Por causa de coincidências editoriais, me vi relendo na semana passada os textos de Lima Barreto (1881-1922), que para muitos ainda é “apenas” o autor de uma obra-prima, Triste Fim de Policarpo Quaresma. Enquanto isso, por dever de ofídio, digo, de ofício, acompanhei as notícias e os debates – ou as supostas notícias e os supostos debates – em circulação no Brasil, e não pude evitar associar os eventos. Vendo o presidente Lula, ainda inebriado por uma popularidade que confunde com sacralidade, dizendo que é a “encarnação do povo brasileiro”, logo depois de reconhecer que pegou uma economia em condições muito melhores do que seus antecessores, e se mostrando obcecado em provar que o mensalão foi um escândalo “golpista”, não pude deixar de pensar no major Quaresma – o patriota que defende o tupi, a agricultura familiar e a república autocrática e termina concluindo que a pátria é uma ilusão.
As coincidências editoriais são o caprichado volume em capa dura com seu Diário do Hospício e O Cemitério dos Vivos, pela Cosac Naify; a primeira publicação de seus Contos Completos, pela Companhia das Letras; e a reedição de suas Recordações do Escrivão Isaías Caminha, na coleção com a Penguin. Só mesmo num país de falsos patriotas a obra de um escritor desse porte, capaz de criticar suas mazelas como poucos então e hoje, fica tanto tempo mal editada, esquecida, não discutida. Sim, como dizem os resenhistas medíocres, seus contos são “irregulares”, mas para qualquer escritor ter feito A Nova Califórnia, O Homem que Sabia Javanês, Uma Noite no Lírico e Clara dos Anjos, impedida de casar com o homem que ama por não ser rico, compensa todos os demais pecados. Por sinal, as mulheres em Lima merecem um estudo à parte, e nesse diário fascinante ele confessa não ter sabido amar a sua em vida. E atribui a isso, em 1920, o desânimo de continuar a carreira literária.
Recordações é seu primeiro romance, de 1909, mas é fortemente autobiográfico, concentrado em sua experiência como jornalista – trabalhou no Correio da Manhã e fez grandes reportagens nas ruas do Rio – e em atacar aqueles que tentam enquadrar um talento exigindo subserviência e comodismo, ainda mais quando se trata de um negro sem diploma, porém mais honesto e culto do que os donos do poder e seus bajuladores de plantão. Fiquei pensando no que ele diria hoje de uma ocupação militar das favelas, inspirada no Haiti, que não sabe como ir adiante. Não concordo com esses românticos que não veem mérito nenhum em tirar território dos traficantes – são os mesmos que aplaudiram Brizola quando decidiu que a polícia não subiria os morros, num populismo que só fez mal ao povo –, mas enquanto não houver reforma policial, urbanização ampla e presídios eficientes, e os principais criminosos não forem pegos e devidamente condenados, toda comemoração será ingênua.
Lima escreveu Policarpo Quaresma em três meses, antes de completar 30 anos, em 1911, e o livro foi recebido com indiferença, num sinal da pobreza cultural brasileira. Ele nunca mais fez nada com a mesma força; sofrido e instável, caiu no alcoolismo e, como seu pai, foi levado ao hospício. Mas ainda escreveu Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá, crônicas e um livro precioso que merece reedição urgente: Os Bruzundangas, publicado postumamente em 1923. É um relato swiftiano sobre um país tomado por nepotismos e patotas, de pouca saúde e educação, com uma “curiosa mistura de ingenuidade infantil e idiotice senil”. Familiar, não? Ao ver o arranjo do PT com o PMDB para o novo governo, me pergunto se as coisas mudaram em essência. Dilma Rousseff, por exemplo, disse que prezaria o mérito técnico e sempre se vendeu como especialista no setor energético. Como então pode pôr Edison Lobão de novo no cargo? É a cota do senador Sarney, aquele que Lula afirma que é preconceituoso criticar.
Lima não falava apenas dos problemas sociais e políticos; seu alvo era a vida mental da nação. Num apêndice do inacabado Os Bruzundangas, anotou que pretendia escrever sobre os “sábios” desse país. Contra uma pseudopolêmica como essa sobre o prêmio Jabuti dado a Chico Buarque, Lima é tiro certo. De um lado, estão os indignados com as regras do jogo que eles mesmos subscreveram, ou seja, com a escolha do “livro do ano” por votação entre editores e livreiros, o que só poderia fazer prevalecer a razão de mercado. Do outro, estão os que nem sequer concedem a Chico a condição de escritor (como, na trincheira oposta, não se concede a Arnaldo Jabor o de cineasta), muito menos de bom escritor. Lima: “Todos se guiam por ideias feitas, receitas de julgamentos, e nunca se aventuram a examinar por si qualquer questão, preferindo resolvê-las por generalizações quase sempre recebidas de segunda ou terceira mão”. Não, não se trata de mera coincidência.
Fonte: blogs.estadao.com.br/daniel-piza/
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