Terapia da Cozinha

A cidade e cidadania na obra

Por Mara Virginia Nunes Marcelino

RESUMO: Esta monografia busca desenvolver um estudo sobre as imagens e representações da cidade e da cidadania e os elementos formadores da cultura brasileira, em especial o imigrante italiano, na obra de António de Alcântara Machado. O texto está dividido em três capítulos e cada um retrata a imagem de São Paulo, a linguagem e a autonomia que fez dos textos de Alcântara símbolo do início do Modernismo e a renovação da linguagem na Literatura Brasileira. Abordaremos os tipos humanos, o automóvel, o bonde, a cidade que crescia e desenvolvia-se. Os novos tempos com o advento das máquinas e das novas tecnologias que aqui aportavam, no inicio do século XX, transformando a fisionomia das cidades, em especial a cidade de São Paulo Palavras-chave: imigrante italiano, cidade, cidadania, imagens, automóvel, bonde, rua. 5
INTRODUÇÃO: O discurso urbano da vida moderna inicia-se na metade do século XIX, consolidando-se com a convicção de que é, sobretudo, a experiência da metrópole que marca o individuo na preservação e autonomia da sua individualidade, buscando integrar-se na sociedade, na atitude se ser cidadão, na luta para sobreviver nos grandes centros urbanos e desempenhar seu papel como cidadão representante do Estado e da Nação. Uma cidade não constitui apenas de sua parte física material, suas ruas, edifícios, pontes e moradias, a vida se concentra no seu seio, até nos faz crer que a cidade ganha vida, respira e movimenta-se. Tudo que afeta o homem também afeta a cidade. Os cidadãos que nela habitam são elementos constituintes que marcarão em grande parte as características da cidade, e é por isso que, muitas vezes, os poetas e prosadores assinalam em suas obras o que é mais significativo, colocando-a sob pano de fundo. O rápido crescimento urbano nas grandes metrópoles do Brasil, no início deste século, culmina na transformação da fisionomia de algumas cidades, neste ínterim, muitos ficcionistas constroem suas obras, baseando-se em modelos urbanos, onde suas personagens se movimentam, observando e fazendo da cidade a fonte criadora do processo literário, representando o homem moderno. São Paulo é a cidade que está sempre em transformação. A cidade progresso que acolhe a população “estrangeira”, e os imigrantes ítalo-brasileiros vão se instalar em três bairros na cidade paulista: “Brás”, “Bexiga” e “Barra Funda”. O nome destes bairros, também, dá origem a uma das obras que mais contribuiriam para os arquivos fotográficos desta cidade. É neste contexto que pretendemos pautar nosso estudo, identificando através das análises dos textos, as imagens que o imigrante ítalo-brasileiro ajudou a construir, representando desta maneira os signos imagéticos da literatura brasileira, a sua contribuição para a formação do cidadão paulista, captando e estilizando uma experiência histórica da vida das personagens na articulação do processo social: o mundo urbano, formador de experiências.
O binômio conto/cidade não significa que não tenha sua presença anterior na história da literatura e para a efetivação do estudo sobre a cidade refina-se a aparato de leituras críticas que fornecerão a tradição dos estudos literários. Norteando nosso trabalho e enriquecendo nossa investigação será necessário recorrermos a alguns teóricos da literatura nacional, tais como BOSI (2001), CANDIDO (1970), também, mas especificamente especialistas que tratam da temática sobre a cidade como SIMMEL (1996), BENJAMIM (1994), entre outros. Assim, a análise dos contos na obra “Brás, Bexiga e Barra Funda”, estabelece no plano das formas concretas, a diversidade de aspectos que dá feição às questões investigativas, abrindo um leque para novas análises, olhares e leituras, compondo uma unidade de discursos que pretendam estabelecer aproximações entre as visões literárias da cidade e a busca da cidadania realizada pelo imigrante ítalo-brasileiro, levando outros pesquisadores ao questionamento e investigação neste mesmo contexto. A busca da cidadania é um processo de construção, dentro da urbanização na vida moderna, que os imigrantes italianos participam ativamente, na tentativa de se posicionar como cidadão efetivo, utilizando estratégias para interagir no espaço geográfico da cidade, que por direito conquistaram. É nesse espaço discursivo, acerca da contribuição dos imigrantes, que nosso estudo terá suporte, a fim de ampliarmos as discussões sobre a importância das relações entre a imagem que o imigrante ajudou a construir e a busca da cidadania, na cidade paulista no início do século XX. Iniciaremos este estudo sobre a concepção de cidade e de cidadania, buscando a história de vida e da vinda dos imigrantes italianos para o Brasil, utilizando, segundo Goldemberg (1997) o método bibliográfico que acompanha as questões históricas e sociais em que os imigrantes estão inseridos, relacionando a história pessoal e social com os grupos representantes do tempo e do lugar, estabelecendo, portanto, relações entre as imagens e a cidade. No primeiro momento, analisaremos os contos de Alcântara Machado na obra “Brás, Bexiga e Barra Funda”, comentando a confluência existente entre os contos, a cidade, a máquina e o homem, no Modernismo. No segundo momento, comentaremos as relações de cidadania, apontando, elementos que caracterizem essa busca como processo de construção e contribuição do espaço físico-geográfico, a fim de compreender de que modo elas podem nutrir e enriquecer a paisagem urbana e o direito de ser cidadão em terras “estrangeiras”. Nossa intenção, no terceiro momento, é 8 explorar e mapear, dentro da análise textual, paisagem, simbologias e representações do universo e do lugar que os imigrantes ocuparam, gerando novas formas de poder corporativo e das lutas de classes. Além disto, verificaremos os parâmetros entre os teóricos e o texto de Alcântara Machado, estabelecendo os contextos políticos e econômicos, no processo de construção social. O nosso estudo pretende pautar-se numa perspectiva de análise do discurso, consultando as fontes documentais, os textos literários e as imagens (fotos, emblema) dentre outros, previamente selecionados e que constam das referências bibliográficas. Assim, buscaremos compreender como se deu o rápido e catastrófico crescimento desordenado dos bairros “Brás”, “Bexiga” e “Barra Funda”, na cidade de São Paulo, no início do século XX, especificamente na década de 20, procurando dar nossa contribuição para a análise da dialética da modernização e do modernismo sob um novo prisma, na literatura brasileira, neste novo milênio. 9
1. ALCÂNTARA MACHADO E A CIDADE PAULISTA 1.1. A obra e o contexto histórico-literário António de Alcântara Machado (1901 – 1935) teve morte prematura em 1935, pouco antes de completar 34 anos, depois de uma cirurgia de apêndice, mas em sua curta trajetória de autor deixou obras fundamentais para a compreensão da literatura brasileira e principalmente a paulista. Em vida, publicou três livros: um de crônicas de viagem, Pathé Baby (1926); e dois de contos, Brás, Bexiga e Barra Funda(1927) e Laranja da China (1928). Deixou também numeroso material jornalístico, contos avulsos, ensaios históricos, um romance inacabado e uma peça teatral inédita. Alcântara Machado se situa como dono de uma nova linguagem literária - a narrativa curta – utilizou técnicas de composição peculiares à impressa compondo nas páginas de seus livros semelhanças as folhas de jornal, numa estrutura de mosaico ou recortes fotográficos da cidade paulista e da vida ítalo-brasileira. António de Alcântara Machado foi um importante escritor da primeira fase do modernismo, apesar de não ter participado diretamente da Semana de Arte Moderna, integrou o grupo a partir de 1925. Apesar de não ter sido radical, comparando com os outros modernistas, usava uma linguagem do cotidiano, reproduzindo a fala e o linguajar da época, retratando uma realidade citadina e realista, num tom divertido, mas não satírico, dos imigrantes italianos principalmente em Brás, Bexiga e Barra Funda. A obra Brás, Bexiga e Barra Funda surgiu em 1927, registrando o mundo dos meninos pobres, das jovens operárias e os acontecimentos urbanos dos ítalo-brasileiros e flagrantes da metrópole em formação. Também registrou o movimento do trânsito, os sotaques e o preconceito que dificultava as relações humanas. Interessado pela vida da cidade Alcântara retrata o espaço urbano de São Paulo, principalmente, nos três bairros que intitulou a referida obra. Embora não faltem referências a outros bairros a exemplo da Avenida Paulista, Avenida Angélica, Higienópolis, Rua Barão de Itapetininga e Largo Santa Cecília.
