A poesia de Fagundes Varela é, aparentemente, muito heterogênea, possuindo quase todas as vertentes trabalhadas pelo romantismo brasileiro. Talvez esse fato se justifique pela época em que surgiu seu primeiro livro de poesias , ou seja, 1861, momento este em que a literatura brasileira estava passando por um momento de transição. Não havia nos meios literários nenhum poeta de peso. Gonçalves Dias estava muito doente, Álvares de Azevedo havia falecido e Castro Alves era ainda um estudante ginasial. Devido ao período em que surgiu Varela, Antonio Candido fala que ao poeta "[...]coube-lhe a sina de reviver essa furiosa boêmia, tendo sido no Romantismo o último arcanjo revel;[...]" . Pode o ter sido na vida, mas em sua obra literária foi um pouco diferente, possuindo algumas características que podem ser muito mais interessantes para a poesia brasileira, do que a simples imagem, que foi construída através dos tempos, de poeta "desregrado", tanto que o mesmo Antonio Candido fala que: "Não é tampouco fácil o seu caso em face da história literária".
Alguns dos temas trabalhados na obra vareliana que podemos citar são: o byronismo, o lirismo, a nacionalidade, o panteísmo, a americanidade e o indianismo, este citado por último porque foi trabalhado em Anchieta ou o Evangelho nas Selvas, última obra que o poeta fez e revisou.
No entanto, mesmo tendo versado sobre os vários temas do Romantismo brasileiro, podemos encontrar uma linha que percorre toda a obra vareliana; esta linha é o instinto de americanidade. Mas antes de mostrarmos como essa vertente se desenvolveu, cabe-nos falar um pouco sobre o que pode ser entendido por instinto de americanidade no Brasil do século XIX.
Concomitante à Ideia de pátria que começou a ser veiculada nos textos dos primeiros críticos do romantismo brasileiro, surgiram algumas insinuações sobre o sentimento de pertença à América, digo insinuações porque a construção da nacionalidade ocupava o primeiro plano nos artigos e o sentimento americanista entrava como elemento de apoio às Ideias nacionalistas.
Assim, as Ideias sobre o que era a América foram trabalhadas pelos críticos Domingos José Gonçalves de Magalhães, Santiago Nunes Ribeiro e Joaquim Norberto de Sousa e Silva de forma um pouco inconsciente. Exceção a esses críticos, foi Adolfo Varnhagen que sistematizou um pouco o que seria o sentimento de americanidade.
Essa intuição de que o Brasil não era apenas uma pátria, mas também parte constituinte de um continente aparece em Gonçalves de Magalhães como "este imenso e rico país da América", em Joaquim Norberto como "o novo império americano", em Santiago Nunes Ribeiro, este mais voltado para o literário diz que a poesia brasileira "é filha da inspiração americana" e para Varnhagen "Deus o fade bem [ao Brasil], para que os poetas em vez de imitarem o que lêem se inspirem da poesia que brota com tanta profusão do seio do próprio país". Neste ponto alguns trechos da poesia vareliana nos ajudará a visualizar melhor o que esses críticos tinham como ideal de poesia americana:
Pisaste uma nação, - nação tão grande
Que a loucura perdoa-te ("A Willian Christie", Estandarte Auriverde)
Neste verso vemos, claramente, a Ideia do Brasil como uma nação e a concretização do pensamento de Magalhães no "tão grande", usado por Varela, dando a Ideia de imensidão do país, mas o Brasil também é visto como um império pelo poeta:
É o império da luz, o Éden dos anjos,
A pátria dos eleitos ("Predestinação", Vozes da América)
Como podemos ver, o Brasil/América é visto como um império, um paraíso, a terra prometida, portanto o que, aqui, havia era uma dádiva de Deus, não era preciso construir nada. Assim, mais uma vez vemos concretizado, na poesia de Varela, a Ideia de outro crítico, que chamou o Brasil de "império" .
E para exemplificar o que disse Adolfo Varnhagen de que os poetas não precisavam "imitar o que lêem", mas apenas observar a natureza brasileira, vejamos mais uma estrofe da obra vareliana:
Porém minh'alma triste e sem um sonho
Repete olhando o prado, o rio, a espuma:
__ Ó mundo encantador, tú es medonho! ("Sonêto", Vozes da América)
Nesta estrofe vemos a atitude contemplativa do poeta frente a natureza americana/brasileira. Temos a imagem do poeta como um sofredor e que não tem sonhos, justamente porque não precisa imaginar um lugar perfeito, basta olhar os elementos da natureza para ver um mundo "encantador" e "medonho" ao mesmo tempo, ou seja, a inspiração do poeta não precisa vir de outras leituras, mas apenas da contemplação da natureza, como se fosse um pintor querendo reproduzir numa tela as imagens da América.
