Nome do Escritor: Ricardo Costa Deotti
Capítulo I - Sequência 1 - Livro Chorum - Andando sobre as águas!
Os guevedoces são pessoas que têm uma síndrome muito rara. As meninas se tornam meninos entre 10 e 12 anos. Seus genitais e órgãos reprodutivos internos se atrofiam e desenvolvem pênis e gônadas que se tornam perfeitamente funcionais quando completo o processo. Na verdade, são meninos que nasceram meninas e assim permanecem até o início da puberdade, quando ocorre uma grande turbulência hormonal e com ela a transformação definitiva. Daí para frente se tornam meninos normais, com sistema reprodutor absolutamente normal e funcional, como qualquer outro menino. São comuns na região de Las Salinas, na República Dominicana, 1 a cada 90 meninos, e em algumas regiões da Turquia, Egito e Papua Nova Guiné. Las Salinas é uma pequena cidade de cinco mil habitantes que fica na província de Barahona, na região sudoeste da República Dominicana. Helena era um guevedoce. Não havia, ao que se saiba, relatos anteriores de ocorrência da síndrome no Brasil, mas Helena a tinha e sequer imaginava, nem ela nem ninguém.
– Ê Helena, vá colher pitangas prá mãinha!
– Ah! Tá chovendo mãinha!
– Tá nada. Vá logo. Chame Neinha prá ir com você.
– Neinha tá na aula, mãinha. Depois chamo Neinha.
– E ela estudia de tarde é? Chame Neinha e vá catar pitangas, menina.
Tenho que fazer licor pro São João. Depois vem me ajudar aqui! Seu pai chega amanhã e ele mandou fazer licor. Vá logo.
– Painho chega amanhã mãinha? Êêêh! Ele ligou foi?
– Ligou. Ele já está em Teixeira de Freitas.
Data de Nascimento: 26/03/1958
Capítulo I - Sequência 2 - Livro Chorum - Andando sobre as águas!
Helena criou vida nova. Estava morrendo de saudades do pai. Ele tinha um caminhão bem grande e de vez em quando viajava para longe, ficava dias e dias fora e sempre trazia presentes quando voltava. Chegava feliz, a chamava para brincar, para passear, ficava horas e horas com Helena a divertindo, contando histórias, casos da viagem, as cidades por onde passara, coisas da estrada, umas boas, outras feias. Seu irmão, Fabiano, era dois anos mais velho e também adorava o pai. Já trabalhava com ele no hotel fazendo manutenção, cortando grama, trocando lâmpadas, consertando panelas, pondo colchões no sol, estas coisas. Chegava da escola e não parava mais. Trabalhava muito para ajudar o pai. Só não mexia na cozinha porque era perigoso, sua mãe não deixava. Depois que ele quase se queimou com óleo quando ia lavar a frigideira, sua mãe o proibira de mexer na cozinha. No fundo ele não gostava mesmo de mexer na cozinha, só mesmo para lambiscar, assaltar a geladeira, comer as coisas que ficavam nas cestinhas que sobravam das mesas, estas coisas. Às vezes os hóspedes nem mexiam nos pratos, frutas e sobremesas. Helena foi correndo chamar Neinha para catar pitangas para sua mãe. Havia uma pitangueira bem carregada umas duas ruas para baixo e ela sempre estava assim, o chão às vezes forrado de frutinhas. Dava dó.
– Ê Neinha, painho chega amanhã. Mãinha falou!
– Desta vez você me dá umas coisas daquelas que seu pai trás? Eu estou te ajudando né? Lembra daqueles biscoitos que ele trouxe aquela vez, aqueles grandões?
– Lembro! Que delícia. Pegue estas aqui.
Local de Nascimento: Juiz de Fora MG
Capítulo I - Sequência 3 - Livro Chorum - Andando sobre as águas!
Helena era uma menina bonita, pele lisinha, mais alta que as amiguinhas, despachada, esperta, mandava em todo mundo e a todos liderava, ariana que era. Queria brincar e conversar com todos e sempre conseguia. Vivia se machucando com suas correrias. Ajudava muito a mãe nas cozinhas, a de casa e a do hotel. Ela já estava aprendendo a cozinhar, a puxar bala de coco, limpar peixes, quebrar cacau, recolher ovos, estas coisas. Só não podia mexer no fogão porque era perigoso. Sua mãe não deixava. Helena não era negra nem branca. Nem mulata. Sua pele tinha uma cor diferente, meio achocolatada. Era morena, uma morena muito bonita. Não gostava de ficar na sala de aulas, mas adorava estudar e amava ir à escola, conversar com as amigas, brincar na entrada, comer as coisas no recreio, paquerar os meninos...
