no outro.
E em casa as coisas estavam piorando cada vez mais. Um implicava com o outro, caçoava, proibia:
- Menino não pode!
- Menina não faz!
- Onde é que já se viu?
- Coisa mais feia!
- Vou contar pra mamãe!
Se o arco-íris não aparecesse logo...
Até que um dia eles acordaram e estava chovendo a maior chuva que já tinha visto.
Trovão, relâmpagos, água que não acabava mais.
Os dois ficaram torcendo para a chuva passar. E quando passou, saíram, como sempre um para cada lado, procurando o arco-íris.
Joano chegou para lá da escola, num lugar onde ele nunca tinha ido.
E já vinha voltando, desanimado, quando viu, bem na sua frente, o arco-íris.
Joano correu e passou por baixo.
Mas não aconteceu nada.
Joano continuava Joano...
Com Pêdra aconteceu mais ou menos a mesma coisa.
Andou, andou, até fora da cidade. E só quando vinha voltando é que encontrou o arco-íris, passou por baixo e nada!
Na porta de casa os dois se encontraram:
- Nada, hein? - perguntou Pêdra.
- Nadinha! - respondeu Joano.
- Que será que aconteceu? - disse um.
- Que será que não aconteceu? - disse o outro.
E os dois se sentaram - tão amigos! - e contaram, um ao outro, como é que eles tinham passado por baixo e nada tinha acontecido...
De repente Pêdra se levantou animada:
- Espere um pouco! A tia Edith disse que tinha que passar embaixo do arco-íris antes do meio-dia, não foi? Então, pra desvirar tem que ser depois do meio-dia, é ou não é?
- É mesmo! - disse Joano. - E tem mais uma coisa. Pra mudar de sexo nós passamos de lá pra cá, não foi? A gente vinha voltando da escola, não vinha? Pois agora a gente tem que passar daqui pra lá, pra desvirar.
Pêdra ficou olhando para Joano:
- Sabe que você é bem esperta para uma menina?
Joano respondeu:
- Você também é bem esperta... pra uma menina.
Os dois se riram como há muito tempo não faziam. E juntos saíram á procura do arco-íris.
E de repente lá estava ele.
Grande, brilhante, colorido, como um desafio.
Joano e Pêdra deram-se as mãos.
E correram, juntos, em direção do arco-íris.
E finalmente perceberam que alguma coisa, novamente, tinha acontecido.
Então riram, se abraçaram e abraçados começaram a voltar para casa.
Então Joana viu uma tampinha de cerveja na calçada.
Correu e chutou a tampinha para Pedro.
Pedro devolveu e os dois foram jogando tampinha até em casa...