Fagundes Varela pode ter concretizado em seus poemas muitas das Ideias americanistas veiculadas nos textos desses críticos, entretanto, vale lembrar que essas Ideias que encontramos, nos críticos já citados, não nasceram aqui no Brasil, as Ideias foram importadas, assim como as noções de nacionalidade, trabalhadas pelos autores românticos, principalmente, do primeiro momento da literatura romântica no século XIX. Neste ponto as palavras de Maria Helena Rouanet nos ajudam a entender melhor a questão de como nasceram as observações sobre a América nos autores brasileiros:
"Poucas surpresas aguardam quem resolver agora observar a visão que se tinha da realidade americana no Brasil do século XIX... Os elementos presentes no discurso do europeu aqui também se faziam notar e mereciam destaque."
Deste modo, os escritores românticos insinuam em seus textos as mesmas Ideias presentes nos relatos dos viajantes, até mesmo os adjetivos se repetem: "grande", "imenso", "vasto Éden", "paraíso". No entanto, esse esboço da americanidade nos autores românticos está antes de tudo, a serviço do nacionalismo literário, ainda mais se lembrarmos do adjetivo que usou Joaquim Norberto para caracterizar o Brasil: "o novo império americano", o que nos leva a pensar que todos esses elementos confluíam para exaltar o território brasileiro a ponto de sermos visto como um projeto de "Quinto Império".
Mas, as visões paradisíacas sobre o continente americano que levariam ao "exotismo" na visão de Maria Helena Rouanet, levam a exaltação da imagem do Brasil, pois se os viajantes comparavam para poder explicar a América ao europeu, o escritor brasileiro comparava para mostrar a superioridade da natureza brasileira sobre a européia. De uma certa maneira é o que Silviano Santiago fala a respeito de como o escritor latino-americano lê o signo estrangeiro, operando uma inversão de visão, de modo a dar um novo valor ao signo lingüístico já trabalhado pelo europeu e como diz Silviano Santiago: "Em todo caso, uma coisa é certa: as leituras do escritor latino-americano não são nunca inocentes. Não poderiam nunca sê-lo".("O entre lugar do discurso latino-americano" pg.24). Ocorre assim, o que podemos chamar de uma refuncionalização das imagens da América nos escritos brasileiros, uma vez que serviram como mais um elemento na construção da nacionalidade brasileira. E não poderia ser diferente, pois se levarmos em conta todo o desejo dos românticos em se desvencilhar da metrópole, e de uma certa forma do peso mental que colonizador exerce sobre o ex-colonizado para construir uma imagem de Brasil independente de Portugal, mesmo que para isso fosse necessário adotar uma nova pátria cultural como exemplo a ser seguido, as atitudes dos românticos brasileiros nãos serviriam tanto aos risos de alguns, que vêem no movimento romântico do primeiro momento uma mera cópia das Ideias francesas.
Mesmo havendo as repetições das imagens da América nos escritos dos críticos românticos, isso não era feito de forma muito consciente, as Ideias apenas se insinuavam, pois o que estava em jogo no momento era a construção da nacionalidade, portanto as imagens a respeito da América ficavam, legadas a um segundo plano.
Exceção em meios aos críticos do início do século XIX foi Adolfo Varnhagen, o qual tratou o tema da americanidade de forma bem consciente, sistematizando, um pouco, como deveria ser uma poesia de cunho americanista. Entre os aspectos que pudemos observar no texto do crítico sobre o americanismo na poesia, estão os seguintes elementos: a natureza como tema central, depois comparar esta com a natureza européia, a poesia deveria ser descritiva e por fim, a imagem da América como o Éden. Sem dizer que o que a natureza americana possui é uma dádiva divina, o poeta não necessita buscar na sua imaginação as imagens americanas, mas simplesmente contemplar e transpô-las em versos como já havíamos dito antes. Veja como Varnhagen deseja uma poesia americana:
"A América nos seus diferentes estados, deve ter uma poesia, principalmente no descritivo, só filha da contemplação de uma natureza nova e virgem[...]".
Antonio Candido também nos chama a atenção para a questão do descritivo na poesia romântica, como um artifício que devia ser usado pelos escritores para mostrar "os elementos diferenciais" na literatura nacional, os quais eram "a natureza e o índio". ( "Letras e Ideias no período colonial" Literatura e sociedade pg.89). Aqui, novamente podemos nos valer de algumas imagens da poesia de Fagundes Varela, onde a descrição dos elementos da natureza brasileira brotam por todos os lados:
"Desponta a estrêla d'alva, a noite morre,
Pulam no mato alígeros cantores,
E doce a brisa no arraial
Lânguidas queixas murmurando, corre"
Também, é importante lembrar que o Brasil acabou sendo visto como sinônimo de América, então, quando se falava em cor local falava-se de cor americana e vice-versa. Assim, ocorre uma extensão das exigências dos críticos do XIX, pois se num primeiro momento lamentavam a falta da cor brasileira nos textos, agora lamentam que muitos escritores estavam se abstendo de usar as cores americanas em suas poesias.