Os meninos não! Sua atenção se concentrava em um deles, que era diferente. O mais bonito, o mais tudo. Ela não sabia o nome dele, mas ele era diferente. A irmã dele era sua colega de sala, mas era chata, muito metida, não gostava dela. Mesmo assim Helena insistia em chama-la para brincar, procurava desculpas para falar com ela, oferecia merendas. Às vezes ela aceitava, mas ficava nisto. Tinha outras amigas. Camamú é uma cidade pequena, mas movimentada. A maior parte das pessoas mora nas fazendolas em torno, a maioria pequenas propriedades escondidas sob as grandes árvores da Mata Atlântica, em uma de suas últimas frações remanescentes. Olhando de cima não se viam, na época, cercas nem estradas, só a floresta. Uma região de muita fartura, muita água, frutas, peixes, lavouras pequenas, mas numerosas, onde se produzia mandioca, milho, guaraná, cravo, látex e feijão de corda. Chove muito o ano inteiro, chuvas bem distribuídas. Lá não há praias porque é região de mangues, extensos mangues que se estendem por toda a barra da foz de três rios que formam uma bela baía. Os pescadores têm que se afastar quase uma hora pelo rio Orojo, o principal, até ganharem o marzão, remando muito porque no mangue venta pouco e não dá para usar velas. Nem eles tinham o hábito de usa-las. A maioria utilizava pequenas canoas entalhadas na madeira, farta na região. Os barcos maiores têm motores a diesel e aí podem sair mais tarde. Havia fartura de peixes, uma grande diversidade. No mar em frente, de vez em quando se veem baleias jubarte em transito na rota de Abrolhos. Vêm de longe, sem pressa, brincando e dançando pelo caminho, como que comemorando a chegada a seus ninhos de procriação. Vêm todos os anos.
Formação Acadêmica: Engenheiro Agrònomo
Capítulo I - Sequência 4 - Livro Chorum - Andando sobre as águas!
Antigamente se produzia muito cacau na região, muito cacau. Os cacaueiros ficavam na sombra da floresta e havia uma parceria bonita entre eles, a floresta os protegendo e eles protegendo a floresta, uma convivência perfeita. Havia muita prosperidade, grandes fazendas que geravam muitos empregos e renda. A vassoura-de-bruxa acabou com tudo, uma doença impiedosa que arruinou os cacaueiros. Ela já estava na região, mas havia boa resistência a elas, uma resistência desenvolvida naturalmente pelas variedades de cacaueiros por ali cultivadas. Uma cepa de fungos de Rondônia foi esparramada pela região de forma criminosa. Contra ela não havia resistência. Seis políticos de Itabuna, de um partido terrorista, dispostos a subtrairem o poder dos latifundiários-opressores-dos-escravos-operários, indignos burgueses que consideravam, foram a Rondônia buscar ramos de cacaueiros infectados e os distribuíram estrategicamente por todo o sul da Bahia, até então a maior região produtora de cacau do país. Fizeram várias viagens a Rondônia com esta finalidade e não descansaram enquanto a doença não se disseminou de forma inclemente por toda a região. Foi a ruína completa da produção de cacau, só parcialmente recuperada muitos anos depois quando se conseguiu produzir variedades resistentes à cepa exótica de fungos. Nunca mais a produção foi a mesma, nem de longe. Os antigos produtores quebraram, abandonaram suas propriedades, se acabaram pela vida ou suicidaram.
A sabotagem produziu um desastre econômico. Derrubou a produção nacional para menos da metade, desempregou cerca de 200 mil trabalhadores e fez com que o Brasil, então o segundo maior produtor mundial de cacau, virasse importador do produto. Estima-se que a devastação tenha provocado um prejuízo superior a 10 bilhões de dólares. Os terroristas se consideraram vitoriosos. Fizeram todos pobres ao invés de todos prósperos. Parasitas, mataram seus próprios hospedeiros e acabaram também arruinados, ainda que livres para urdirem novas trapalhadas. Todos têm nomes e endereços conhecidos e mesmo assim permanecem até hoje impunes. No lugar do cacau chegaram as seringueiras a Camamú. Como por lá chovia muito e a floresta criava um ambiente favorável, uma grande empresa produtora de borracha se instalou na região e investiu pesado, criou muitos empregos, montou uma estrutura de boas estradas, fazendas bem equipadas e muita movimentação de gente de fora. A pousada do pai de Helena, o Constantino, era a única da cidade e, com isto, prosperou, virando hotel. Meio forçado, meio sem jeito porque os hóspedes tinham hábitos diferentes, gostavam de comidas diferentes, eram cheios de manias de limpeza e horários para tudo, mas ele foi aprendendo a lidar com eles, se esforçando para se encaixar nas exigências e prosperou. Conseguiu até comprar um caminhão grande e fazia fretes para todo lado. Só as empresas de fora já o manteriam ocupado a maior parte do tempo nas estradas, mas ele tinha que limitar as viagens porque tinha o hotel para cuidar e ele não gostava de ficar muito tempo longe da família. Estava indo muito bem, a família bem cuidada, não faltava mais nada na mesa, as crianças na escola com roupas bonitas, contas em dia. Ele sofrera muito com a derrocada do cacau na região, passou fome e muito aperto. Não fosse a floresta e o mangue ele teria sido obrigado a ir embora e se aventurar Brasil abaixo.