Os onze contos que compõem a obra do autor situam-se todos na cidade em seus bairros e ruas sempre nomeados e nos anos 20, período em que o autor viveu e é comprovado pela menção de datas: Conselheiro José Bonifácio ----------O Cav. Uff. Salvatore Melli de Matos e Arruda ------------------------------------e------- --------e ----------------------------------------senhora senhora ---------------------------------- têm a honra de participar ----------- têm a honra de participar a V. Ex.a e Ex.ma família o ------a V. Ex.a e Ex.ma família o contrato de casamento de sua ----contrato de casamento de seu filha Teresa Rita com o Sr.------- filho Adriano com a Senhorinha ---------Adriano Melli.---------------Teresa Rita de Matos Arruda. Rua da Liberdade, n.0 259-C. ---Rua da Barra Funda, n.0 427. S. Paulo 19 de fevereiro de 1927 .(BBBF, A sociedade, p.28) Os contos são antecedidos por um prefácio que o autor chamou de Artigo de Fundo dando uma visão jornalística e documental da obra, como podemos ler no texto inicial: Este livro não nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos não nasceram contos: nasceram notícias. E este prefácio portanto também não nasceu prefácio: nasceu artigo de fundo.(BBBF, Artigo de Fundo, p. 7) Alcântara Machado era jornalista e transferiu para a literatura a linguagem coloquial em seus artigos e crônicas, assim percebemos no texto inicial sua intenção em expor notícias como um breve recorte de matérias noticiosas em potencial literárias: Brás, Bexiga e Barra Funda, como membro da livre imprensa que é, tenta fixar tão somente alguns aspectos da vida trabalhadeira, íntima e quotidiana desses novos mestiços nacionais e nacionalistas. É um jornal. Mais nada. Notícia. Só. Não tem partido nem ideal. Não comenta. Não discute. Não aprofunda. (BBBF, Artigo de Fundo, p.7) O movimento Modernista pedia uma nova língua, por isto, Alcântara Machado em uma tentativa de mimetização do cotidiano de São Paulo, transmite em seus escritos uma inovação do estilo narrativo, direto, atual e oral, como podemos perceber no fragmento abaixo: - Hã! Hã! Hã! Hã! Eu que...ro o ur...so! O ur...so! Aí, mamãe! Aí, mamãe! Eu que...ro o... o.... o.... Hã! Hã! 11
- Stai ferma o ti amazzo, parola d’onore! - Um pou...qui...nho só! Hã! E ....hã! E... hã! Um pou...qui.... - Senti, Lisetta. Non ti porterò più in città! Mai più! Um escândalo. E logo no banco da frente. O bonde inteiro testemunhou o feio que Lisetta fez. (BBBF. Lisetta, p. 29) São Paulo, no final do século XIX, passou por profundas transformações econômicas e sociais decorrentes da expansão da lavoura cafeeira em várias regiões paulistas, da construção da estrada de ferro Santos-Jundiaí (1867) e do afluxo de imigrantes europeus. O Brás e a Lapa transformaram-se em bairros operários por excelência; ali concentravam-se as indústrias próximas aos trilhos da estrada de ferro inglesa, nas várzeas alagadiças dos rios Tamanduatey e Tietê. A região do Bexiga foi ocupada, sobretudo, pelos imigrantes italianos e a Avenida Paulista e adjacências, áreas arborizadas, elevadas e arejadas, pelos palacetes dos grandes cafeicultores . A cidade paulista começou a crescer em ritmo acelerado. A grande arrancada se deu entre 1890 e 1900, período em que a população paulistana passou de 64.934 habitantes para 239.820, registrando uma elevação de 268% em dez anos, a uma taxa geométrica de 14% de crescimento anual. São Paulo era a metrópole que mais crescia no Brasil. Era a síntese do progresso e do desenvolvimento urbano, oriundo dos excedentes financeiros provenientes da cafeicultura e dos investimentos de imigrantes italianos e sírio-libaneses que aqui começaram a residir. A literatura não tem como dissociar-se do contexto sócio-político porque toda produção literária traz na sua ordenação, as marcas da organização social e política em que está inserida. Assim, os contos de Alcântara redefinem o perfil sociopsicológico de uma cidade em constante transformação. A eletricidade e as invenções tecnológicas que nos trouxeram as máquinas, como o automóvel e o avião, alteraram o ritmo de vida do homem moderno, operando transformações no visual urbano. Neste ínterim, surgem na literatura dois elementos que farão parte da nova paisagem urbana - o carro e o bonde – a paixão por estes dois elementos estão impregnados na obra de Alcântara Machado. O fascínio pelo automóvel o autor reproduz claramente nos contos Gaetaninho e o Monstro de Rodas, inserindo o automóvel como personagem que serão responsáveis pelo desenrolar do conflito: Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e ele não viu o Ford. O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o palavrão. (BBBF. Gaetaninho p. 11) 12
O grilo fez continência. Automóveis disparavam para o corso com mulheres de pernas cruzadas mostrando tudo. Chapéus cumprimentavam dos ônibus, dos bondes. (BBBF. O Monstro de Roda, p. 41) Bruno Zeni1 comenta que os contos de Alcântara “constrói o primeiro mapeamento ficcional da cidade: é do Brás, do Bexiga e da Barra Funda que chegam as primeiras notícias de São Paulo”. Portanto, percebe-se nos contos toda trajetória do desenvolvimento da cidade. São Paulo era uma mistura de arranha - céus recém nascidos e casarões tradicionais; caipiras vindos do interior paulista e de outros estados contrastavam com os imigrantes; nas ruas passavam os burgueses industriais, cafeicultores e comerciantes se misturando, dividindo o espaço das ruas movimentadas com os proletários ou mendigos. Os primeiros automóveis circulavam em marcha lenta, fazendo par com o trotar dos muares ou eqüinos que puxavam as carroças. Surge uma nova paisagem na literatura, demonstrando o movimento do centro e dos logradouros distantes: Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho. (BBBF, Gaetaninho, p. 11) Sergio Milliet analisando a obra de Alcântara Machado diz que uma das características do autor em sua obra é a frase curta e seca, a imagem precisa e inspirada, baseada na observação da vida corriqueira2. Esses elementos estão presentes no formato estilístico em que o autor apresenta em sua obra, na linguagem fotográfica com representações em negrito e caixa alta, descrevendo de forma ágil o espaço urbano e o imigrante ítalo-brasileiro como veremos a seguir. 1 ZENIR,Bruno. Alcântara, inventor de São Paulo. In: Cult – revista Brasileira de Literatura – Ano IV, nº 47: Lemos Editoria, junho de 2001, p. 47 2 Milliet, Sérgio. António de Alcântara Machado. D. O. leitura Especial: Maio, 2001, p. 17 13
