|
1847: A 14 de Março, na fazenda Cabaceiras, perto de Curralinho, Bahia, Brasil, nasce António Frederico de Castro Alves, filho de D. Clélia Brasília da Silva Castro e do Dr. António José Alves. – 1854: A família Alves vai morar em Salvador. – 1859: Morte de D. Clélia, mãe do poeta. – 1862: António Frederico de Castro Alves e o seu irmão José António vão estudar no Recife. – 1863: Castro Alves publica “A Canção do Africano”, os seus primeiros versos abolicionistas. Apaixona-se pela actriz portuguesa Eugénia Câmara. – 1864: Desequilíbrio mental e suicídio de José António. Castro Alves matricula-se no 1.º ano da Faculdade de Direito de Recife. Escreve o poema “O Tísico” (ao qual dará depois o título “Mocidade e Morte”). – 1865: Em Recife, na abertura do ano lectivo declama o poema “O Século”. Começa a elaborar os poemas de “Os Escravos”. – 1866: Morte do Dr. Alves, pai do poeta. Este matricula-se no 2.º ano de Direito.
Dois clandestinos na máquina do tempo
A mucama
Junto ao fogo, uma africana, Sentada, o filho embalando, Vai lentamente cantando Uma tirana indolente, Repassada de aflição, E o menino ri contente... Mas treme e grita gelado, Se das palhas do telhado Ruge o vento do sertão. A meu lado, comenta o Maestro Tabarin:
O ginásio baiano
Se o índio, o negro africano, E mesmo o perito Hispano Tem sofrido servidão; Ah! Não pode ser escravo Quem nasceu no solo bravo Da brasileira região! O Ginásio Baiano é um viveiro de tribunos. Em 1858 o Dr. Alves reconstrói o solar da chácara Boa Vista. Pretende que a sua esposa, exausta mãe de seis filhos, saúde frágil, ali repouse e ganhe forças. Em vão. D. Clélia falece em 1859.
Eu sei que vou morrer
Recorda-te do pobre que em silêncio De ti fez o seu anjo de poesia, Que tresnoita cismando em tuas graças, Que por ti, só por ti, é que vivia, Que tremia ao roçar do teu vestido, E que por ti de amor era perdido... Mas, na ribalta, também a actriz Adelaide Amaral disputa o coração dos espectadores (jornalistas, escritores, artistas, estudantes muitos). Duas claques aguerridas, vaias, aplausos, pateadas, loas e cantigas de escárnio, bebedeiras no fim da noite. Na manhã seguinte, nos jornais, elogios e doestos, ora a uma, ora a outra. Tobias Barreto é o chefe da claque pró Adelaide. Castro Alves o da claque pró Eugénia. Esta é amante do actor Furtado Coelho, do qual tem uma filha pequena. O que não trava os avanços do Secéu, adolescente sedutor, porte esbelto, tez pálida, olhos grandes, cabeleira farta e negra, voz possante, sempre vestido de preto, elegância, nostalgia. Embora tenha 10 anos mais do que o poeta, a Dama Negra não se esquiva; do romance que desponta, adia apenas a florada.
E eu sei que vou morrer... dentro em meu peito Um mal terrível me devora a vida: Triste Ahasverus, que no fim da estrada, Só tem por braços uma cruz erguida. Sou o cipreste que inda mesmo flórido Sombra de morte no ramal encerra. Vivo vagando sobre o chão da morte, Morto entre vivos a vagar na terra. Mas dirá depois: “Para chorar as dores pequenas, Deus criou a afeição; para chorar a humanidade – a poesia.” Poeta-Condor
O Século é grande... No espaço Há um drama de treva e luz. Como Cristo - a liberdade Sangra no poste da cruz. (...) A escandalizar: Quebre-se o ceptro do Papa, Faça-se dele uma cruz. A púrpura sirva ao povo Pra cobrir os ombros nus. E, com “Os Escravos”, a amedrontar até os abolicionistas moderados: (...) Somos nós, meu senhor, mas não tremas, Nós quebramos as nossas algemas Pra pedir-te as esposas ou mães. Este é o filho do ancião que mataste. Este - irmão da mulher que manchaste... Oh, não tremas, senhor; são teus cães. (...) Cai, orvalho de sangue do escravo, Cai, orvalho na face do algoz, Cresce, cresce, seara vermelha, Cresce, cresce, vingança feroz. (...) Tribuno, poeta-condor a adejar sobre a multidão em delírio, ovações, são as ânsias de liberdade a sacudir o Brasil. Pressa
