... Para alguns, as produções literárias de Mario Quintana e de Rubem Braga parecem caminhar em sentidos opostos, já que, apesar de tratar-se de dois grandes nomes da literatura brasileira, o primeiro é denominado poeta e o segundo cronista. Contudo, como já foi dito
na primeira parte deste artigo, a poesia e a crônica têm muito mais pontos em comum do que se suspeitava e isso é ainda mais perceptível se compararmos a última com um formato de poesia chamado de poema em prosa. O poeta gaúcho Mario Quintana, contemporâneo dos modernistas, ?cou conhecido por não se enquadrar a nenhuma escola literária. O seu primeiro e mais popular livro, A Rua dos Cataventos (1940), já apontava a sua rebeldia ao fundir o formato clássico do soneto a uma linguagem coloquial e popular. Seu segundo livro, Canções (1946), por sua vez, deixou ainda mais evidente essa marca do poeta:
Há poemas em versos livres, brancos, rimados e estrofes assimétricas, observando-se um grande investimento no ritmo. Essas irregularidades compõem a linha melódica dos poemas, passando a impressão de se ouvirem verdadeiras canções (FIRMO, p. 55).
Em Sapato Florido (1948), do qual extraímos os poemas escolhidos para a análise neste artigo, o poeta gaúcho expõe ainda mais esse espírito de renovação que caracteriza a sua obra. É nesse livro que ele começa a adotar o polêmico e questionador poema em prosa.
Tentar entender o poema em prosa exige reavaliar questões fundamentais desse universo, como sejam o conceito de escrita poética, os objetivos que ela persegue, as técnicas e os processos que pode utilizar, a diferenciação (ou não) de uma prosa poética em relação a outras prosas (...). Foi esse desejo de aprofundar a verdadeira essência do poético e de experimentar a resistência da sistematização que, no século XVIII, lançou a base para o aparecimento em força do poema em prosa. (ÁLVARES, p. 242)
Rubem Braga, nascido no Espírito Santo em 1913, é considerado por muitos o maior cronista brasileiro. Sua produção literária é vasta e compreende crônicas que tratam dos mais diversos assuntos, especialmente das coisas mais corriqueiras, das coisas da natureza, os pequenos objetos que compõem a nossa rotina, as emoções humanas, as mulheres e o amor. Na sua obra, há crônicas marcadas pelo humor e pela ironia,mas principalmente pelo lirismo, como veremos adiante. Mas o fato de Mario Quintana escrever parte de sua produção poética em prosa é o su?ciente para que haja uma aproximação do texto dele com a crônica que Rubem Braga? Na verdade, o que se pode a?rmar é que seria mais difícil perceber as interconexões se os textos de Mario Quintana selecionados para este artigo, assim como as crônicas de Rubem Braga, não tivessem esse ponto inicial comum: a forma. Contudo, desde já é preciso que apresentemos uma diferença formal notada: mesmo sendo escritos em prosa, os poemas de Quintana são bem mais breves que as crônicas de Braga, o que entendemos como um elemento que preserva a essência de cada gênero, já que os poemas costumam ser mais breves e densos que as narrativas. Contudo, se nos debruçarmos sobre a produção literária dos autores nos depararemos
com questões ainda mais instigantes, como o forte lirismo presente nos textos, a predominância das funções poética e emotiva em ambos e, principalmente, a escolha do cotidiano, em seus mais diversos vieses, como temática predominante. Nota-se, tanto nas crônicas de Braga, quanto nos poemas de Quintana esse olhar muito pessoal sobre o que é corriqueiro, sempre no sentido de revelar a beleza do mais simples transcorrer dos dias e noites. Nessa perspectiva, selecionamos os poemas Quién supiera escribir! Aventura no Parque e Aparição, do livro Sapato Florido, e as crônicas As luvas, Coisas antigas e Visão, do livro 200 Crônicas Escolhidas, para esta análise, por percebermos mais claramente os elementos já citados anteriormente e considerarmos que nos faltaria espaço para maior aprofundamento da discussão se nossa amostra fosse mais ampla. No entanto, é bom ressaltarmos que os pontos de contato estendem-se para além dos textos aqui referenciados. Sem dúvida, no plano do conteúdo, o elemento sobressalente que une a poesia de Quintana à crônica de Braga é a temática do cotidiano