1.2. A cidade e suas imagens As cidades como símbolos, imagens e representações são, desde a Antiguidade Clássica, enfocadas por diferentes olhares referentes ao imaginário citadino na realidade ficcional e vem constituindo, na literatura, resposta as questões relacionadas ao cotidiano dos habitantes urbanos. Renato Cordeiro Gomes3 refere-se à cidade como o ambiente construído por uma necessidade histórica, resultante da imaginação e do trabalho coletivo do homem, registrando na escrita sua própria história. Assim, o texto é o relato sensível das diversas formas de se ver a cidade, através das descrições físicas, das metáforas e dos labirintos de ruas observados nos textos, registrando-se a memória e geometrizando-se a cidade. Alcântara Machado utiliza-se da ficção para noticiar informações da cidade em progresso, registrando o modo de vida dos imigrantes nos bairros periféricos da capital paulista. Muitas imagens são retratadas nos contos Brás, Bexiga e Barra Funda. Essas imagens são temporais e fazem referências a marcas de automóveis a exemplo dos carros importados, que povoavam as ruas da capital, assim temos: o Lancia, o Buick, o Ford, o Hudson, entre outros, representando o progresso e o movimento do trânsito. Além das marcas de produtos como refrigerantes, cigarros e cerveja - algumas destas marcas não fazem mais parte da vida e do consumo da população e foram substituídas pelas multinacionais - aparece também propagada de lojas de moda que já faziam sucesso Dentro das imagens representadas nos contos, verificam-se as vestimentas e seus acessórios como luvas, chapéus, fraques, hoje em desuso. - Xi, Gaetaninho, como é bom! Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e ele não viu o Ford. (BBBF, Gaetaninho, p. 11) 3 GOMES, Renato Cordeiro. Todas as Cidades, A cidade. Rio de janeiro:Rocco, 1994. p. 23 14
Neste contexto, podemos perceber que os personagens, ruas e avenidas são metáforas de São Paulo através das quais compõem imagens do cidadão comum em contacto com as novidades tecnológicas que estavam surgindo na época, principalmente os meios de comunicação, a exemplo de: rádio, cinema e a impressa. Essas imagens configuravam a crença sociocultural consolidando a experiência cotidiana. Assim, os mecanismos das aspirações socioculturais tendem a ser representados em nome/ metáforas, designando através das imagens, verbal, o significado que estão subjacentes aos nomes. Em Brás, Bexiga e Barra Funda ela está na própria concepção do livro como se lê no texto inicial: Este livro não nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos não nasceram contos: nasceram notícias. E este prefácio portanto também não nasceu prefácio: nasceu artigo de fundo.(BBBF, Artigo de Fundo, p. 7) Muitas das imagens, nos contos, são formadas pelo grande apelo sensorial, destacando-se as imagens auditivas e visuais, utilizando-se da linguagem para compor essas imagens. Assim, essas imagens remetem aos novos espaços ocupados pelo rádio e pelo cinema no cotidiano do cidadão paulista. Alcântara utiliza-se da linguagem onomatopéica e abusa das interjeições formando imagens cinematográficas da cidade em movimento: As árvores da geral derrubaram gente. - Abr’a porteira! Rá! Fech’a porteira! Pra! O entusiasmo invadiu o campo e levantou o Biagio nos braçoes. - Solt’o rojão! Fiu! Rebent’a bomba! Pum! CORINTHIANS! O ruído dos automóveis festejavam a vitória. O campo foi-se esvaziando como um tanque. Miquelina murchou dentro de sua tristeza. (BBBF, Corinthians(2) vs. Palestra (1), p.33) As imagens auditivas representam metaforicamente o rádio e as imagens visuais revelam a influência do cinema. Alcântara Machado, como Modernista introduz uma nova linguagem marcada com imagens fortes e fotográficas de um novo mundo que se transformava, com ritmo, velocidade, com projeção e flash da realidade, bem ao molde cinematográfico que influenciou outros autores, a exemplo do próprio Mario de Andrade. Todos os contos são narrados em terceira pessoa por um narrador observador. O narrador representa o olho da câmera registrando todos os movimentos, emoções, cores e formas imagéticas da cidade, dando um close panorâmico de uma determinada ação. Portanto, a imagem da morte de crianças se distancia do emocional, com a frieza de registro de uma câmara: 15
Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou.(BBBF, Gaetaninho, p. 13) Alcântara Machado traduz em seus contos uma cidade polifônica, empregando simultaneamente diversos sons, vozes independentes que, em cada capitulo , proporcionam um sentido único, mas que estarão relacionados entre si formando um todo polêmico e inovador. Alcântara capta a comunicação urbana no que ela tem de mais rica, ou seja, a sua polifonia, deixando-se guiar pela sonoridade das vozes que se cruzam, relacionando-se, isolando-se, contrastando-se como uma possibilidade metodológica que comparece de diversas maneiras na linguagem do autor em seqüências rimadas, as falas são deferidas com o apoio dos pontos de interrogação e exclamação, reticências, grafia de palavras em caixa alta, pela utilização do hífen: Biagio alcançou a bola. Aí, Biagio! Foi levando, foi levando. Assim, Biagio! Driblou um. Isso! Fugiu de outro. Isso! Avança para a vitória. Salame nele, Biagio! Arrermeteu. Chhute agora! Parou. Disparou. Parou. Aí! Reparou. Hesitou. Biagio! Biagio! Calcuou. Agora! Preparou-se. Olha o Rocco! Caiu. - Ca-va-lo! Prrrrii! - Pênalti! (BBBF, Corinthias (2) vs. Palestra (1), p. 33) : Outro elemento presente na narrativa de Alcântara é a rua. Ela apresenta enfoque polifônico e pode ser interpretado de acordo o olhar que laçamos sobre ela. Segundo Canevacci4 Um edifício “se comunica” por