Pomba d’esp’rança sobre um mar d’escolhos! Lírio do vale oriental, brilhante! Estrela vésper do pastor errante! Ramo de murta a recender cheirosa!... Tu és, ó filha de Israel formosa... Tu és, ó linda sedutora Hebreia... Pálida rosa da infeliz Judéia Sem ter o orvalho, que do céu deriva! Retorna ao Recife, matricula-se no 2.º ano de Direito. Com Rui Barbosa e outros colegas funda uma sociedade abolicionista. No Teatro Santa Isabel declama o poema “Pedro Ivo”, exaltação do herói da revolta Praieira e do ideal republicano: Cabelos esparsos ao sopro dos ventos, Olhar desvairado, sinistro, fatal, Diríeis estátua roçando nas nuvens, Pra qual a montanha se fez pedestal. (...) República! Voo ousado Do homem feito condor! (...) Consolidará a imagem: A praça! A praça é do povo Como o céu é do condor... Participa na fundação do jornal de ideias “A Luz”. Torna-se amante de Eugénia Câmara e convence-a a fugir com ele para, (...) A todos sempre sorrindo, Bem longe nos ocultar... Como boémios errantes, Alegres e delirantes Por toda a parte a vagar. Pressa, tem muita pressa. Escreve, em prosa, o drama “Gonzaga” ou “A Revolução de Minas”. Organiza manifestação contra o espancamento de um estudante republicano. Em Maio de 67 abandona, de vez, o Recife. Viaja, com Eugénia, para a Bahia. Mudam-se para a chácara Boa Vista. Um cão de guarda, já muito velho, vem lamber-lhe a mão. Memórias, melancolia... A erva inunda a terra; o musgo trepa os muros; A urtiga silvestre enrola em nós impuros Uma estátua caída, em cuja mão nevada A aranha estende ao sol a teia delicada. No Teatro São João, Eugénia desempenha o principal papel feminino do “Gonzaga”. Sucesso, consagração do autor em cena aberta, embora as senhoras da capital baiana torçam o nariz à ligação do poeta com uma “cómica de má vida”.
Rio de Janeiro
(...) Às vez quando o sol nas matas virgens A fogueira das tardes acendia... (...) comentará: - Aí está, em dois versos, toda a poesia dos trópicos.
Fere estes ares, estandarte invicto! Povo, abre o peito para nova vida! Talvez agora o pavilhão da pátria Açoite altivo Humaitá rendida. Sim! pela campa dos soldados mortos, Sim! pelo trono dos heróis, dos reis; Sim! pelo berço dos futuros bravos, O vil tirano há-de beijar-lhe os pés. Em Março de 68, Eugénia Câmara e Castro Alves viajam para São Paulo. Ali, na Faculdade do Largo de S. Francisco, o poeta pretende concluir o curso de Direito. Porém, mais do que o estudo, mobilizam-no os grandes ideais da Abolição e da República, também a agitação académica a fluir das arcadas da Faculdade. Em sessão magna, pela primeira vez declama o “Navio Negreiro”: Era um sonho dantesco... O tombadilho Que das luzernas avermelha o brilho, Em sangue a se banhar, Tinir de ferros... estalar de açoite... Legiões de homens negros como a noite Horrendos a dançar... Negras mulheres, suspendendo às tetas Magras crianças, cujas bocas pretas Rega o sangue das mães; Outras, moças, mas nuas e espantadas, No turbilhão de espectros arrastadas, Em ânsia e mágoa vãs! E ri-se a orquestra irónica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doidas espirais... Se o velho arqueja, se no chão resvala, Ouvem-se gritos... o chicote estala. E voam mais e mais. Presa nos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia E chora e dança ali! Um de raiva delira, outro enlouquece, Outro, que de martírios embrutece, Cantando, geme e ri! No entanto, o capitão manda a manobra, E após, fitando o céu que se desdobra Tão puro sobre o mar, Diz do fumo entre os densos nevoeiros: “Vibrai rijo o chicote, marinheiros! Fazei-os mais dançar!...” E ri-se a orquestra irónica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doidas espirais... Qual num sonhos dantesco as sombras voam! Gritos, ais, maldições, preces ressoam E ri-se Satanás!... Conclui o poeta: Auriverde pendão da minha terra, Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que a luz do sol encerra, E as promessas divinas da esperança... Tu, que da liberdade após a guerra, Foste hasteada dos heróis na lança, Ante te tivessem roto na batalha, Que servires a um povo de mortalha! Dirá Joaquim Nabuco: “Quem visse Castro Alves em um desses momentos em que se inebriava de aplausos, vestido de preto para dar à fisionomia um reflexo de tristeza, com a fronte contraída como se o pensamento a oprimisse, com os olhos que ele tinha profundos e luminosos fixos em um ponto do espaço, com os lábios ligeiramente contraídos de desdém ou descerrados por um sorriso de triunfo, reconheceria logo o homem que ele era: uma inteligência aberta às nobres ideias, um coração ferido que se procurava esquecer na vertigem da glória.”
