Faz-se um poeta singular

O homem desconhecido, agora, não apenas sussurra ao ouvido de Oscar Rosas, como também aponta para o poeta. A face de Cruz e Sousa ilumina-se: poderia ser um editor, interessado em publicar novos livros seus! Poderia ser a Sorte, que lhe sorrira na infância, para nunca mais se dar a ver...
Infância... tempos felizes, até. Realmente, foi sorte que o negrinho, diferentemente do que ocorria com os outros de sua raça, vendidos tão logo crescessem o suficiente, recebesse o carinho paternal de seus donos, um casal sem filhos: D. Clarinda, que o iniciou nas letras; o Marechal Xavier de Sousa que, ao morrer, legou a seus ex-escravos algum dinheiro, suficiente para o sustento do menino vivo e inteligente. Outras recordações de Desterro vêm-lhe à mente: a instrução sofisticada; o contato direto com um dos grandes nomes das ciências naturais, Haeckel; o conhecimento de idiomas: a educação típica da elite branca. Que, longe de fazer do poeta um conformado, iria fornecer-lhe o substrato para uma postura crítica, uma cultura universalizante, uma arte revolucionária.
Chega a idade adulta e, com ela, os problemas. O negrinho esperto já não é visto como espetáculo engraçadinho, pitoresco. É já um jovem inconformado, consciente de que é preciso transformar. Uma nação que sustenta a monarquia e a escravidão não é digna de ser chamada civilizada, diziam os republicanos e abolicionistas, dissera CASTRO ALVES, diz Cruz e Souza:
Vai-se acentuando,
Senhores da justiça – heróis da humanidade,
O verbo tricolor da confraternidade...
E quando, em breve, quando
Raiar o grande dia
Dos largos arrebóis – batendo o preconceito...
O dia da razão, da luz e do direito
- Solene trilogia -
Quando a escravatura
Surgir da negra treva - em ondas singulares
De luz serena e pura;
Quando um poder novo
Nas almas derramar os místicos luares,
Então seremos povo!
(“Dilema”)
Bem que soubera aproveitar algumas chances oferecidas pelo destino. Como a decisão que tomou de seguir uma companhia de teatro em suas apresentações pelo Brasil. Tinha que partir, ainda que fosse no obscuro cargo de ponto, pois a vida “real” começava a sufocar. Posteriormente, sua obra não faria quase nenhuma referência ao teatro. Alguns falariam em aversão à arte dramática... talvez um trauma, depois da dissolução da Companhia, que fizera o poeta voltar à terra natal, à mesquinhez, à ignorância? O soneto “Acrobata da Dor” vale-se de imagens teatrais:
Gargalha, ri, num riso de tormenta,
Como um palhaço, que desengonçado,
Nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
De uma ironia e de uma dor violenta.
Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
Agita os guizos, e convulsionados
Salta, gavroche, salta clown, varado
Pelo estertor dessa agonia lenta...
Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos! Retesa os músculos, retesa
Nessas macabras piruetas d’aço...
E embora caias sobre o chão, fremente,
Afogado em teu sangue estuoso e quente,
Ri! Coração, tristíssimo palhaço.
Fonte: www.vidaslusofonas.pt