Baseados nestas observações que fizemos até agora, podemos afirmar que a obra do poeta Fagundes Varela possui muitos dos elementos necessários para a constituição de uma poesia americana.
Um dos elementos do instinto de americanidade era o da comparação da América ao Éden, algo quase divino, a verdadeira "pátria dos eleitos", a terra prometida por assim dizer. Vejamos este trecho do poema "Predestinação", de Fagundes Varela:
"E o rio, a serra, as solidões e o homem
se espreguiçam sorrindo ao sol divino
da volúpia no véu.
__ O que vês sonhador? __Oh! Não perguntes!
É o império da luz, o Éden dos anjos
A pátria dos eleitos! (Vozes da América)
A imagem do paraíso na poesia de Varela é clara, e esse paraíso é a própria América. Isto é revelado no final do poema, no entanto, o mais interessante não é isso, mas a consciência que o eu poético possui de que essa visão paradisíaca veio de fora, do colonizador. Vejamos o final do poema:
"Sabeis quem era esse mancebo pálido?
Era Colombo o Genovês, e a plaga
Que ele avistara ao longe- o Novo Mundo."(idem)
Outra nuança da americanidade era a comparação da natureza brasileira com a européia, momento este em que o Brasil era sempre superior ao "velho mundo", e isso também está na poesia vareliana:
"Bela estrela de luz___ diamante fúlgido
Da coroa de Deus __ pérola fina
Dos mares do ocidente,
Oh! Como altiva sobre nuvens de oiro
A fronte elevas afogando em chamas
O velho continente! ("AO BRASIL" O estandarte auriverde)
A Europa seria o lugar frio e apagado, enquanto o Brasil era o lugar quente abençoado pela Providência e, aí, o nacional era valorizado, pois basta observar a descrição feita do Brasil na estrofe e vamos encontrar a imagem brasileira apagando a imagem européia como um sombra, mas não é um simples sombra, é uma sombra feita por "nuvens de oiro".
Ainda, tratando sobre o que poderia ser a americanidade Zilá Bernd nos ajuda um pouco , uma vez que para ela "é através dos contos e das lendas populares veiculadas, em sua maioria oralmente, que uma versão outra da realidade do imaginário americano é transmitido."(Literatura e americanidade pg. 13)
Se pensarmos segundo essa perspectiva Fagundes Varela possui muito mais de poeta americanista do que pensamos, pois se observarmos poemas como "Antonico e Corá" e "Leviandades de Cíntia", os quais para Antonio Candido são poemas da roça, teremos na verdade, poemas/contos que nos mostram a realidade de um América bem divertida, uma vez que os poemas se aproximam às anedotas ou "causos"contados por alguém do povo.
"Antonico e Corá" é um divertida história em que Antonico abandona Corá e depois de um certo tempo, já estando casado, se arrepende e resolve voltar para a casa a fim de pedir perdão, para isso vai confessar-se e descobre que sua mulher está casada com um padre, o qual lhe propõem um acordo:
[Antonico]"A mulher que me pertence,
que aí repousa a seu lado!
É isto que eu chamo um feio,
Vil pecado!
.....................................
[o padre]...E fala__ Sossega, filho,
Tudo, tudo arranjaremos,
Chega-te aqui para perto,
Conversemos: (o grifo é nosso)
O poema "Leviandades de Cíntia", também é outra história muito divertida. Três homens vão até uma ponte para cometer suicídio por amores a uma mulher, sendo um deles o marido, mas os dois amantes, resolvem antes de pular da ponte gritar o nome da amada juntos e descobrem que iam se matar pela mesma mulher, momento este em que o marido aparece e os dois amantes fogem da faca do esposo de Cíntia, esquecendo a Ideia de suicídio:
"Fujamos, meu amigo! É o marido!
É o marido que chegou, fujamos!
Ei-lo! Que brilho o seu punhal espalha!
Como é grande, meu Deus! Como é terrível!
Corramos já sinto pelo ventre
O imperioso anúncio do perigo!...
Fica para outro dia o nosso plano!" (Cantos do Ermo e da Cidade)
Outra faceta da amercianidade de Fagundes Varela está nas diversas descrições da natureza que há em sua obra, entre elas podemos citar os poemas: "As Selvas", "Soneto", "O Vagalume", "Cantiga", o "Sabiá" e muitas outras composições. Sem falar das diversas composições que fez para serem musicadas na época.
Desta maneira, ao observarmos a obra de Fagundes Varela pelo prisma do instinto de americanidade, é interessante refarzermos aquela imagem de poeta e pai sofredor que nos é passado no "Cântico do Calvário", para olhá-lo de uma maneira um pouco diferente, ou seja, a de um poeta engajado no ideal de construção da nacionalidade brasileira, que escolheu o "americanismo" como meio de exaltar o Brasil em suas composições, pois não podemos nos esquecer que muitas vezes o nome América foi usado como sinônimo de Brasil e vice-versa.
Fonte: vbookstore.uol.com.br
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