Local onde vive: Ribeirão Preto SP
Capítulo I - Sequência 5 - Livro Chorum - Andando sobre as águas!
Seu pai era um português, bem sucedido comerciante de cacau que se estabelecera na região. Gente trabalhadora e sistemática, outra vítima da derrocada do cacau. Sua mãe ainda era viva, embora muito doente e combalida, morando com um irmão, perto de Salvador. Como o pai, Constantino sempre trabalhara muito e, quando a sorte chegou junto com as novas empresas, ele soube aproveitar. Negociou um adiantamento, alugou sua pousada para um conhecido e montou o hotel em uma antiga sede de fazenda de cacau. Foi feliz e conseguiu pagar o adiantamento, equipar o hotel e fazer o movimento todo que ainda mantinha no estabelecimento. Sua mulher, Dona Belarmina, o ajudava em tudo. Cuidava da cozinha, da limpeza, das empregadas. Também era muito trabalhadora, baiana rétada. Fazia de tudo na cozinha: doces, salgados, bolos, licores, sorvetes, comida de paulistas. Fazia de tudo e fazia bem feito. Culinária baiana ela conhecia de cabo a rabo. Todos os anos os hóspedes paulistas encomendavam um jantar de comida típica baiana: acarajé, vatapá, caruru, sururu, cuscuz, sarapatel, tábua de frutos do mar, lagosta, caranguejos e tudo mais. Era uma farra gastronômica que dava um trabalhão, mas valia a pena porque ela cobrava caro, bem caro. No dia seguinte sempre ficavam uns três ou quatro no hotel. Não conseguiam sequer sair do quarto. Bem que pediam para não usar óleo de dendê, mas – ó xenti! – fazer aqueles pratos todos sem dendê? Impossível, ela nem saberia como fazer! Ela se esforçava e usava bem menos que mandavam as receitas, todas não escritas, mas mesmo assim sempre ficavam uns três ou quatro pelos quartos, às vezes mais. No ano seguinte era a mesma coisa. Constantino pensou até em comprar uma fazendinha por perto, mas logo desistiu. Ele tinha dinheiro, mas não teria tempo para cuidar da fazenda, sua maior paixão, lidar na roça com tudo que a roça tem e exige. Mal tinha tempo de ir à praia, em Guaibim. Mesmo assim se desdobrava para ir aos domingos pela manhã para levar os filhos, Helena e Fabiano, à praia, programa que eles amavam. Era a única viagem que faziam para mais longe de Camamú, uns 80 quilômetros ao norte, até Guaibim, logo depois de Valença, onde a praia era boa e o mar calmo. Era um programa delicioso, uma grande alegria para todos. Iam cedo, antes do café da manhã do hotel. Deixavam o Idauto, seu auxiliar direto, cuidando das coisas, cumprindo uma lista de tarefas deixadas por escrito, e iam para a praia.
Capítulo I - Sequência 6 - Livro Chorum - Andando sobre as águas!
Para Constantino eram os melhores momentos da vida, hora de usar o carro bem cuidado, de estar por conta das crianças, de conversar com Dona Belarmina sem ser de serviço, de prestar atenção na estrada, hora até, quem sabe, de tomar uma cervejinha na praia, umas duas só, de latinha, pela manhã.
Almoçavam em Valença, perto dali. Havia o restaurante do Perninha, amigo de longa data, que conhecia de cor o gosto do Constantino e da família, até a hora em que costumavam chegar. Já tinha ficado amigo de Helena, a caçula, de Fabiano e de Dona Belarmina. Tratava todos pelos nomes. Costumavam pedir vatapá, caranguejo e um ou outro peixe, suco de cupuaçu ou de cacau, sorvete de sobremesa. De abacaxi com côco, sempre. Era o preferido de Helena. Fabiano às vezes pedia um daqueles de copinho, mais caros, de fora, de morango. Dona Belarmina preferia doce de leite, um pudim que só se achava por lá.
Livros publicados:
Auditória - O nobre ofício de ouvir! 13 Hipóteses Outras hipóteses Chorum - Andando sobre as águas!
Capítulo I - Sequência 7 - Livro Chorum - Andando sobre as águas!