meio de muitas linguagens, não somente com o observador mas principalmente com a própria cidade na sua complexidade: a tarefa do observador é tentar compreender os discursos “bloqueados” nas estruturas arquitetônicas, mas vividos pela mobilidade das percepções que envolvem numa interação inquieta os vários espectadores com diferentes papéis que desempenham.. Neste contexto, o extrato polifônico das narrativas de Alcântara Machado requer o olhar do leitor e as ruas comunicam imagens e sons ao espectador, portanto, o 4 CANEVACCI, M. A Cidade Polifônica. São Paulo: Studio Nobel, 1993., p. 22 16 narrador nos contos é o espectador que escolhe o caminho elaborando seu itinerário urbano. Isso acontece, por exemplo, com os personagens ítalo-brasileiros, seu linguajar típico vai dar o efeito sonoro final: As fábricas apitavam. Quando Grazia deu com ele na calçada abaixou a cabeça e atravessou a rua. (BBBF, Amor e Sangue, p. 23) A sonoridade está presente também nas músicas que o autor introduz no seu texto. Alusão às músicas é feita pelo registro de memória através das canções populares da Itália retratando o imigrante. As músicas apontadas nos contos sugerem uma sonoridade radiofônica, que servem para reforçar o ambiente italiano: Gaetaninho ia berrar mas a Tia filomena com a mania de cantar “ Ahi, Mari!” todas as manhãs o acordou. (BBBF, Gaetaninho, p. 12) Então o Natale entrou assobiando a Tosca. (BBBF, Armazém Progresso, p. 45 Grifo nosso) Neste ponto, as imagens táteis, plásticas, visuais e sonoras privilegiam o irrelevante e os detalhes (in) significantes apontam um ambiente típico e da fala do imigrante italiano, registrando a convivência entre estes e os brasileiros. Essa empatia com os italianos, leva o autor a registrar as musicas, comidas e a cultura fortalecendo o sentimento de amor a terra e o saudosismo. A cidade, as imagens e a paisagem na obra destacam o convívio do imigrante e da visão que tiveram ao encontrar uma sociedade totalmente diferente e a busca para a integralização e ascensão social, como veremos a seguir. 17
2. A CIDADE E A CIDADANIA 2.1 O cidadão ítalo-paulista e a cidade Brás, Bexiga e Barra Funda, de Alcântara Machado, é marcada por uma postura vanguardista que inscreve a cidade e o espírito urbano no conjunto das suas crônica / contos. Assim concebida, a cidade adota características de emblema nacional, integrando os lugares da memória onde o mundo moderno, por sua vez, permite o desabrochar da passagem de província rural para uma outra, urbano-industrial. Percebe-se na obra uma preocupação de mostrar o espaço físico: as ruas, as avenidas, o movimento dos carros, bonde, os letreiros das lojas e as pessoas: A Rua Barão de Itapetininga é um depósito sarapintado de automóveis gritadores. As casas de modas (AO CHIC PARISIENSE, SÃO PAULO-PARIS, PARIS ELEGANTE) despejam nas calçadas as costureirinhas que riem, falam alto, balançam os quadris como gangorras. (BBBF, Carmela, p. 13) A obra não conta a história da cidade paulista nem tão pouco mostra o cidadão italiano como habitante da cidade, estas nuanças vão surgindo como recorte de jornais no decorrer dos contos. O autor abraça as causas do homem angustiado do seu tempo, a divisão de classes sociais hierarquizadas, a infância pobre nos bairros operários e a visão citadina do imigrante italiano. Para compreendermos melhor os direitos humanos, a justiça, a sociedade e a vida do ítalo-brasileiro é preciso entender o exercício da cidadania do imigrante e sua trajetória para conquistar seu espaço nesta mesma sociedade. Os imigrantes italianos começaram a imigrar em número significativo para o Brasil a partir da década de 70 do século XIX. Foram impulsionados pelas transformações sócio-econômicas em curso no Norte da península italiana, que afetaram, sobretudo, a propriedade da terra. Em São Paulo, foram a princípio 18 atraídos para trabalhar nas fazendas de café, através do esquema da imigração subsidiada. Nas cidades paulistas, trabalharam em uma série de atividades, em especial como operários da construção e da indústria têxtil. A relação do imigrante com a cidade se intensificava. Não tinha mais jeito, eles precisavam se integrar ao novo mundo. Tornaram-se os artistas, sapateiros, jornaleiros, tintureiros, alfaiates... Nos bondes, ruas, comércio e indústrias, dialetos italianos eram tão ouvidos quanto o próprio português. São Paulo era Zan Paolo, queijo tornou-se formaggio e trabalho era lavoro, Alcântara Machado não foi o primeiro autor da nossa literatura a registrar o falar italiano em seus contos, antes dele, Mario de Andrade iniciara as manifestações populares à linguagem literária do dialeto ítalo-paulistano: Lá para as bandas do Ipiranga as oficinas tossem... Todos os estiolados são muito brancos. Os invernos de Paulicea são como enterros de virgem... Italianinha, torna al tuo paese! (...) (Paisagem nº2)5 O Brás foi o bairro da preferência dos italianos que se fixaram na cidade, mas eles também tiveram presença expressiva na Mooca, Bom Retiro, Belenzinho, Canindé, Bexiga, Pari, Vila Carrão e Santana. Agrupavam-se conforme sua região de origem - napolitanos no Brás, calabreses no Bexiga e venezianos no Bom Retiro - mas sua influência se fez sentir em outros pontos da cidade na arquitetura de edifícios públicos ou residências particulares nos Campos Elíseos, Higienópolis, Vila Buarque, Consolação. Nos contos de Alcântara Machado em Brás, Bexiga e Barra Funda perceberemos a presença marcante do imigrante italiano, seu modo de vida, sua cultura e a sua fala que tanto contribuiu para a construção e desenvolvimento da cidade paulista. Rubens Ricupero6 em seu ensaio Testemunha da Imigração diz que: Entre esses dois pólos extremos, de cultura mais ou menos homogênea, estende-se o período hibrido da mistura das línguas e das comidas, do apagar gradual dos valores e imagens do país que ficou para trás e do engajamento progressivo da nova realidade. 5 Fragmento retirado das citações in: BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, [s.d.]. p. 145 6 RICUPERO, Rubens. Testemunha da Imigração. In: D.O Leitura Especial/ maio de 2001 p. 25 19
