A atualidade de "Gaetaninho" no século XXI

Por Celso Martinez Perez

Alcântara Machado, sintonizado com as aspirações do Modernismo no desejo de representar a nova realidade social e urbana do começo do século, busca nos integrantes da classe operária, principalmente os de origem italiana, os protagonistas dos contos reunidos em Brás, Bexiga e Barra Funda. Ler Alcântara Machado sob a perspectiva do Modernismo é reconhecer, por outro lado, o importante papel que desempenhou na inovação da estrutura da narrativa breve.
Tendo praticado o jornalismo nos periódicos acadêmicos da Faculdade de Direito, ao se formar, em 1923, opta pela carreira de jornalista, ingressando no Jornal do Comércio (Candido; Castelo, 1983:133).
A experiência jornalística de Alcântara Machado pode ser comprovada, na obra Brás, Bexiga e Barra Funda, tanto pelo subtítulo “Notícias de São Paulo” quanto pelo prefácio, Artigo de Fundo, escrito pelo próprio autor. Nesse prefácio, deparamo-nos com a seguinte advertência: “Estes contos não nasceram contos: nasceram notícias” (Machado, 1982:15). Trata-se, antes de tudo, de artigos de jornal, caracterizados pela linguagem precisa, objetiva, direta, e, acima de tudo pela fidelidade a dados concretos e factuais.
A fortuna de “Gaetaninho” (primeiro conto da série), obra-prima de Alcântara Machado, é, indubitavelmente, conseqüência de tais circunstâncias. Através de frases breves, sincopadas, o autor, à maneira da linguagem jornalística, narra os eventos ligados ao universo da personagem Gaetaninho.
No conto “Gaetaninho” nos deparamos com nomes como Beppino, Peronetta..., que não escondem a sua origem italiana. Além da presença de tais nomes, expressões como “Súbito” (em italiano) e o eufemismo “Amassou o bonde” - proveniente da insólita fusão do verbo italiano amazzare, que significa “matar”, com o verbo o “amassar”, em português - servem, igualmente, para demarcar a origem dessas personagens.
Gaetaninho, genuíno representante da classe formada pelos trabalhadores imigrados de humilde condição social, tem um desejo: andar de carro. “Um sonho” Machado, 1982:24). Centrado nesse conflito, um tanto banal, o narrador nos convida a desvendar o drama de Gaetaninho. O convite é, todavia, fugaz. A fala: “¾ Chi, Gaetaninho, como é bom!” (Machado, 1982:23) desencadeia o conflito e é apresentada sem ter relação direta com o que segue: um parágrafo narrativo. A seqüência lógica é propositadamente rompida. Essa fala desperta o interesse do leitor para descobrir quem falou, por que e quando falou. É um fragmento, proposto como elemento estranho ao contexto em que se insere - penúncio da própria estrutura narrativa, construída, ela própria, fragmentariamente.
O fazer artístico da modernidade tem como traço distintivo a preocupação de reproduzir o ritmo frenético da vida urbana com os elementos que a compõem: o motor, o burburinho, o tumulto, a aglomeração humana, as massas de transeuntes em seu contínuo ir e vir, a algazarra, o ruído de máquinas e de homens que acentuam a vida ao ar livre, a sobreposição da técnica ao natural; e, acima de tudo, o caráter efêmero desse cenário maravilhoso, produto da vida moderna.
O conto “Gaetaninho”, de Alcântara Machado, num esforço mimético, procura se aproximar dessa frenética realidade urbana. E, assim, tal qual a linguagem cinematográfica, marcada pela sobreposição da imagem, pela descontinuidade espacial e temporal, pela segmentação, pela découpage, esse conto se constrói e se articula pela superposição de fragmentos. Nisso reside uma das contribuições de Alcântara Machado para a renovação da narrativa breve.
Além da fragmentação, outros aspectos da moderna vida urbana, presentes no conto “Gaetaninho”, podem ser ainda apontados., dentre eles: o carro (“o Ford”); o bonde; personagens, na época, típicos do meios urbanos, como seu Rubino “o acendedor da Companhia de Gás” (Machado, 1982:26); o jogo do bicho; as massas (“Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes...”) (Machado, 1982:25) ; o burburinho (inferido na frase “A gurizada assustada espalhou a notícia na noite”) (Machado, 1982:28); o ruído de máquina, representada, no caso, pelo bonde.
