Corria o mês de Maio… Mês das flores e de Maria. Batidas pela luz luminosa da manhã primaveril, as velhas pedras, do velho castelo, ganhavam novo brilho, e refulgiam, cintilantes, por entre antigas casas da cidadela medieval. O delicado recorte, do vetusto burgo – ex-libris da cidade, – invocativo de gestas, de gloriosos tempos; tempos de homens robustos, que se entregavam à morte: pela Fé, pela Pátria, e pela Honra, pareceu-me, nesse recuado dia de Maio, Dia das Cantarinhas, antiquíssima iluminura, arrancada a velha e amarelecida página, da nossa velha e gloriosa História. Chegavam diluídas à ampla e panorâmica varanda, banhada pelo sol doirado da manhã, quebrando o silêncio, o rosnar murmuroso de viaturas, com vozes longínquas e frases esgaçadas, trazidas pela brisa fresca da Sanábria, à mistura, com alegres pipios, de pardalitos, que festivamente saudavam o sol matinal.
A menina dos totós, agora senhora de acetinado rabo-de-cavalo, folgava, esfuziante, correndo solta, pela casa paterna; balanceava, ritmicamente, os mimosos bracitos, bem torneados; e sacudia, esvoaçando, o fino cabelo castanho, que escorria, doirado, pelos ombros e pelas costas, quase até à cintura. O semblante era alegre; o andar leve, como leve é o andar da jovem gazela; e os olhos, bem arregalados, eram duas pequenas pérolas saltitantes, de azeviche, sorrindo de felicidade. Ora se debruçava no parapeito verde da grade; ora penetrava, borboleteando, na estreita salinha, envolta em silêncio, onde a jovem mãe, lia, atentamente, o jornal da localidade; ou rompia, como tufão, pela cozinha, onde a mana querida, cuidava, zelosamente, da sobremesa do almoço; ou mergulhava no sombrio corredor, sempre em desenfreadas corrimaças. De súbito, estaca. Fica pensativa, de olhos sonhadores, enxergando não sei quê.
Volta a correr; galga, dois a dois, os degraus de acesso à porta da rua; e saltitando sempre, como feliz passarinho, envereda para o quintal. Era uma manhã doirada do mês de Maio; mês de Maria e das flores… Pintara-se o céu de azul; azul encharcado de luz, translúcido e misterioso. Entre a vegetação rasteira do quintal, havia raquítico arbusto, arvorezinha anã, que medrava em terra pobre e ressequida. A garotinha, de tez doirada, cor de areia, dona de soberbos e expressivos olhos, irradiantes de ternura, mansamente, avizinhou-se do arbusto. Estática, mira-o por instantes; entorta a cabecinha. Depois…num ápice, estica-se; apruma-se; ergue-se em biquinhos dos pés; e num salto certeiro, encarrapita-se num garfo, enlaçando-se, de pés e mãos, ao fino e frágil tronco. A arvorezinha, oscila, cambaleia, balança, parece quebrar, mas de novo se ergue.
A menina, baloiçando, eufórica, solta risadinha de prazer, mostrando a brancura dos dentes, emoldurados pelos lábios rubros e o doirado-moreninho do rosto traquina. É um flash; uma cena fugidia; centelha, que saltou da profundeza da memória, há décadas sepultada em remota gaveta. Por sortilégio de benfazeja fada, emerge-me, de longe a longe, dos recôncavos do subconsciente, em turbilhão: episódios, diálogos do tempo de outrora. Torno a escutar, antigos ecos ancestrais de vozes amigas, e chilreios de crianças, que já não são. Vozes e chilreios, que se sumiram num tempo, que foi, mas já não é. Esses flashes, são, para mim, saudosas recordações, que me enchem de alegria ou de amargura, a alma, já de si, e por natureza, nostálgica. Nessa época passada, que passou – e jamais passará, – ainda acreditava, ingenuamente: que o amor era para sempre…; as promessas eternas…; e só por um ideal valia a pena viver! … Para mim, a amizade, era infinita; e só seria feliz, se todos o fossem…
Era simples; simples, como a mais simples e humilde florzinha do campo, que acorda ao espreguiçar do primeiro raio da aurora, e morre no crepuscular, antes que as trevas cheguem. Mas era feliz. Feliz, porque desconhecia as vicissitudes da vida, e a maldade e orgulho dos adultos: dos que sempre vivem de máscara no rosto e hipocrisia no coração…
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