Os italianos trabalhavam nas fábricas que surgiam na cidade em desenvolvimento, eles eram a mão de obra especializada e experiente. Podiam operar as máquinas e foram os italianos trabalhadores que introduziram, no Brasil, as correntes de pensamento e ação social da Europa, o pensamento marxista, as doutrinas exóticas, o anarquismo, o socialismo, o movimento sindical e também organizaram as primeiras greves. Em Brás, Bexiga e Barra Funda, dois contos apresentam a ascensão social do cidadão ítalo-paulista na cidade: Armazém Progresso de São Paulo e A Sociedade. O primeiro, o protagonista é o dono do armazém que lucrou com a imigração italiana, há no título uma ambigüidade em que demonstra a visão favorável do autor em relação ao cidadão ítalo-paulista, neste contexto, o progresso é o armazém e a cidade de São Paulo. Em A sociedade, a ascensão se dá para as duas partes: O conselheiro que pertence à família tradicional paulista (tem prestígio, mas não tem dinheiro) e para Salvatore Melli imigrante italiano que tem situação inversa (tem dinheiro, mas não tem prestígio). Alcântara constrói nos contos a ironia e o humor leve. Embatucou. Tinha qualquer cousa. Tirou o charuto da boca, ficou olhando para a ponta acesa. Deu um balanço no corpo. Decidiu-se. - Ia dimenticando de dizer. O meu filho fará o gerente da sociedade... Sob a minha direção, si capisce. - Sei, sei... O seu filho? - Si. O Adriano. O doutor... mi pare... mi pare que conhece ele? O silêncio do Conselheiro desviou os olhos do Cav. Uff. na direção da porta. - Repito un'altra vez: O doutor pense bem. O Isotta Fraschini esperava-o todo iluminado. - E então? O que devo responder ao homem? - Faça como entender, Bonifácio... - Eu acho que devo aceitar. - Pois aceite. E puxou o lençol. A outra proposta foi feita de fraque e veio seis meses depois. (BBBF, A sociedade, p.27) Como foi possível perceber, os dois contos formam um panorama de um determinado fragmento social em um determinado momento histórico. Desse modo, podemos dizer que sua grande personagem é a cidade de São Paulo no início do século, vista a partir de um aspecto: a imigração. Cabe dizer ainda, que foi com Alcântara Machado que o tema da imigração firmou-se no Modernismo. Preocupado com o momento social de profunda 20 transformação em que vivia sua cidade, o autor tornou-se o escritor de São Paulo. E falar da São Paulo, de sua época, era falar daqueles que a estavam construindo-a: os italianos. 2.2. O imigrante italiano e a cidadania 21
Os imigrantes italianos constituem o quadro social que caracterizou a atmosfera urbano-industrial na década de 20. A cidade paulista, cenário cultural desse quadro econômico, social e cultural, assinalou o início do século XX, dando ensejo a um processo sócio-cultural de busca da identidade pátria que está vinculada à definição de nação. Assim, é a cidade que vai ocupar o espaço literário em prosa e em verso que de acordo Lucrecia D’Alessio Ferrara7 : a cidade se transforma no herói decantado. É ela, a cidade, que ocupa o panorama das representações e se transforma no objeto da literatura. Portanto a cidade é o elemento formador da expressão humana, da comunicação e da organização social em um determinado tempo e contexto histórico- literário. O cidadão é o morador, o habitante da cidade e a cidadania é a qualidade ou a condição de ser cidadão em face de um corpo social organizado, ou seja, a cidade. A definição de cidadania foi sofrendo alterações ao longo do tempo, seja pelas alterações dos modelos econômicos, políticos e sociais ou resultantes das pressões exercidas pelos excluídos dos direitos e das garantias de poucos preservados, num rico processo histórico que deixamos de abordar, por não constituir o propósito deste trabalho. O imigrante italiano e seus descendentes confiantes em seus direitos de brasileiros se laçam a luta pela conquista de um lugar melhor na sociedade que adotaram. Exercer a cidadania, fazer parte da cidade como cidadão efetivo era muito difícil para os imigrantes, que tiveram que renunciar sua pátria em busca dos seus direitos de cidadãos legítimos. Rubens Ricupero8 nos diz que: Às vezes com agressividade, sempre com energia, esses ítalo- brasileiros vão abrir um espaço próprio, que a cidade lhes concede com maior ou menor dificuldade, pois está também em plena expansão. O imigrante conservava orgulhosa a velha nacionalidade, mas buscava exercer seu direito de cidadão utilizando-se de acordo Rubens de métodos não legais para este exercício de cidadão: sem por isso deixar de votar com carteiras falsas e tornar-se cabo eleitoral e sustentáculo da oligarquia do Partido Republicano Paulista9. Como se pode constatar no conto Nacionalidade: 7 FERRARA, Lucrecia D’Alessio. A construção do império. In: A palavra da cidade: org. Maria Stella Bresciani. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001. p. 287 8 Op. Cit. Nota 3 p. 25 9 Op.cit. nota 3 p. 28 22
Um dia o Ferrucio candidato do Governo a terceiro juiz de paz do distrito veio cabalar o voto de Tranquillo. Falou. Falou. Falou. Tranquillo escanhoando o rosto do político só escutava. - Siamo intesi? - No. Nonm sono elettore. - Non è elettore? Ma perchè? - Perchè sono italiano, mio caro signore. - ma che c’entra la nazionalitá, Dio Santo? Purê io sono italiano e faro il giudice! - Sta bene, sta bene. Penserò. E votou com outra caderneta. Depois gostou. Alistou-se eleitor. E deu até de cabalar. (BBBF. Nacionalidade. P. 47) Alcântara Machado em seus contos, mostra a imagem do imigrante italiano de forma positiva, não há uma crítica, é uma imagem benevolente, sem competição com brasileiros, existe uma empatia autor X personagem , em que nenhum dos seus personagens são reprovados ou reprimidos. Há, é claro, uma ambigüidade com relação ao gênio petulante do italiano, sua força e sua ameaça em ascensão social. Proprietário de mais de dois prédios à Rua Santa Cruz da Figueira Tramquillo Zampinetti fechou o salão (a mão já lhe tremia um poquinho) e entrou para sócio da Perfumaria Santos Dumont. (BBBF. Nacionalidade, p. 48) O estereotipo popular contra o estrangeiro não aprece nos contos de Alcântara e quando o faz, refere-se a outro imigrante a exemplo do alemão. No conto Tiro-de- guerra nº 35, pode-se perceber o sentimento nacionalista do imigrante italiano em um patriotismo exagerado do personagem Aristodemo Guggiari. Estas nuanças levam-nos a perceber o exercício da cidadania e um amor à pátria adotiva. Assim, Aristodemo Guggiari não suporta a gozação com que o praça (imigrante alemão) Guilherme Schwertz faz ao Hino nacional Esbregue danado. O alemãozinho levou um tabefe de estilo. Onde entrou todo muque de que pôde dispor na hora o Aristodemo. -Está suspenso o ensaio. Podem debandar. - eu dei mesmo na cara dele, Seu Sargento. Por deus do céu! Um bruto tapa mesmo. O desgraçado estava escachando com o hino do Brasil! (BBBF, Tiro de Guerra nº 35, p. 20-21) 23