Na passagem: “Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou. No bonde vinha o pai de Gaetaninho” (Machado, 1982:28), a intensidade do ruído produzido pelo bonde se faz referente, no nível sonoro, através de aliterações das consoantes sonoras: /b/, nos signos “bonde” e “bola”; /d/, nos signos “correndo”, “de”, “bonde” e “do”; e /g/, nos signos “Gaetaninho” e “pegou”. Contribuem, igualmente, para sugerir a Ideia de ruído do bonde, a consoante sonora /v/, em “vinha”, e as consoantes explosivas, as bilabiais /p/, em “pegou”e “pai”; e /m/, em “matou” (Martins, 1989:38).
Se bem que a narrativa seja em terceira pessoa do singular, o discurso poderia muito bem ser empregado por Gaetaninho - a razão das constantes repetições no decorrer da narrativa. A linguagem jornalística, adapta-se, assim, à da criança. Essa simultaneidade torna subjetiva a linguagem que se propunha tão extrinsecamente objetiva. Os discursos jornalístico e infantil tornam-se, então, as duas faces, de um mesmo elemento, a linguagem literária.
O leitor é invadido gradualmente pelo humor que perpassa a narrativa. Uma evidência é a afirmação do narrador: “Grito matermo sim: até filho surdo escuta” (Machado, 1982:23). Tal afirmação serve para conotar o medo experimentado por Gaetaninho, diante da ameaça que deve viver, provavelmente, com constância, de levar, uma vez mais, uma chinelada. Isto explica bem a reação: “Diante da mãe e do chinelo parou”, pois “viu a mãe e viu o chinelo”. (Machado, 1982:23). Só lhe resta uma estratégia: ganhar tempo, então “Foi se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho” (Machado, 1982:23), ele finge chorar. Faz-se de fraco. Nada mais do que artimanha.
O “grito materno”: “¾ Subito!” (Machado, 1982:23) é um chamado para a realidade. E Gaetaninho não a considera muito agradável, motivo por que opta pelo sonho: “Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia volta instantânea e varou pela esquerda porta adentro” (Machado, 1982:23). Graças a esse expediente, Gaetaninho consegue escapar da mãe, do chinelo. A mãe e o chinelo, a autoridade e a punição, ambas, metaforicamente, a bola que o craque controla com destreza.
O jogo requer destreza e agilidade do craque. As frases fragmentárias Fazendo beicinho. Estudando o terreno. e sobretudo a frase nominal Recurso de campeão de futebol., ao mesmo tempo que agilizam o avanço da narrativa, acabam por transfigurar-se na própria destreza do craque. Num recurso caleidoscópico, o discurso indireto livre, que arremata essa passagem, “Eta salame de mestre!” (Machado, 1982:24), também uma frase nominal, enfatiza a Ideia que povoa o devaneio de Gaetaninho: ser campeão de futebol.
Os acontecimentos, do modo como são apresentados, passam ao leitor a nítida impressão de estar “vendo” um filme, no decorrer da leitura. Assim, os acontecimentos se sucedem, simultaneamente, como fotogramas de um filme. É esta a razão que levou o contista a optar pela fragmentação da narrativa, ao contar o drama de Gaetaninho.
A fragmentacão procederá, igualmente, da segmentação das frases. Frases que poderiam ser, originalmente, complexas, são transformadas numa série de frases simples (parataxe) (Martins,1989:140), separadas por pontos; algumas até desprovidas de verbos. O parágrafo abaixo pode muito bem nos servir de ilustração:
Ali na rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho.(Machado, 1981:24)
Mais até do que a explicitação da unidade de espaço, esse parágrafo indica que Gaetaninho faz parte da ralé, signo cujo sentido nos ajuda a compreendê-lo social e psicologicamente.