através de um aspecto: o efêmero. A vida é efêmera (aliás, podemos dizer até que essa é sua característica principal), o nosso cotidiano é marcado por momentos transitórios. Percebido sob vários prismas nos textos dos dois autores, o efêmero é apresentado a partir de elementos que costumam passar despercebidos aos olhos da maioria das pessoas/dos leitores. E a proposta que une a poesia de Quintana e a crônica de Rubem Braga, que transpõe a de?nição de gênero, como pretendemos demonstrar, é a de apresentar ‘a beleza deste efêmero’, que pode nascer em meio à multidão, ao caos urbano ou na intimidade do quarto, dentro de casa. Um primeiro aspecto a ser ressaltado é a tentativa de cristalização, de eternização do que é transitório, temporário, fugaz. Será mesmo possível apreender o momentâneo? Esta questão, que parece ser uma das mais inquietantes quando se trata de motivações ou possibilidades da poesia, perpassa do texto poético à crônica e ser e como uma problemática pertencente a qualquer um dos domínios da literatura. No poema Aventura no Parque, Quintana deixa clara essa tentativa de apreender o transitório momento. Em uma brincadeira, o eu lírico surpreende o leitor ao misturar uma cena costumeira (um homem sentado numa praça lendo) à personi?cação do momento, que passa a ser metaforizado na imagem de um animalzinho ‘todo asas e todo patas’.
No banco verde do parque, onde eu lia distraidamente o Almanaque Bertrand, aquela sentença pegou-me de surpresa: “colhe o momento que passa”, colhi-o, atarantado. Era um não sei que, um ?apt, um inquietante animalzinho, toda asas e todo patas’. (QUINTANA, 2005, p. 69)
É interessante reiterar essa imagem do ‘animalzinho inquietante todo asas e todo patas’ porque ela já nos revela a natureza do momento: ele é veloz, por isso é feito só de asas e patas, partes do corpo usadas para a locomoção. Um pouco a frente, o eu lírico a?rma ter conseguido segurar o ‘momento’, mas só por pouco tempo já que ele “ardia como uma brasa, trepidava como um motor, dava uma angustiosa sensação de véspera de
desabamento”. “Não pude mais”, desabafa o eu lírico. Depois de ter soltado o momento ‘que passa’, o eu lírico nos apresenta mais uma cena corriqueira. Arremessado, o momento é atropelado pelo veloz velocípede de um menino: “arremessei-o contra as pedras, onde foi logo esmigalhado pelo vertiginoso velocípede de um meninozinho vestido à marinheira”. Nesse momento do poema, essa imagem banal de um menino pedalando em uma praça demonstra a sutileza lírica de Quintana: a vida não pode ser capturada,ela é composta pelas pequenas coisas e está no cotidiano, na ?gura vertiginosa deste menino que pedala. Não podemos tentar reter o tempo, temos apenas que viver a vida: “Quem monta num tigre (dizia, à página seguinte, um provérbio chinês),quem monta num tigre não pode apear”. (QUINTANA, 2005, p.69). Essa mesma Ideia de ‘cristalização do momento’ está presente na crônica Visão de Rubem Braga. No texto, o narrador apresenta-se como ‘mais um homem no meio da multidão’, que vai vivendo a vida como alguém que já viveu tudo, que, por isso,não dá mais muita importância às coisas e que, de repente, se vê inebriado por toda a beleza da vida em um rápido instante. O texto, no primeiro parágrafo, já desperta no leitor a curiosidade de saber o que rompeu com a mesmice da vida do narrador:
No centro do dia cinzento, no meio da banal viagem, e nesse momento em que a custo equilibramos todos os motivos de agir e de cruzar os braços, de insistir e de desesperar, e ?camos quietos, neutros e presos ao mais medíocre equilíbrio – foi então que aconteceu. (BRAGA, 2009, p. 262).
Após deixar claro no primeiro parágrafo que algo se deu para quebrar a rotina do narrador, a crônica segue apresentando uma série de comparações que demonstram o estado de espírito do mesmo:
Eu vinha como um homem que vem e que vai, e já teve noites de tormenta e madrugadas de seda, e dias vividos com todos os nervos e com toda a alma, e charnecas de tédio atravessadas com a longa paciência dos pobres – eu vinha como um homem que faz parte da sua cidade, e é menos um homem que um transeunte, e me sentia como aquele que se vê nos cartões postais, de longe, dobrando a esquina. (BRAGA, 2009, p.262).