O capitalismo determina sentido ou uma geograficidade dos moradores da cidade de São Paulo, através das relações ideológico-culturais e das relações jurídico-político. Neste contexto, os contos de Alcântara Machado revelam os pobres e integram-nos através do fascínio da riqueza junto dos poderosos da terra revelando uma ideologia disfarçada da absorção rápida dos imigrantes na luta por uma cidadania. Assim, todos os símbolos de status desejável só requerem trabalho árduo e adesão ao social, em cada conto um objeto de desejo está presente. O Buick que seduz Carmela, o ursinho felpudo que faz Lisetta chorar, a aliança pelo casamento com as boas famílias entre outros. A busca da cidadania também era a busca da aceitação social, assim no conto A sociedade, Alcântara Machado procura retratar a dificuldade de integração sofrida pelos italianos e, ao mesmo tempo, sua capacidade de adaptação e até superação diante das famílias tradicionais e preconceituosas. No chá do noivado o cav. uff. Adriano Melli na frente de toda a gente recordou à mãe de sua futura nora os bons tempinhos em que lhe vendia cebolas e batas, Olio di Lucca e bacalhau português quase sempre fiado e até sem caderneta. (BBBF, A sociedade p. 28) Os personagens, verdadeiros estereótipos de uma sociedade, representam as etapas que vão da dissociação até a integração de duas culturas e dos cidadãos como um todo. A esposa do conselheiro retrata todo o preconceito existente em relação aos imigrantes. Rejeita qualquer tipo de união entre a sua família paulistana tradicional e a do italiano, novo rico que estava em ascensão social em busca de seu lugar na cidade e da sua cidadania. - Filha minha não casa com filho de carcamano! A esposa do conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi brigar com o italiano das batatas. Teresa Rira misturou lágrimas com gemidos e entrou no seu quarto batendo a porta. O conselheiro José Bonifácio limpou as unhas com o palito, suspirou e saiu de casa abotoando o fraque. (BBBF, A sociedade, p. 25) O sentimento de brasilidade e de cidadania são marcados principalmente em dois contos: Tiro de Guerra nº. 35 e Nacionalidade. A narrativa apresenta o imigrante integrado definitivamente à nova terra. O personagem Aristodemo representa todo 24 este sentimento quando deixa-se contagiar pela chama patriótica do sargento nordestino: Sargento Aristóteles Camarão de Medeiros, natural de São Pedro do Cariri, quando falava em honra da farda, deveres do soldado e grandeza da pátria arrebatava qualquer um. Aristodemo só de ouvi-lo ficou brasileiro jacobino.(...) (BBBF, Tiro de Guerra nº. 35, p. 20) O conto é totalmente ufanista e expressa um exagero patriótico quando finaliza com a demissão do personagem da Companhia de Autoviação Gabrielle d’ Annunzio, para empregar-se em uma outra, na mesma função, mas de nome altamente nacional, na Sociedade de Transportes Rui Barbosa, Ltda.. Percebe-se uma ironia referente à busca do nacional e desses novos mestiços nacionalistas. Certo nacionalismo começava a se consolidar em nosso país e a busca da identidade nacional concretizava-se na recusa dos modelos europeus, distanciando-se da realidade mestiça do povo brasileiro e manifesta- se em Alcântara Machado e especialmente neste conto. Outro dado importante neste conto é o bonde, assim podemos visualizar a condição do trabalhador na cidade e a sua integração social. Através do conto reconhecemos o espaço da cidade demonstrada pelo percurso que o bonde fazia e a condição social do cobrador. Este tinha uma posição social de destaque desde que, as moças da cidade demonstravam interesse em namorá-lo, sendo vítima dos olhares maldosos publicadas em uma seção de fofocas amorosas da revista A Cigarra Então brigou com o cunhado. E passou a ser cobrador da Companhia de Autoviação Gabrielle d’ Annunzio. De farda amarela e poainas vermelas. Sua linha: Praça do Patriarca – Lapa. Arranjou logo uma pequena. No fim da rua das palmeiras. Ela vinha à janela ver o Aristodemo passar (....)(BBBF, Tiro de Guerra nº. 35, p. 19) No conto Nacionalidade o personagem Tranqüilo, italiano, imigrante, reluta em esquecer sua nacionalidade tenta preservar a língua, mantém-se informado das notícias de lá, acalentando o desejo de retorno à terra natal. Porém, aos poucos vai cedendo à influência nacional, deixando-se levar pelo amor a nova pátria, chega a naturalizar-se brasileiro. São Paulo corporifica a própria Ideia de nação e o sentimento de brasilidade é tão forte que facilitou o imigrante assimilar esta Ideia. O cidadão imigrante se 25 caracteriza pelo sentimento de integração na comunidade nacional. Assim, o conto Nacionalidade de Alcântara se verifica algumas tendências de quebra de unidade porque são vozes isoladas que lutam contra os sentimentos patrióticos e o imigrante é visto como elemento integrável, capaz de contribuir para o enriquecimento da nação. Tranqüilo agitou-se todo. Comprou um mapa das operações com as respectivas bandeirinhas. Colocou no salão o retrato da família real. Enfeitou o lustre com papel de seda tricolor. (BBBF, Nacionalismo, p. 47) Nesse contexto, pode-se afirmar que a cidadania dentro das grandes cidades implica em impor leis e sociabilizar o imigrante através de modelos coercitivos que no pensamento de Simmel10 implicaria restrições que impunham ao homem, por assim dizer, uma forma antinatural e desigualdades superadas, injustas. Nessa situação, ergue-se o grito por liberdade e igualdade, a crença na plena liberdade de movimento do individuo em todos os relacionamentos sociais e intelectuais. 