O romantismo

No dia 18/06 passado fiz uma palestra com o título acima na Academia Brasileira de Poesia – Casa Raul de Leoni. Não cabendo num jornal tudo que disse, não quero, no entanto, deixar de fazer imprimir algumas observações que considero pertinentes à nossa cultura.
A questão central que coloco está já tocada no livro “Gonçalves Dias”, de nosso topo de mastro Manuel Bandeira (Irmãos Pongetti Editores, RJ, 1952). Levado por ele, tento-a responder com minhas reflexões. Para isto, resumo, primeiro, a vida do poeta maranhense, com paralelos em sua poética. Antônio Gonçalves Dias (1823-1864) foi filho ilegítimo de um comerciante português com uma cafuza. Seu pai reconheceu talentos nele, apesar de, naquela época, um tal filho, depois de se casar com uma senhora branca da sociedade, seria posto de lado. E, notando-lhe os talentos como caixeiro de seu negócio, aos 10 anos de idade, resolve pagar-lhe uma preparação em Latim, Francês e Filosofia. Cada vez mais deslumbrado, quer levá-lo para estudar em Coimbra. Morre, mas a madrasta banca sua ida a Portugal. Entra para a faculdade de Direito sem dificuldade, e faz muitas amizades pelo seu preparo, disposição de estudo e talento poético.
Bem como, constância que perdura a vida toda, tem muitas namoradas, apesar de pardo (defeito naquela época) e de seu metro e meio de altura apenas. Sete anos depois volta ao Maranhão. Seu caráter faz renunciar a uma banca eleita para examinar meninas, por saber que outros jurados tinham sido nomeados para favorecerem filhas de amigos... Está no Rio de Janeiro, sempre pesquisando em biblioteca, quando seu livro “Primeiros Cantos” é lançado, e recebe uma resenha favorável, em Portugal, de Alexandre Herculano. Isto faz com que os brasileiros queiram lê-lo. E todos se encantam com seus versos. Tem vinte e poucos anos e se torna famoso. Entra para o Instituto Histórico, é nomeado professor do Colégio Pedro II de História e Latim, e recebe, do imperador, a Ordem da Rosa. Ao ler no “Jornal do Comércio” a relação de uma página inteira de nomes dos que a recebem com ele, comenta não se sentir “distinguido”, mas sim “confundido”. E que detesta ver seu nome ao lado de quitandeiros e negreiros...
Pelos dois fatos que demonstram seu raro caráter numa sociedade que valorizava o ócio dos donos de escravos, seu comércio sórdido e o aproveitamento de cargos de honras monárquicas, sem que se fizesse muito esforço intelectual em parte alguma, bem demonstram seu espírito crítico e de seriedade.
Foi incumbido pelo governo de estudar a instrução primária, secundária e profissional nas províncias do Norte, por onde viaja e escreve relatórios com sugestões de mudanças. Dois anos depois é comissionado para estudar os métodos de instrução pública em diversos países da Europa e coligir documentos referentes à História do Brasil. Quando procura os relatórios que entregara ao governo sobre nossa educação, para tirar deles algumas observações, não os encontra. Tinham sumido dentro de nossa burocracia. Escreve revoltado com o nosso serviço público ao ministro Paranhos. Na Europa é encarregado de observar a Exposição de Paris, onde conhece o novo sistema métrico, escrevendo ao imperador recomendado sua adoção no Brasil. Nomeado chefe da Comissão Científica de Exploração ao norte do país, volta ao Brasil, exercendo a função, em nossas selvas, dentre índios, inclusive, de etnólogo. Seu indianismo como poeta não foi devido tanto à imaginação de um romântico apenas.
Chega a analisar o caráter de nossos indígenas e a apontar a possibilidade de ter havido uma civilização que decaiu, conservando grandes qualidades que aponta. E mostra o caráter forte de nossos índios, que todos sempre quiseram ignorar, sobretudo pela rítmica marcada, não só índia mas que é também negra, bem brasileira, de seus poemas. É de se lembrar que escreveu um dicionário de tupi-guarani, e que seu esforço como filólogo, fez com que escrevesse em português arcaico as “Sextilhas de Frei Antão”.