Graças à simultaneidade de eventos díspares, a relação de causa-efeito só se estabelece a partir das constantes idas e vindas, exigidas pela leitura. Assim, é chegado o momento de recuperar a fala: “¾ Chi! Gaetaninho, como é bom!”. Foi Beppino que a emitiu, ao fazer o relato do enterro de tia Peronetta, o qual ele acompanhara de carro.
Gaetaninho tenta mitigar seu sentimento de frustração por não ter podido realizar o sonho de andar de carro. O parágrafo “Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro” (Machado, 1982:24) tem dupla função - uma do ponto de vista do narrador e outra do ponto de vista da personagem. O narrador, de um lado, procura mostrar a necessidade que Gaetaninho sente de fugir da realidade através do sonho, meio de realização de desejo. A personagem, por outro lado, não consegue vislumbrar o modo de compensar suas carências. Para ela o sonho é a única maneira de superar suas limitações e de solucionar seu conflito. A narrativa se constrói, portanto, a partir da tensão proveniente entre realidade e sonho.
Só o sonho lhe permite realizar dois desejos: andar de carro e ficar em evidência -, não só devido à posição que ocupa no cortejo fúnebre: primeiramente, o cadáver da tia, “Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele.”; mas também devido ao seu lugar no carro: “Na boléia do carro. Ao lado do cocheiro”; e devido ainda ao modo como está vestido: “Com a roupa marinheira..., com a palhetinha nova... E ligas pretas segurando as meias”; e, finalmente, devido à atenção que as pessoas lhe dispensam: “muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Gaetaninho” (Machado, 1982:25).
No sonho, o cortejo fúnebre que Gaetaninho projeta para levar “a tia Filomena para o cemitério” (Machado, 1982:25), adquire o caráter de uma imponente encenação. Vários elementos conferem teatralidade à cena: a entrada, em seqüência das personagens no palco dos acontecimentos; a indumentária do protagonista; a compungida manifestação de dor de “Savério noivo dela de lenço nos olhos”; a presença de uma platéia, formada por “Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes...”.
O discurso indireto livre concorre, em todo o conto, para a interpenetração do discurso do narrador e da fala da personagem, tendo agora, ao se narrar o sonho de Gaetaninho, papel significativo, por servir de ênfase às suas projeções.
Como todo sonho, o de Gaetaninho também se compõe da fragmentação. Assim, inúmeras frases fragmentárias vão sendo pulverizadas pelo narrador no decorrer do parágrafo, forma de mimetizar a conformação do sonho:
Que beleza, rapaz!.... Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boléia do carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: Encouraçado São Paulo.(...) E ligas pretas segurando as meias. Que beleza, rapaz! Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos (...) e o padrinho seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Gaetaninho. (Machado, 1982:25)
Ainda que o humor perpasse toda a narrativa, a condição social e o destino da personagem principal não impedem o seu patético desfecho. Gaetaninho tem encontro marcado com a morte “bem no meio da rua” (Machado, 1982:23). Ironicamente “um bonde o pegou. Pegou e matou” (Machado, 1982:28) - morte destituída da grandeza sonhada por Gaetaninho.
Gaetaninho não chega, então, a concretizar seu sonho de andar de carro. O leitor acaba conscientizando-se de que se trata de um sonho impossível, pois “(...) o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho” (Machado, 1982:24). O destino da personagem está, assim, definitivamente traçado. Ao se valer da repetição um sonho - uma frase nominal -, o narrador oferece ao leitor atento a pista para a compreensão do destino da personagem.
O desfecho, enigmaticamente anunciado no decorrer da trama, está, no entanto, previsto desde o início da narrativa: na iminência do atropelamento pelo Ford; no fato de, “Ali na rua Oriente”, se andar “De automóvel ou de carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou casamento” (Machado, 1982:24); na cena em que Beppino “atravessa a cidade... Atrás da tia Peronetta que se mudava para o Araçá”; finalmente, no jogo de bola: “O jogo na calçada parecia de vida ou morte” (Machado, 1982:27).
Mais dissimulada aqui, anunciada abertamente mais adiante, a morte está sempre presente nesse jogo. Não há ilusão. A não ser na linguagem, e só através dela - linguagem jornalística, que, num jogo metalingüístico, se metamorfoseia em infantil, cinematográfica, teatral.