Às vezes ainda voltavam para Guaibim para ficarem mais um pouco na praia, às vezes já voltavam dali mesmo para Camamú. Constantino costumava parar em Ituberá para comprar uns doces e queijos meio diferentes para servir no hotel, onde ele repassava por preço três vezes maior.
Para chegar a Camamú pelo sul eram 365 curvas em 35 quilômetros de uma estrada asfaltada, mas tão estreita que mal dava para dois carros se cruzarem, uma para cada dia do ano, saindo da BR 101. Mesmo assim os motoristas corriam muito, corriam e buzinavam o tempo todo, até para os passarinhos.
Nascido em Juiz de Fora (MG) em 1958, formado em Agronomia pela Universidade Federal de Viçosa (MG), atuou profissionalmente por mais de 30 anos em várias regiões do país e do exterior no segmento de produção de açúcar, álcool e energia. Politicamente liberal, empreendedor nato, tem a carreira marcada por frequentes mudanças de postos de trabalho diante das muitas oportunidades disponibilizadas. Líder nato enquanto ariano, iconoclasta e ex-ativista religioso. Resiliente por excelência, é divorciado, tendo duas filhas, um neto e três netas, a quem dedica com muito carinho seus livros. Atua como consultor de empresas nas áreas de agronomia e economia, se dedicando a vários empreendimentos nos setores de sustentabilidade e eficiência energética. Francamente preservacionista sem ser um ecochato, direciona às causas ambientais seus principais projetos. Tem como projeto extra de vida, já tendo produzido seus livros, plantado milhões de árvores e cuidado com eterno zelo de sua família, a criação de uma escola gratuita de primeiro e segundo graus em período integral, por acreditar na educação de boa qualidade como única porta de acesso ao sucesso duradouro de quaisquer indivíduos ou nações.
Capítulo I - Sequência 8 - Livro Chorum - Andando sobre as águas!
Constantino passava um grande aperto com seu caminhãozão naquelas curvas todas. Às vezes tinha que dar sinal de farol para entrar em algumas mais fechadas, já que saía bem cedo e chegava bem tarde, sempre no escuro, quando saía por ali para fazer algum frete. Era bom motorista, mas demorava um pouco para retomar a prática quando saía com o caminhão.
A saída para o norte, na direção de Valença, não tinha tantas curvas, só umas 300.
Aos domingos, de carro, era uma alegria, uma facilidade para dirigir na outra estrada.
EMAIL: ricardodeotti@hotmail.com
Capítulo I - Sequência 9 - Livro Chorum - Andando sobre as águas!
Helena, a mais nova do carro, era a rainha das viagens, comandava tudo. Ordenava as paradas para fazer xixi, outras para passar o enjoo, outras para ver a cobrona que atravessava a pista quase de fora a fora, outras para se condoer com os jegues abandonados pelos neomotoqueiros. Fabiano, mais crescido, se deliciava admirando a paisagem perdido em devaneios, em seus quase dois anos a mais que Helena.
Os jegues, heróis anônimos que desbravaram toda a região, desde o descobrimento carregando no lombo madeira, farinha, tijolos, cimento, água e tudo que coubesse nos dois panacuns, um de cada lado, foram vencidos pelas motos. Ninguém mais os queria, nem mais os alimentavam nem cuidavam deles. Só eram mesmo procurados pelos donos de abatedouros, que os retalhavam e vendiam no meio da carne moída.
Site/Blog: Por enquanto nenhum
Capítulo I - Sequência 10 - Livro Chorum - Andando sobre as águas!
Na região não havia muitos abatedouros, só mesmo estes de jegues, que eram mais discretos. Os bois, vacas e cachaços eram abatidos na rua mesmo, a pauladas, em frente aos poucos açougues. Os homens faziam uma roda, cada um dava uma paulada até o animal cair, o que, normalmente, demorava. Sua agonia era uma catarse para seus algozes. Ali mesmo os retalhavam, na rua, em frente aos açougues. Nos balcões não havia cortes de carnes, como hoje, carne de primeira, de segunda, carne moída. Só carne com osso e carne sem osso. Era assim até há pouco tempo. Afinal, carne na região era de peixe, e de pescados eles entendiam muito. Com carne vermelha eles não sabiam lidar.
– Ê mãinha, tome aqui as pitangas. Enchemos duas garrafas!
– Obrigada filha. Agora vá estudiar. Cadê Neinha?
– Está aí fora! Nós vamos brincar!
– Vão não. Você vai é estudiar, vice? Ê Neinha, sua mãe tá chamando! Vá, corra. Helena, vai estudiar.
Helena é uma guevedoce.
Continue lendo: Capítulo II - Livro Chorum - Andando sobre as águas!
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