3. DIVISÕES E PAISAGEM DA CIDADE 3.1 Os símbolos e suas representações na obra 10 SIMMEL, Georg. A Metrópole e a vida mental. In: O fenômeno urbano . trad. Otávio Guilherme Velho: zahar Editores. Rio de janeiro .p. 24 26 N a obra Brás, Bexiga e Barra Funda de Alcântara Machado, observa-se problemas urbanos, decorrentes do modelo capitalista em desenvolvimento. Assim, o mundo dos homens e principalmente do ítalo-brasileiro é cada vez mais o mundo que modifica com a rapidez que se reproduz a cidade. A morte é o resultado desse desenvolvimento urbano, através dela podemos observar que a cidade crescia em ritmo desordenado, o movimento de carros nas ruas que não estavam adaptadas para recebê-los transmiti a imagem de um lugar em que bondes, carroças, carros e pedestres se misturavam, resultando no afastamento das crianças e das suas brincadeiras. No conto de abertura da obra Brás, Bexiga e Barra Funda, Gaetaninho, há uma divisão de cinco cenas, e o narrador apresenta-se como um locutor radiofônico narrando as imagens de forma objetiva e fria. O automóvel é o objeto de desejo do protagonista, que sonhava em andar de automóvel e ser admirado pelas pessoas. Esse objeto de desejo representa a simbologia do status social e da situação socioeconômica que vivia os italianos nos bairros pobres da grande cidade paulista. Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho. (BBBF, Gaetaninho, p. 11) O automóvel tal como a humanidade é fruto de um processo evolutivo, sendo seus predecessores o carro puxado a cavalos, no qual foi montado um motor a vapor, que inventaram um jeito de parar, aumentar a potência, fabricar em série, etc. Assim como a humanidade deixou o aspecto simiesco, o carro foi perdendo sua semelhança com as carruagens. No século XIX, surgem as primeiras carruagens sem cavalos, movidas a vapor e tão barulhentas e lentas que desanimariam qualquer pessoa. Graças à persistência dos inventores a partir de 1830, foram aperfeiçoados veículos elétricos alimentados por baterias, mais \"rápidos e ”silenciosos\", mas que tinham o inconveniente de não poder percorrer longas distâncias porque logicamente dependiam de carga das baterias. Em 1893, na cidade de São Paulo, em plena Rua Direita, o povo pára pra ver, entre assustado e encantado, um carro aberto com rodas de borracha. Era um automóvel a vapor com caldeira, fornalha e chaminé, levando dois passageiros. Henrique Santos 27
Dumont dirigia no final do século passado em São Paulo um Peuget a gasolina, ele foi trazido alguns anos antes por Alberto Santos Dumont.. São Paulo, em 1900, o então prefeito Antonio Prado instituiu leis regulamentando o uso do automóvel na cidade, já instituindo uma taxa para esse veículo, assim como era feito com os tílburis e outros meios de transportes. Henrique Santos-Dumont, o pioneiro, solicitou ao prefeito isenção do pagamento da recém instituída taxa, alegando o mau estado das ruas. Houve uma discussão entre os dois e a Prefeitura cassa a sua licença, e também a cobiçada placa \"P-1\", que acabou parando no carro de Francisco Matarazzo. Em 1925, chega a General Motors, instalando-se primeiramente num armazém arrendado na Avenida Presidente Wilson, no bairro do Ipiranga São Paulo. O carro é o símbolo de status social e objeto de cobiça de muitos brasileiros, assim percebe-se na obra de Alcântara Machado a simbologia presente e muito forte deste objeto, há em todos os contos referência as marcas e principalmente as cores. As imagens visuais coloridas nos contos é uma das características Simbolista que o autor utiliza-se para representar as cores da bandeira italiana, assim o verde e o vermelho tem presença marcante em várias passagens: Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos ( um de gravata vermelha, outro de gravata verde) e o padrinho seu Salomone. (BBBF, gaetaninho, p. 12) O vestido de Carmela coladinho no corpo é de organdi verde. (BBBF, Carmela, p. 14) O Ângelo Cuoco de sapatos vermelhos .... (BBBF, Carmela, p. 14) Lancia Lambda, vermelhinho, resplandecente, pompeando na rua. Vestido do Camilo, verde, grudando à pele, serpejando no terraço. (BBBF, A Sociedade, p. 25) Alcântara Machado enriquece seus texto com cores, formas e imagens que segundo Djalma Cavalcante11 representa um grafismo e um ritmo narrativo que são só seus. Portanto, o ritmo narrativo de Alcântara e o seu grafismo são representados por cores, uso de negritos, na caixa alta, nas aliterações, tudo isto usado também nas composições das revistas em quadrinhos. 11 CAVALCANTI, Djalma. Antonio escreveu, nós L – V emos.: In: Revista Cult, no. 47, Ano IV, jun/2001, p. 58. 28
Os emblemas são signos que condensam formas e significações, na obra Brás, Bexiga e Barra Funda, esses emblemas são marcados principalmente pelo carro e pelo bonde. O bonde surge nos contos como meio de transporte popular e representa também a situação econômica da população. No conto, Lisetta, duas classes sociais se misturam: a da menina rica e a da menina pobre. O bonde é o elemento que não divide, não hierarquiza, porque todos têm acesso. Admitir a representação do mundo a partir de elementos reais e concretos é assumir o efeito da palavra mágica e da imagem que a própria realidade constitui na literatura, assim o bonde elemento real e presente na cidade, tornam-se o produtor das imagens em vários contos do autor. Os primeiros bondes também foram puxados por cavalos, como os ônibus. Em vez de trafegar nas ruas com um piso bastante irregular, os bondes rolavam sobre trilhos de aço especiais assentados no leito das ruas. O projeto para eletrificação das linhas de bondes da cidade de São Paulo, teve inicio quando o Comendador Antonio de Augusto Souza, diretor da Companhia Viação Paulista em 1896 tivera sua atenção chamada para