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Arthur Azevedo foi um importante contista, dos melhores e mais profícuos da literatura brasileira de todos os tempos. Apesar de considerado (pos-mortem) um autor “superficial”, “fútil”, e até mesmo “vulgar” – foi muito mais do que um prosaico contador de estórias e histórias, foi um documentarista muito específico do tempo em que viveu. Há na obra de Azevedo um conteúdo de crítica social muito intenso – notoriamente quanto à escravidão, assim como,aqui e ali, manifestações de cunho político. Seus textos revelam um arguto observador da vida social, um perspicaz comentarista de comportamentos e sentimentos humanos, um atilado crítico moralista – existe uma moralidade intrínseca em cada um deles, no retratar a seu modo as comédias e tragédias, os dramas e o burlesco dos homens não apenas de sua época mas de todas elas; seus protagonistas e personagens são ‘criaturas de carne e osso’ com que nos deparamos cotidianamente nas ruas de qualquer meio urbano , criaturas humanas com seus impulsos e bloqueios, seus sentimentos e emoções, suas imperfeições e contradições, suas idiossincrasias e dissimulações, seus defeitos e virtudes. Azevedo pressentiu e colocou em seus escritos, quer contísticos, quer teatrais, quer croniquescos, as incisivas transformações pelas quais passava a sociedade do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX – transformações políticas, econômicas, urbanas, manifestas inclusive nos comportamentos sociais e na própria literatura, na qual a ‘ideologia’ romântica, característica do Romantismo expresso sobretudo por Macedo e Alencar , dava sinais de esgotamento , o eixo da vida social e mesmo conjugal deslocando-se para fora do lar, a rua tornando-se o ambiente primordial da narrativa e da temática quer ficcional quer não-ficcional. Tais mutações foram exemplarmente entrevistas e assimiladas por ele em suas peças, suas crônicas e especificamente em seus contos, impondo em todos os textos, em maior ou menor grau, a transformação da perspectiva romântica em realista – no caso de Azevedo, condimentada esta por irresistíveis doses de humor, ironia e sátira. Os textos ficcionais e não-ficcionais de Arthur Azevedo na verdade constituem um significativo painel da própria sociedade brasileira de seu tempo, envolvendo diversos gêneros e criando novas possibilidades de criação literária, como contos e crônicas dramáticas, teatro em verso e prosa, contos em versos; forneceu a matriz para uma espécie de contística carioca, pois a caracterização dos personagens é sempre de forma a construir o perfil do habitante e da cidade. Seus contos são considerados os introdutores das classes médias na literatura nacional, a oralidade com papel preponderante nas narrativas – todos seus escritos, a rigor, se aproximam da representação de uma comédia, muitos são piadas transcritas (“Sou um contador de histórias e tenho que inventar um conto por semana”). Tudo o que se passava nas ruas ou nas casas lhe forneceu assunto para as histórias. Azevedo foi um inovador. Inventou um gênero ficcional: o conto-comédia, expressão cunhada por ele inaugurada no conto “Como me diverti!” (publicado na coletânea Contos fora de moda) e presente em boa parte de sua contística, unindo de forma e modo inéditos, e como ninguém, o teatro – do qual era autor profícuo e consagrado – e a prosa narrativa, explorando ao máximo o parentesco, a intimidade de linguagem existente entre eles. Em Azevedo, antes e acima de tudo um magnífico comediógrafo, um mestre de diálogo, nada mais natural e coerente que transmutasse ao conto e ao processo de composição narrativa deste toda a fluência, a leveza, a comicidade, a dialogação – sem digressões – da peça teatral, logrando a perfeita simbiose, numa criativa via de mão dupla, convertendo o conto em peça teatral e a peça em conto, de um recolhendo argumento e enredo para outro. À teatralidade, aliada à oralidade e ao coloquialismo, condimentados pelo anedótico – os elementos primordiais de sua contística – deve-se um (a par de outros fatores) porquê ter conquistado tantos leitores da época. A oralidade e o coloquialismo introduzidos em sua linguagem narrativa fizeram-no também um reformista, em franca e deliberada contraposição à escrita beletrista, nefelibata, retórica e floreada, sob a égide da recém-implantada República e suas aspirações ‘modernizantes’, que se impunha entre os ditos intelectuais e que caracterizaria acentuadamente a literatura e o jornalismo nas décadas de 1890 e de 1900; o estilo azevedino forneceria a ‘senha’, anteciparia e apontaria os elementos básicos que viriam a modular e formatar a linguagem – contestadora e renovadora no cenário da literatura brasileira – de Lima Barreto, no início do século XX, e depois assimilada pelos modernistas de 1922, anunciando uma trilha rumo à linguagem literária urbana do século XX e à ficção contemporânea. Em outro viés, a narrativa contística de Arthur Azevedo – explorando ad nauseam a ironia crítica, a sátira, o sarcasmo, o anedótico, a paródia, e mais do tudo, certa malícia, uma espécie de ‘humor malicioso’ que permeia as entrelinhas, incorporando o mais autenticamente possível o linguajar do homem comum, expressa concretamente um real ‘instinto de brasilidade’, ou melhor, aquele “instinto de nacionalidade” sobre o qual tanto refletiu Machado de Assis, Azevedo pode ser considerado como lídimo representante e executor do mais fino e autêntico humor nacional, valendo-se de verve ao mesmo tempo crítica e moralizadora, embora nele nem tudo se exerça por meio da sátira e da crítica: muitas vezes a conivência e simpatia com determinados personagens e situações emergem de suas linhas e entrelinhas, chegando mesmo à ternura. Nesse sentido, o contista Azevedo interagiu – para usar um termo de hoje – seus protagonistas e personagens com os leitores, estes integrados à perfeição com aqueles. Pouquíssimos escritores ficcionais, nem mesmo Machado, criaram e mantiveram por toda sua produção tamanha intimidade com o leitor, como um rito ‘sem-cerimônia’ de identificação e confraternização solidária – outro dos porquês da notável popularidade conquistada por seus contos. A identificação inequívoca e inconteste do homem comum com a literatura de Azevedo – qual “máscaras modeladas nas feições de um ser vivo” – constitui per se um dos fatores a conferir à sua obra um dom de certa posteridade. Converteu o leitor num aliado, mercê da familiaridade plena com os personagens, estes traçados e desenhados à imagem do homem comum habitante da cidade do Rio de Janeiro na época, retratado nas histórias sem disfarces, nuances, sutilezas ou retoques (e retoque, muito menos artifícios narrativos, estilísticos, temáticos, tramáticos, de escrita ou de linguagem, como sabemos, foi um expediente ou ‘técnica’ de que Arthur Azevedo jamais se valeu…). *Mauro Rosso é professor; pesquisador de literatura; ensaísta; escritor; autor de São Paulo, a cidade literária (2004); Cinco minutos e A Viuvinha, de José de Alencar: edição comentada (2005); Contos de Machado de Assis: relicários e raisonnés (2008); Contos de Arthur Azevedo: os “efêmeros” e inéditos (2009); co-organizador (com Gustavo Franco) da coletânea Machado de Assis e a economia: o olhar oblíquo do acionista (2007); idealizador e organizador do conjunto digital contos de Machado de Assis em chaves temáticas, in GerminaLiteratura, 2008. Fonte: www.debatesculturais.com.br |