livro Festival cultural Banco do Brasil Aqui está o conteúdo de minha participação neste ótimo projeto, onde fui premiado com menção honrosa...

O DIA ESTÁ APENAS COMEÇANDO PARA O TRABALHADOR...

ACORDO CEDO, o escuro ainda manda. O tim, tim, tim do despertador perfura o tímpano, explode os miolos, fere a alma. Há dez, vinte anos, belisca a ferida aberta. Escravo da era moderna, acorrentado à necessidade de grana, nada posso contra os senhores. Nem posso lamentar, escravo privilegiado. Tenho cama, colchão e cobertor. O relógio de ponto a me despertar. Boa audição e principalmente mão para desligar o despertador. Fonte de diversas invejas vivo com medo nas calças. Muitos escravos querem minha pele, acham que sou um senhor. Lavo o rosto, não olho no espelho. Não tenho feição, sou massa. Toda massa reflete mancha. Ponho pasta na escova, tenho dentes. Agora dão lucro aos especialistas. Penteio, bocejo, cochilo. Olha a hora, grita meu senhor interno. Visto meu uniforme social, indica a atividade de cada escravo. Tomo um café bem “light”. Escravo moderno come pouco, redução de custos! Saio apressado procurando um passe. Escravo precisa de passe para tudo.
Faça frio, chuva ou calor. Todo dia é sempre assim, a ferida nunca fechará. Alma de escravo vai existir acompanhada pela dor. O ônibus demora para passar, isso é normal, sorte encontrar alguém. E aí! Ficou sabendo o resultado do concurso? Nada! Agora só quando o governo mudar, mas terei muita grana. Vou me arranjar, uma hora entro, compro um carrão, ponho dentro um mulherão, torro com bebida, viagem, hotel; tal qual a tv mostra todo dia. Farei igual o cara do comercial do banco, todo dia na internet, sacando. Farei igual aquele da cerveja, cada gole, um avião ao lado. Farei igual aquele, aquele outro. Cada um que me faz lembrar que meus sonhos são realidade para alguns e por sequência, como a fileira de dominó, minha realidade é sonho de alguém. Escravo privilegiado, tenho tv, posso ver, tenho carro, tenho mulher; porque o capitalismo nos faz querer mais, tudo no aumentativo, infinitivo. Durmo, acordo, sempre em busca do dinheiro. Vou ficando doente, esquecendo quem sou.
Vivo feito velho, sem objetivo, atrasado para viver, adiantado para morrer. Vítima do comércio, nicho econômico. A lotação chega cuspindo alguns pelo chão, afluente para um rio de gente, água correndo rumo ao serviço. É mesmo um rio, sem consciência. Escada rolante, bilhete, catraca, segurança. Sistema robotizado de viver. Mais gente, empurra-empurra. O trem chega, as portas abrem, o povo entra, o ar quase não sai. O bafo quente afoga o ar condicionado, o peão atocha a mão na tiazinha, o apito, as portas quase fecham. “Favor não segurar as portas do trem”, “Esta composição não circula com as portas abertas”. Uma bolsa, um calcanhar, outro mané, sempre mais um para atrapalhar. O tempo vai passando, o trem devagar, quase parando com a paciência. Sardinha enlatada, bacalhau em compota. A paisagem é a parede de concreto, o sovaco do cara da frente. “Estaçãoooo Brasss”. O trem socado de gente, chega até arrear o vagão.
O político inventou a integração ferroviária, esqueceu de por mais trens na linha. Uma velhinha quer, precisa sentar, o rapaz finge dormir no assento. Outra, não tão velhinha, desmaia, não dá nem para cair, apaga em pé. “Estaçãooo Sssé”, “Desembarque pelo lado esquerdo do trem”. O povo arremessado para fora. Não tem lado, não tem querer, quem não quer, tem que descer. Os seguranças recolhem corpos desmaiados, o trem segue ainda no bafo. “Estaçãooo Nhãnhãngabaú”. Desço aqui, o trem segue a vida, nesse cotidiano estamos juntos, escravos privilegiados, seguimos trabalhando, servindo a sociedade até ficarmos bem velhos. Aí... Depois de horas chegamos ao centrão. O sol vem raiando, claro, quente; nem lembra as sombras da noite. Quem é que dorme naquele sofá? Sala improvisada no belo jardim. Oásis, fétido, Praça Dom José Gaspar. A cultura, enfeite, ali ao fundo. Toda a inteligência humana em xeque pelo corpo pequeno, ali deitado no sofá abandonado, aos farrapos.
Seu cão fiel, no tapete de concreto, descansa atento ao movimento. As cinzas da fogueira ainda em brasa, o mundo noturno, o frio que se vai, esquecido pela cola, talvez, crack. Não vê nada, por enquanto, logo agora que a cidade acorda, acorda? As pessoas passam, tadinho! O sol arde sobre a sua pele suja, seus piolhos impacientes o acordam. As pessoas passam, que nojo! Logo o caminhão da prefeitura vai passar. O sofá vai, o menino vai ficar no cimento da Praça Dom José Gaspar. A história da humanidade ali está. Protegida pelo edifício centenário, o presente também por ali está, perambulando por seus jardins. As pessoas passam, que medo! Quando o vêem acordado, fogem. Escravo privilegiado, tem saúde. Pode pedir, ao crescer vai roubar. Apesar de tudo a vida segue, ainda vejo alegria no semblante de muitas pessoas. Sorriso estampado no rosto, calça jeans surrada, mp3, fone no ouvido, não quer saber sobre o mundo. Rosto dourado, jovem, como o sol.
Quase oito horas, o dia mal nasceu, à espera do patrão, o comércio rola até a noite. Ela sorri, cantarola a música, escrava privilegiada. Não sente a dor da rotina, canta seu pagode preferido, balança seus cabelos de molinha, sonha com o salão sábado à noite. Dançar até cansar, comer um lanche, com sorte uma carona, senão, voltar a pé, não importa. É chegar bem acompanhada, e aí... Sorriso estampado no rosto, o centro recheado de mal encarados. Umbigo de fora, pierce estrela, a porta sobe, o balcão se aproxima. Vai ralar o umbigo, arranhar o pierce. Nada que o bom humor não vença. Feliz de quem tem acesso a um balcão, ganha o salário que mata a fome, ganha a comissão da diversão.