Quando era menininho, ia na companhia de minha mãe, para aldeia perdida entre serranias. Ficava em quebrada de serra, que a protegia de ventos frios, e desabridos temporais, que fustigavam desapiedadamente as povoações vizinhas. Quase todos os verãos abalávamos para Trás-os-Montes, em velhíssimo comboio de amplos bancos de madeira envernizada, que serpenteava as mansas águas do rio Douro. Nessa recuada época, as águas do rio eram cristalinas e plácidas, e caminhavam tranquilas para a foz. Numa quietude quase absoluta: sem pressa, sem correrias, sem atropelos… Numa dessas viagens comboianas (como gostava de cactos, e ainda gosto,) levei envasado, um, que comprara na florista da minha rua; e criara-o com esmero e amor, no peitoril da janela de meu quarto Meu pai aconselhou-me a levá-lo. Segundo ele, a planta estiolaria e talvez morresse, no pequeníssimo vaso de barro vermelho, onde nascera. De tanto o ver e cuidar, afeiçoei-me.
Falava com ele; acariciava-o com os meus deditos; penteava-o com doçura a branca penugem sedosa; e convenci-me, que ele, de tanto me ver, de tanto o ter abraçado, também nutria por mim, sentimentos de grande ternura. Replantei-o com carinho, em terra fofa e bem adubada. Todos os dias, logo que o Sol se levantava, visitava-o, dando-lhe os bons-dias; e, pelo anoitecer, quando a tarde calmosa, adormecia, ia vê-lo. Passava, então, largos minutos a cuidá-lo: libertando-o de indesejáveis bichinhos. Foi em lágrimas que me despedi. Creio que o beijei; e convenci-me que ele, também chorou: pois cobriu-se de gotinhas de orvalho, na manhã da partida. Quando, no aconchego do meu pequenino quarto, entre alvos lençóis, ouvia a chuva e o vento vergastarem as vidraças, da minha janela; e via, pelas frinchas das portadas de madeira, o clarão azul de raios, que rasgavam a noite negra, rezava, muito baixinho, para que o bom Deus o guardasse, com Sua Mão ou Seus anjos, das intempéries impiedosas.
Para me cativar, meu tio, fez-lhe uma estufa, com sólido telhadinho de colmo, que o defendia de agrestes invernadas. No ano seguinte, parti ansioso. Não via hora de chegar: para o abraçar e quiçá, beijá-lo. Para meu espanto, tinha crescido. Estava quase do meu tamanho! … Era, não digo, um cacto adulto, mas adolescente… Aproximei-me para o abraçar, e logo recuei, com as mãos crivadas de pequeninos e agressivos espinhos. Ralhei asperamente com ele. Eu, que o cuidara com tanta dedicação; que o amei tanto, fui recebido como estranho, como se fosse malfeitor! … Olhei-o de frente – e, enquanto retirava, um a um, os espetos que se enterraram na epiderme, pensava com pesar.:
Quando era menina, a minha espostoa, recebia os meus carinhos, com alegria; e retribuía-os, acariciando-me, com os sedosos pelos, a minha mão acalentadora. Crescera, tornara-se adulta, e considerou que não mais precisava de mim, e recebeu-me com indiferença; com a superioridade de quem tem esteiros sólidos, e não precisa mais de ajuda… Lembrei-me de narrar a história da espostoa, porque, amiga minha, minhota de coração, e alentejana por casamento, em hora de amargura, contou-me: que casara ainda menina com industrial. E tão menina era, que não poucas vezes, o marido, surpreendeu-a a dançar o Vira, no quarto…Então, corava de vergonha… Gostava muito de crianças, mas nunca foi abençoada. Dedicou-se de alma e coração ao filho do caseiro da quinta, onde morava. Queria-lhe tanto, que se alegrava com suas alegrias e chorava quando ele chorava, pelo amor que lhe tinha. Resolveu, então, deixar-lhe a casa, onde vivia, por muito lhe querer. O menino cresceu.
Esqueceu os mimos que receberas; e, indiferente à velhinha entorpecida, que muito lhe queria, abandonou-a na companhia de rude criada, que mal falava o português! … Minha amiga chorou muito, em segredo. Porque sentimentos e afectos sofrem-se em silêncio, para que o mundo não se ria de quem ainda os tem. O mesmo acontecera comigo: a espostoa criou espinhos para se defender de inimigos; mas não soube recolhê-los, quando eu, cheio de ternura, e olhos radiantes de amor, a abracei. Tinha crescido…já não precisava dos meus carinhos…
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