Ica era o nome dele. Ficou sabendo por sua irmã, que um dia resolveu brincar com ela para mostrar um relógio novo que ganhara de aniversário. Conversaram um pouco, muito para Helena, que se desdobrou para agradar a futura cunhada. Elogiou muito o relógio, perguntou como funcionava, se tinha apito, estas coisas.
Ficou sabendo que o nome dele, na verdade, era Henrique, mas o chamavam de Ica, apelido colocado pela irmã, que era mais velha que ele, com seus 13 anos. Ele tinha 12.
Helena se entusiasmou, contou que seu pai tinha um caminhão enorme e estava para chegar de uma longa viagem. Contou também do mar de Guaibim, da praia, das suas proezas na cozinha de sua mãe, falou de Neinha, das balas de côco e muitas outras coisas, até que a outra menina a deixasse para voltar para suas amigas. Foi uma conversa rápida, mas serviu de antessala para uma nova amizade, que viria com o tempo. O importante é que tinha aprendido o nome dele, que era muito bonito e bonzinho. Falando em nomes, se esquecera de perguntar o nome dela.
Helena se entusiasmou com a descoberta do nome do paquera e se encheu de vida.
Passou a inclui-lo mais amiúde em seus sonhos e devaneios. Em sua beleza, seu encanto natural e sua altura, se destacava entre as colegas e não tinha dificuldades para chamar a atenção dos meninos, especialmente do Ica, embora não fosse esta sua prioridade, pelo menos por enquanto. Aos 11 anos, ela se ocupava mais com as amigas, com suas bonecas, sua casinha amarela, da qual cuidava com zelo em seu quarto, e outros brinquedos. Ainda que no limiar da primeira infância, sua pureza de criança do interior era exercida com muita liberdade e alegria, em sua vida de menina bonita e muito bem quista.
Voltando para casa naquele dia, correu para contar as novidades para Neinha, sua melhor amiga, que morava poucas casas abaixo da sua. Contou que descobrira o nome dele, que conhecera a irmã e conversaram um pouco. Contou rapidamente porque tinha hora para chegar em casa, com a promessa de contar o resto depois.
Chegou em casa junto com sua mãe, que se atrasara no hotel, para onde voltariam tão logo chegasse Fabiano. Com a viagem do marido, Dona Belarmina ficava o dia todo no hotel e por lá almoçavam e passavam a tarde.
O Idalto era um ajudante e tanto, de confiança, despachado, cuidava da recepção, recebia os hóspedes, fechava as contas e cuidava das compras, junto com Constantino.
Helena almoçava entusiasmada junto com Fabiano e sua mãe, quando tocou o telefone da recepção.
– Dona Belarmina, é para a senhora.
– Quem é?
– Sei não, falou mas não entendi.
Dona Belarmina desligou o telefone e chamou Idalto.
A cozinheira guardou o prato de Dona Belarmina no forninho, porque Helena e Fabiano já tinham terminado a refeição, Dona Belarmina se demorava e estava juntando moscas na mesa.
– Helena, cadê sua mãe?
– Sei não!
– Mãinha!?!
Fabiano foi procurar a mãe, Helena ficou vendo televisão.
Ninguém na recepção. Chamou Idalto, que respondeu do corredor. Idalto estava lívido, estranho, olhos arregalados, testa esticada.
– Sua mãe está chamando. Pegue Helena e vá no 15. Vou com vocês.
Estava trêmulo. Fabiano não percebeu nada, chamou Helena e foram os três ao 15.
– Cadê você mãinha?
– Já vou, meu filho.
Dona Belarmina se demorou mais um pouco no banheiro, de onde saiu desfigurada e pálida. As crianças se assustaram. Idalto ficou de fora, apoiado na soleira da porta.
– Seu pai sofreu um acidente, disse ela, com voz calma e quase inaudível.
Sentados os três na cama, ela os abraçou um de cada lado e conteve as lágrimas com esforço hercúleo.
– Como assim mãinha?
– O que foi mãinha? Cadê painho?
– Ele sofreu um acidente e foi grave, parece que se machucou e está no hospital sendo atendido. Vai dar tudo certo.
Uma jovem senhora grávida caminhava pelo acostamento da BR 101 próximo a Eunápolis. Tinha as mãos dadas a seu filho, um menino de seis anos. Em dado momento o menino lhe escapou e invadiu a pista. A mãe correu para pega-lo e foram ambos atropelados por uma carreta que descia embalada.
Morreram os dois. Os três, melhor dizendo, porque ela estava grávida de uns oito meses. Foi uma cena aterradora.
O motorista nada pôde fazer. Só conseguiu parar mais de 200 metros depois. Estacionou precariamente no estreito acostamento e viu a cena de longe.
Não teve coragem de se aproximar. Lhe faltaram pernas e pressão nas veias.
Enquanto titubeava, as pessoas que acorreram interromperam o transito, um desespero.
Não havia o que fazer.
O motorista, paralisado e indefeso, apoiado na traseira do caminhão, foi linchado e morto no local.
Era Constantino.
– Quando painho vai sair do hospital mãinha?
Choravam os três. Choravam muito.
Dona Belarmina ainda não sabia dos detalhes. O policial apenas lhe dera notícia de um grave acidente, tendo chegado ao telefone do hotel depois de outras ligações para contatos da agenda do telefone de Constantino, pedindo que alguém o procurasse no posto da polícia rodoviária próximo, para onde fora levada a carreta antes que a incendiassem, sem se identificar quando chegasse. Era para procurar o sargento Evangelista.
Idalto lá chegou cerca de cinco horas depois da ligação e providenciou tudo. Trancou a carreta, acionou a empresa dona da carga e cuidou do translado do corpo para Camamú.
Mal tivera tempo para se inteirar do acontecido. Estava sendo muito duro, mas alguém teria que cuidar das coisas. Como todos na cidade e região, era muito amigo de Constantino, trabalhava para ele com prazer e empenho porque Constantino era, além de amigo, um ótimo patrão. Idalto não se conformava com o acontecido, com a injustiça, com o desafortunado acaso. Não conseguia se concentrar em nada, apenas cuidar das providencias mais óbvias.
Resolveu religar o telefone. No mesmo minuto uma ligação de Dona Belarmina.
– Dona Belarmina, estou em Eunápolis. Não tenho boas notícias.
Só então as poucas forças de Dona Belarmina ruíram de vez. Sua irmã estava com as crianças no refeitório, as ajudantes do hotel em torno dela, alguns amigos já acorrendo ao hotel, e ela ao telefone, sentada na cama, aterrada. Se desmanchou, afinal, vencida. Desacordou.
Já eram oito da manhã quando Idalto conseguiu a liberação do corpo para seguir de volta a Camamú. Acompanhou o carro da funerária sem se dar muita conta daquilo tudo. Só fazia o necessário.
Ligou para Dona Belarmina para dar uma previsão da hora de chegada. Sua irmã atendeu e foram assim fazendo o que tinha que ser feito.
Dona Belarmina fora sedada pelo farmacêutico e estava em casa. O hotel foi fechado.
Os hóspedes, comunicados, não se opuseram a se transferir provisoriamente para uma pousada da região.
Vizinhos, amigos e parentes acorreram à casa em busca de notícias, oferecendo apoio e condolências. Na verdade, a cidade inteira parou, horrorizada e inconformada.
Já eram 11:00 quando Idalto chegou com o corpo, seguindo direto para a Câmara Municipal, onde seria o velório.
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