O reflexo do Rio Grande do Sul

Entrevista com Celia Doris Becker
IHU On-Line - Érico foi um escritor que compôs vários romances históricos. É possível traçar relações entre suas obras e a história do Rio Grande do Sul?
Celia Doris Becker - Em primeiro lugar, para que o leitor possa estabelecer essas relações, pressupõe-se que ele possua conhecimento da História de nosso Estado. A partir daí, é possível que ele reconheça vários elementos históricos habilmente entremeados com os fios da Ficção. A verossimilhança instaurada pode levar os mais ingênuos a confundir os eventos. Entretanto, o ponto que me parece mais relevante na criação de Érico é a visão de História que ele apresenta. Em Solo de clarineta , ele confessa que o conteúdo dos livros escolares “feios, mal impressos” - com os quais ele e sua geração entraram em contato com o passado do Rio Grande do Sul - “raramente ou nunca” apresentavam atributos como “o poético, o pitoresco, o novelesco”. A Ideia de que “a verdade sobre o passado do Rio Grande devia ser mais viva e mais bela que sua mitologia” motiva Érico a abrir espaço para a manifestação de diferenciadas vozes. Ao compor esse painel diversificado, Érico desmistifica a História do Rio Grande do Sul.
IHU On-Line - Em O tempo e o vento, o índio órfão das Missões ganha destaque na história. Como Érico Verissimo representa o índio em suas obras? Qual era seu objetivo ao representar os indígenas?
Celia Doris Becker - A representação do índio ocorre em As aventuras de Tibicuera - obra direcionada ao público jovem - e em dois momentos de O tempo e o vento. Reporto-me à segunda. Na trilogia, a figura do índio aparece em dois capítulos de O continente : A fonte e Ana Terra. No primeiro, embora mereça destaque a figura de Pedro, o narrador também se refere a Sepé Tiaraju e aos demais habitantes das Missões, de forma generalizada. A leitura atenta dos episódios revela um habilidoso jogo de perspectivas em que se alternam os pontos de vista das diversas personagens – Pe. Antonio, Pe. Alonzo, Pedro, Sepé Tiaraju - e do narrador.
As visões oferecidas revelam pontos diversificados sobre a psicologia dos índios. O ponto de vista dos religiosos, a partir de focalização interna realizada pelo narrador, apresenta os índios – homens e mulheres - como presas fáceis dos vicentistas que percorriam as terras desabitadas do Rio Grande, em busca de escravos. Além disso, os padres reconhecem a capacidade de absorção da organização imposta pela ação catequética e as possibilidades do desenvolvimento das qualidades dos índios como seres humanos para a concretização de um mundo prometido, de um “Mundo Novo”, em que “os povos não seriam mais governados por senhores de terras e nobres corruptos. Seria a sociedade prometida nos Evangelhos, o mundo do Sermão da Montanha, um império teocrático...” .
Em Pedro, o órfão criado pelos padres, além das atividades intensas desempenhadas na Missão – aprendizagem de ofício, estudo de doutrina cristã, de música, limpeza do trigo, leitura de textos sagrados em voz alta, auxiliar dos curas na missa –, constatam-se a sensibilidade, a intuição, a capacidade criativa como compositor.
Em Sepé Tiaraju, representa-se a liderança, a capacidade de indignação dos índios, o espírito crítico a altivez, a astúcia, a coragem, norteando-os à resistência, à defesa de seu território.
No capítulo Ana Terra, o narrador refere a presença dos índios coroados e de Pedro Missioneiro. Com base em experiências negativas vividas pelas duas mulheres da família - Ana e a mãe, Henriqueta -, eles atacavam estâncias e qualquer viajante que encontrassem pelo caminho. Além disso, roubavam e escravizavam mulheres, muitas vezes obrigando-as a se casarem com algum membro da tribo. Os homens da família compartilham desse pensamento e as ações defensivas que assumem confirmam esse posicionamento. A chegada de Pedro Missioneiro nos domínios da família Terra contrapõe à imagem do índio violento, do índio ladrão a figura do índio aculturado.
A focalização interna das personagens, as inúmeras cenas que o narrador instaura evidenciam as mudanças que se operam no pensamento dos componentes da família Terra. Ana e a mãe são envolvidas pelo jeito manso e suave do índio que evidencia conhecimento de um mundo totalmente diferente daquele que as rodeia. A focalização interna das personagens masculinas da família Terra, entretanto, mantém a representação do índio como um ser inferior, mentiroso, desconfiável, temível. Como se vê, a representação do índio obedece a um contraponto, procedimento adotado por Érico ao longo da saga, que promove a configuração de um diversificado painel do homem, da sociedade, da própria História do Rio Grande. Como o narrador de O tempo e o vento constitui o alter ego de Érico, o leitor pode concluir que a representação do índio apresentada constitui a visão do Autor sobre as Missões e sobre os índios.
Penso que ao apresentar sua visão a respeito dos índios, Érico prova seu interesse pelo homem, pela apresentação de um significativo painel humano dos que construíram este Estado. De acordo com o próprio Érico, todos o interessavam, porque “O Rio Grande estava cheio dos mais variados tipos humanos. Havia o valentão, o coronel, o peão, o gaudério, o bandido, o sisudo, o potoqueiro, o gaúcho de cidade com flor no peito... tantos!”.
IHU On-Line - Como a obra de Verissimo contribuiu para a construção da identidade gaúcha?
Celia Doris Becker - Penso que com a visão contrapontística que se percebe em sua obra, Érico Veríssimo abre espaço não só para as diversas vozes que representam as etnias formadoras de nosso povo como também para os diversos grupos constituintes da sociedade gaúcha. Assim, esses elementos de certa forma testemunham sua presença no cotidiano do gaúcho, na sua forma de sentir e de perceber o que o rodeia.
IHU On-Line - A Literatura tem o objetivo de recontar e fortalecer a História?
Celia Doris Becker - Não é esse o objetivo maior da Literatura. Seu objetivo maior é a humanização do próprio homem. Literatura e História constituem campos do conhecimento humano que se diferenciam já em sua origem. Na antiga Grécia, Aristóteles, ao se debruçar sobre a produção do poeta, afirma: “não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade” .
Ao se deparar com um texto que apresenta elementos históricos, o leitor sabe que está diante da visão particular de um homem – o romancista – sobre os fatos que marcaram um determinado momento. Esse ponto de vista pode contrariar a versão “oficial” que se conhece.
IHU On-Line - Como a senhora avalia atual produção literária no estado voltada para o aproveitamento da história na ficção? Ainda há preocupação, por parte dos escritores, em trabalhar a questão histórica?
Celia Doris Becker - A História do Rio Grande do Sul é muito rica em eventos e o público leitor gaúcho sempre evidenciou significativo interesse pelas produções que os envolvem. Acredito que ao produzirem romances cujo pano de fundo seja histórico, os escritores vão ao encontro dos interesses do leitor gaúcho.

Fonte: www.ihuonline.unisinos.br