Numa metrópole, como São Paulo, a vida acontece na rua, cenário em que todos os segmentos da sociedade urbana convivem. O conto todo está marcado por fatos ocorridos na rua - cenário necessário da modernidade. Desde o segundo parágrafo, o narrador indica onde se encontra Gaetaninho: “bem no meio da rua” (Machado, 1982:23).
Aí duas esferas vão-se superpor: uma será recuperada a partir de “bem no meio da rua”; a outra, a partir de “banzando”.
A primeira esfera vai servir de indício do desfecho do conto. É “bem no meio da rua” em que a fatalidade virá intervir na vida de Gaetaninho.
Banzando faz alusão tanto a banzo, de origem africana, como a banzé, cuja significação é “desordem”. Destes vocábulos brasileiros deriva o verbo banzear (agitar, mover, balouçar) e mesmo banzar (Holanda Ferreira, 1986:230), empregado pelo autor. Todas as acepções vão contribuir para explicar o sentimento expresso por Gaetaninho: o estado de superexcitação vivido por ele neste momento.
No conto “Gaetaninho”, seu protagonista acha-se integrado na metrópole paulistana. Uma prova dessa integração se evidencia na formação do diminutivo “Gaetaninho”, constituído do nome italiano Gaetano e do sufixo da língua portugesa “inho”.
Existe uma distância, muitas vezes, intransponível, entre a integração e a ascensão. Para Gaetaninho, a integração, tão somente, não satisfaz. Ele deseja, mais do que tudo, a ascensão. É o que se depreende do seu sonho. A morte, forma cruel de ceifar suas aspirações de ascensão, se interpõe ao seu destino. A impossibilidade de o menino, morador da rua Oriente, “tão feio de sardento”, concretizar seu desejo de andar de carro, passa a significar a distância existente entre as aspirações dessas personagens imigradas e sua reais condições.
A morte - o clímax do conto - se dá bem no meio da rua, espaço próprio da modernidade, e acontece num átimo de tempo. Para que essa Ideia seja decodificada pelo receptor, o narrador possibilita a apreensão do fato por meio de um ato de leitura que se concretiza num ritmo acelerado. Dessa forma, as frases, antes de assumirem uma estrutura complexa, se justapõem, numa seqüência de frases simples, forma de sugerir o ritmo frenético que culminou com a morte do protagonista.
O discurso direto: "Sabe o Gaetaninho?" - "Que é que tem?" - "Amassou o bonde!" (Machado, 1982:28); reitera igualmente a Ideia de ritmo frenético. Assim como o atropelamento e a morte se deram num átimo de tempo, a notícia, espalhada pela gurizada, também ocorre numa fração de tempo. O próprio ritmo da vida moderna assim se projeta. O recurso à metalinguagem é o que garante a fortuna do procedimento construtivo empregado pelo narrador.
A atualidade de “Gaetaninho” é conseqüência do primor estilístico com que Alcântara Machado se impõe a tarefa de exprimir as alterações lingüísticas, de relacões sociais e comportamentais por que passava São Paulo, em decorrência da presença do imigrante italiano. As frases, ora incompletas, ora fragmentárias, dão conta da própria incompletude do processo vital imposto ao protagonista, impedido de ultrapassar esse instante privilegiado, enfocado pelo conto. As carências de Gaetaninho impõem-lhe uma visão fragmentada da própria realidade, justificando-se, assim, os processos sintáticos escolhidos pelo narrador para perpetrar seu discurso literário.
A atualidade de “Gaetaninho” não advém, no entanto, exclusivamente do modo como se mimetiza a realidade por meio da narrativa fragmentária, mas também do enfoque centrado na personagem sem perspectivas de ascensão social, cuja construção psicológica, constituída por meio de sonhos e devaneios, o narrador pretende desvendar para o leitor. Assim, a personagem problemática é referência metalingüística para a problematização da própria narrativa que se constrói a partir do diálogo do código verbal com outros códigos, numa relação especular em que estes mediatizam aquele, por meio de recursos expressivos do âmbito sonoro, lexical e sintático.

Fonte: www.gel.org.br