o Bonde com motor elétrico que acabara de aparecer nos Estados Unidos e nas principais capitais do Velho Mundo. Na cidade de São Paulo a primeira linha construída para o Bonde elétrico foi à linha da Penha. O bonde Barra-Funda fazia o seguinte itinerário: Largo de São Bento, Rua Libero Badaró, Rua de São João, Rua do Seminário, Rua Sta. Ifigênia, General Osório, Alameda Barão de Limeira até o fim na Chácara do Carvalho, efetuando o retorno e voltando pelo mesmo caminho. Esse itinerário está presente na obra de Alcântara Machado, marcando o espaço e o tempo, e também o fascínio que o progresso e as máquinas exerciam no autor: Sua linha: Praça Patriarca – lapa (BBBF, tiro de Guerra 35, p. 190) Na Avenida Água branca os bondes formando cordão esperavam campainhando o é-pereira. (BBBF, Corinthias (2) vs. Palestra(1)p. 34) A leitura e analise da obra de Alcântara Machado equivale a um mergulho no passado, em que os símbolos e suas representações faziam parte do presente que o próprio autor vivia. Há em toda obra um clima de verossimilhança com recortes e imagens autênticas da realidade que Bruno Zeni12 define como representação literária e simbólica de São Paulo. As indicações de ruas e bairros, marcas de produtos, propaganda, entre outros, são simbologias da fisionomia da cidade e de seus moradores, 12 Op. Cit. Nota 1 p. 47 29 portanto, pode-se definir a literatura escrita por Alcântara de memorialista que representa um neo-realismo dentro da ficção brasileira, podendo-se recorrer as enciclopédias ou texto que retratem essa realidade histórica das décadas de 20 e 30. CONSIDERAÇÕES FINAIS 30
O testemunho das transformações políticas, econômicas e sociais do início do século XX é um dos marcos primordiais dos textos de Alcântara Machado. Como fotografias da década de 20 o livro representa uma classe social em ascensão: a dos imigrantes italianos. Sua vida, seus costumes, seu falar, os desejos, sonhos, ambições, são retratados nos contos de uma forma clara, objetiva e precisa. A cidade de São Paulo é o palco das inquietações artísticas e culturais do início do século. É a cidade em transformação e é a cidade que mais produz prosa e poema. Assim, muitos autores trás em sua temática o progresso, as novidades que vinham de Paris, a velocidade dos automóveis, a construção dos arranha-céus, as malhas de transportes sobre trilhos e dos transportes sobre rodas, o crescimento da metrópole com a moradia dos diversos povos e etnias que a maioria dos cronistas da época registrava em seus textos. Alcântara Machado transmite nos seus contos a visão irônica da sociedade do seu tempo, mas revelando o amor que tinha pela sua cidade e berço natal. No olha da cidade e de cidadão presente deixou viva na sua ficção as imagens, sons e ritmo constantes na sua obra. Na obra os nomes dos logradouros têm realmente muito a ver com o imaginário da cidade. É nessa visão que Alcântara expõe suas particularidades, seus tipos e seus valores, ligado às práticas do cotidiano. À medida que as mudanças ocorrem na grande cidade os nomes das ruas são assimilados em relação a historia e a cultura da vida dos imigrantes Num período de intensa agitação, em que a rapidez e a fluidez eram as novas responsáveis pelo turbilhão da vida na cidade, o tempo se acelera e passa a ser elemento precioso na vida das pessoas. Os textos de Alcântara sofrem influência do jornal e da revista, compostos por rápidos artigos e crônicas, que seduziam os leitores. Em uma linguagem considerada telegráfica Alcântara cria seus personagens e define sua obra como um não-livro, o que, reforçado pelo tom de humor do texto, aproxima ao estilo jornalístico e vai além do conteúdo. Chega à forma por meio das frases curtas e da linguagem enxuta, garantindo ao texto um ar de contemporaneidade. E também por meio dos espaços em branco entre os fragmentos do texto, que lembram à 31 organização jornalística. Com essa divisão, o autor consegue passar as informações em formas de “flashes”, mostrando a realidade de modo fragmentado, assim como o jornal. A narrativa dos contos Brás, Bexiga e Barra Funda tem o mérito de integrar um grupo importante para a formação cultural do brasileiro. Ao re-criar macarronicamente a linguagem do imigrante italiano, Alcântara Machado permite a leitura e a identificação de uma forma de expressão da tradição popular marginalizada, rompendo a aura em torno da representação simbólica da assimilação cultural brasileira pelo imigrante que, aparentemente era realizada passivamente. Essas imagens são consideradas através da linguagem e do humor macarrônico mostrando a existência e atuação de uma cultura popular hibridamente integrada para transformar a cultura brasileira. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 32 BRUNO, Ernani da Silva - Tradições e Reminiscências da Cidade de São Paulo. São Paulo, Hucitec/SMC, 3 vol., 1984. CANEVACCI, M. A Cidade Polifônica. São Paulo: Studio Nobel, 1993. CAVALCANTI, Djalma. Antonio escreveu, nós L – V emos.: In: Revista Cult, no. 47, Ano IV, jun/2001 FAUSTO, Bóris - Trabalho urbano e conflito social (1890 -1920). Rio de Janeiro, Difel, 1977. FERRARA, Lucrecia D’Alessio. A construção do império. In: A palavra da cidade: org. Maria Stella Bresciani. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001. GOITIA, Fernando Chueca. Breve História do Urbanismo. Trad. Emilio campos Lima Lisboa: EDITORIAL PRESENÇA, 1982 GOMES, Renato Cordeiro. Todas as Cidades, A cidade. Rio de janeiro:Rocco, 1994. RICUPERO, Rubens. Testemunha da Imigração. In: D.O Leitura Especial/ maio de 2001 MACHADO, António de Alcântara. Novelas Paulistanas: Brás, Bexiga e Barra Funda, laranja da china, Mana Maria, contos avulsos: rio de Janeiro, José Olympio, 1973. MILLIET, Sérgio. António de Alcântara Machado. D. O. leitura Especial: Maio, 2001, ZENI, Bruno. \"Alcântara, inventor de São Paulo\". In: Revista Cult, no. 47, Ano IV, jun/ 2001 SIMMEL, Georg. A Metrópole e a vida mental. In: O fenômeno urbano . trad. Otávio Guilherme Velho: Zahar Editores. Rio de janeiro 33

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