Por tudo isto se compreende que Gonçalves Dias era um estudioso, um profissional dedicado, um homem realista com espírito cientista. Bem sucedido entre as mulheres, casa-se sem amor, e chega a se separar de sua mulher, meio enfadado com sua personalidade. Nada aí do desgostoso que chora as recusas do amor. E aqui vai a questão: então por que tanta queixa e suspiros em sua poesia romântica?
Há o caso de uma grande paixão, sim, rejeitada não pela amada, mas pela mãe dela, exatamente por ser mestiço e filho ilegítimo. Chamava-se Ana Amélia Ferreira do Valle, e a ela dedicou poemas do mais puro lirismo da poesia brasileira (como os belíssimos “Seus olhos” ou “Ainda uma vez adeus”). Mas, mesmo aí, vê-se o homem de caráter frio, racional, quando ao pedir a mão da moça em carta, aponta apenas para as dificuldades que ela teria de passar, dizendo-se sem ambição de “figurar na política de meu país, nem o amor de fazer fortuna, e quando se desse o contrário faltar-me-ia ainda a habilidade, o jeito a alcançar ambas”. Ainda afirma não desconhecer que outros partidos melhores “se oferecerão para sua filha”... A moça, apaixonada por ele, escreve-lhe pedindo que fujam juntos. Seu caráter a repreende. Ele, contrariamente a todos os românticos que até sonhavam com uma situação dessas, nunca agiria assim!
Concluo, contudo, que não havia essa tão aparente contradição entre o homem realista e o poeta romântico. Gonçalves Dias procurava o saber e a justiça. Sofria pelas injustiças existentes no país, a começar pela escravidão. Analisou como um antropólogo antes da existência desta profissão (“avant la lettre”) nosso meio, fria e cientificamente. Demonstrou, por sua vida, a possibilidade de o trabalho poder mudar nossas condições desfavoráveis. A Ideia de mudança o torna sonhador, romântico. A sua sensibilidade exagera a dor romântica. E nisto mostra o lado positivo da brasilidade, sua veia artística. Sim, a brasilidade, seu estudo e exemplificação têm em Gonçalves Dias um dos mais destacados pioneiros. E sua linha de crítica e reconhecimento de caminhos por nossas características antecipou um Euclides da Cunha, um Gilberto Freire ou Sérgio Buarque de Hollanda, ou Mário de Andrade, que como ele foi mais que trezentos. E é preciso ser múltiplo quando se é pioneiro nas observações sobre uma nação, seja em prosa ou poesia...
Só lamento é que outra característica brasileira seja a do esquecimento e desprezo pela própria cultura. Quantos estão estudando e escrevendo sobre o passado de europeus e norteamericanos que ignoram o significado de um Gonçalves Dias? Este esquecimento é também nefasto, fazendo-nos sempre recomeçar, desenraizando-nos, tornando-nos tão estranhos a nós mesmos que acabaremos sendo parte de um passado que não nos pertence. Como os africanos colonizados pelos franceses diziam, na época das colônias, que seus antepassados eram os paladinos de Carlos Magno. Foi bom isto para a África? Também não é bom para o Brasil desconhecermos o poeta romântico excelente caráter, que nos aponta o que somos e como sonharmos e mudarmos, que foi o muito mais do que simples nome de ruas de algumas cidades do país, Gonçalves Dias. Que seja “distinguido” e não mais “confundido”, como reclamou ao receber a comanda de que, aliás, nunca pagou para tê-la, e nem a foi apanhar, tão insignificante lhe pareciam tais “honrarias formais”, dano na formação de nosso povo! Mas lido, sejam reconhecidas as qualidades de um poeta autêntico, tão bom quanto seu belo caráter.
*Gerson Valle é poeta e escritor, membro titular da Academia Brasileira de Poesia
(Publicado no Jornal Poiésis - Literatura, Pensamento & Arte, nº 160, julho de 2009, página 8)

Fonte: www.jornalpoiesis.com