É noite ainda! Brilha na cambraia - desmanchado o roupão, a espádua nua - O globo do teu peito entre os arminhos Como entre as névoas se balança a lua... O par separa-se em Setembro de 68. Encontram-se, pela última vez, em Outubro, quando Eugénia sobe ao palco do Teatro São José para, mais uma vez, interpretar o principal papel feminino do “Gonzaga”.
O derradeiro encontro
Quis te odiar, não pude. – Quis na terra Encontrar outro amor. – Foi-me impossível. Então bem disse a Deus que no meu peito Pôs o germe cruel de um mal terrível. Sinto que vou morrer! Posso, portanto, A verdade dizer-te santa e nua: Não quero mais o teu amor! Porém minh’alma Aqui, além, mais longe, é sempre tua. Uma semana depois embarca para a Bahia. Doente, e aleijado, o poeta retorna a casa. Castro Alves recorda a sua infância. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica. Recebido efusivamente por Maria (a madrasta) por Augusto Álvares Guimarães (o cunhado e grande amigo), por Guilherme (o irmão), e por Elisa, Adelaide (esposa de Augusto) e Amélia, as três irmãs que o endeusam. É curta a permanência de Castro Alves em Salvador. Apenas o tempo necessário para coligir os poemas para a edição de “Espumas Flutuantes”. Relembra São Paulo, onde alcançara a glória, nostalgia: Tenho saudades das cidades vastas Dos ínvios cerros, do ambiente azul... Tenho saudades dos cerúleos mares, Das belas filhas do país do sul. Tenho saudades de meus dias idos - Pét’las perdidas em fatal paul - Pét’las que outrora desfolhámos juntos, Morenas filhas do país do sul. Depois abala para o sertão onde, segundo os médicos, o clima seco será mais favorável aos seus pulmões. Passará o tempo a escrever e a desenhar.
Hora meiga da Tarde! Como é bela Quando surges do azul da zona ardente! Tu és do céu a pálida donzela Que se banha nas termas do oriente... Quando é gota do banho cada estrela Que te rola da espádua refulgente... E, - prendendo-te a trança a meia lua, Te enrolas em neblinas seminua!... Eu amo-te, ó mimosa do infinito! Tu me lembras o tempo em que era infante. Inda adora-te o peito do precito No meio do martírio excruciante; E, se não te dá mais da infância o grito Que menino elevava-te arrogante, É que agora os martírios foram tantos, Que mesmo para o riso só tem prantos!... (...) E na fazenda de Sta. Isabel do Orobó, o reencontro com Leonídia Fraga, sua prometida de menino e hoje donzela airosa que por ele esperara sempre. Reacender a paixão primeira? Para quê, se a morte ronda? A si mesmo diz o poeta: Talvez tenhas além servos e amantes, Um palácio em lugar de uma choupana. E aqui só tens uma guitarra e um beijo, E o fogo ardente de ideal desejo Nos seios virgens da infeliz serrana! Leonídia, a “infeliz serrana”, ficará para sempre à sua espera. Acabará por enlouquecer. AGNESE Fizeram-lhe bem os ares do sertão, sente-se melhor e regressa a Salvador. As “Espumas Flutuantes” são editadas, correm de mão em mão e o poeta é saudado e louvado em cada esquina.
No camarote gélida e quieta Por que imóvel assim cravas a vista? És o sonho de neve de um poeta? És a estátua de pedra de um artista? Renascera contudo o optimismo e o poeta tornara ao teatro, longe já vai o tempo da Dama Negra... Ouve recitar a sua “Deusa Incruenta”, exaltação do papel educativo da Imprensa: Oh! Bendito o que semeia Livros à mão cheia E manda o povo pensar! O livro, caindo n’alma É germe – que faz a palma, É chuva – que faz o mar! E em Outubro de 70 é ele mesmo quem declama, no comício de apoio às vítimas francesas das tropas de Bismarck: Já que o amor transmudou-se em ódio acerbo, Que a eloquência é o canhão, a bala - o verbo, O ideal – o horror! E, nos fastos do século, os tiranos Traçam co’a ferradura dos uhlanos O ciclo do terror... (...) Filhos do Novo Mundo! Ergamos nós um grito Que abafe dos canhões o horríssono rugir, Em frente do oceano! Em frente do infinito Em nome do progresso! Em nome do porvir! É a sua última aparição em público. O estado de saúde agrava-se. Recolhe-se à casa da família. Em 71, na noite de 23 de Junho aproxima-se da varanda. O fumo das fogueiras de São João provoca-lhe um acesso de tosse que o deixa prostrado. Febre alta, hemoptises. Ordena a Adelaide que impeça a visita de Agnese. Não consente que a Diva derradeira contemple a sua ruína física. A 6 de Julho pede que o sentem junto a uma janela ensolarada. A contemplar o longe, morre às 3 e meia da tarde. 24 anos, vida breve, intensidade.
|