De repente, ao fechar de um semáforo, numa breve cristalização do momento,avida se renovou diante dos olhos do narrador, num instante mágico aconteceu a epifania:
Foi apenas um instante antes de abrir um sinal em uma esquina, dentro de um grande carro negro, uma ?gura de mulherque nesse instante me ?tou e sorriu com seus grandes olhos de azul límpido e a boca fresca e viva; que depois ainda moveu de leve os lábios como se fosse dizer alguma coisa – e se perdeu a um arranco do carro, na confusão do trá?co da rua estreita e rápida. Mas foi como se, preso na penumbra da mesma cela
eternamente, eu visse uma parede se abrir sobre uma paisagem úmida e brilhante de todos os sonhos de luz. Como vento agitando as árvores e derrubando ?ores, e o mar cantando ao sol (BRAGA, 2009, p.263).
A vida tem momentos esplendorosos, de revelação, mas que passam porque essa é a sua natureza: a fugacidade. Essa mensagem está contida na crônica acima citada e sintetizada em uma bela metáfora genial de Braga: O instante maravilhoso causado pela visão da bela mulher de olhos azuis “se perdeu a um arranco do carro, na confusão do tráfego da rua estreita e rápida”. Ora, o que é a ’rua estreita e rápida’ se não a própria vida? Ela é formada pelo intenso tráfego de momentos que vêm e que vão, certamente. Usando a metáfora citada como ‘gancho’ ressaltamos um aspecto comum às obras dos autores estudados,que na verdade é o grande elemento gerador de discussões a respeito das barreiras entre crônica e poesia: O trabalho da linguagem, que Roman Jakobson chamou de função poética. É desse trabalho que brota o lirismo que eterniza os poemas e as crônicas. No primeiro caso, inclusive, foi a natureza lírica das crônicas de Rubem Braga um dos principais fatores que fez com ele se destacasse entre os cronistas brasileiros, já que a crônica por ser criada para publicação em jornal normalmente é tão perecível quanto este. Ao compararmos o lirismo presente nos textos citados acima veri?caremos que Mario Quintana deixa o elemento lírico, digamos, menos explícito que Braga, já que este último se utiliza de palavras e imagens que por si sós já provocam efeito poético ao texto, como no trecho citado acima que merece ser repetido: “Mas foi como se, preso na penumbra da mesma cela eternamente,eu visse uma parede se abrir sobre uma paisagem úmida e brilhante de todos os sonhos de luz” (BRAGA, 2009, p.263). Quintana, por sua vez, se utiliza de um lirismo mais sutil e, sem dúvida, extremamente belo. Retomamos a questão da epifania em Aparição, de Quintana, para tentar estabelecer uma relação de proximidade com a crônica Visão, de Braga. Os textos já se aproximam a partir do título. As duas palavras apresentam-se como sinônimas e trazem em si a conotação de ver/contemplar um objeto ou ser fantástico ou sobrenatural. Em ambos os textos poeta e cronista geram expectativa e deixam o leitor em suspense diante da revelação que está por vir. Embora escrito de forma mais curta e concisa, o poema não se distancia da crônica neste aspecto. A capacidade de provocar expectativa é explícita em Quintana. “Tão de súbito, por sobre o per?l noturno da casaria, tão de súbito surgiu, como um choque, um impacto, um milagre, que o coração, aterrado, nem lhe sabia o nome: – a lua!” (p.71). Nele vemos também a capacidade criativa do poeta ao apropriar-se de uma metáfora bastante recorrente na poesia e atribuir-lhe aspecto de novidade. A lua de Quintana não é a lua dos apaixonados. Não é a lua que contempla os casais, não é a lua das noites de amor. Ao contrário. É uma lua “ensangüentada e irreconhecível”, testemunha dos campos de guerra, da violência e da morte. Esse novo olhar sobre a lua é a concretização da epifania no poema...
Extraído do trabalho: O poema em prosa de Mario Quintana e a crônica de Rubem Braga: interconexões.
Autoria de Líllian Régis & Lindjane Pereira - Universidade Federal da Paraíba
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