Na pena de Henriques Leal

Seg, 27 de Julho de 2009 11:48

Antonio Gonçalves Dias veio ao mundo ao amanhecer do dia 10 de agosto de 1823. Nasceu na cidade de Caxias, onde residia seu pai, o negociante João Manuel Gonçalves Dias com sua mãe, Vicência Mendes Pereira, mulher de cor acobreada, [...]
Mal contava Gonçalves Dias um mês de nascido, quando seu pai, julgando em seus excessivos receios o remontado e escuso sítio onde se refugiara com a família e o irmão, asilo não de todo seguro, passou-se as ocultas para a cidade de São Luís e daí embarcou-se para Portugal, vivendo por todo o tempo que aqui permaneceu em Trás-os-Montes, sua província natal.
Chamavam-no todavia para a pátria adotiva saudades do filho e seus interesses comerciais, e assim que soube estar consolidada a ordem e serenados os espíritos na nossa província, tornou-se em 1825 para o Maranhão indo continuar com sua casa de comércio em Caxias e viver com Vicência e o filho sob os mesmos tetos até que em 1829 despediu-se para se casar com a Exmª. Srª. D. Adelaide Ramos de Almeida, [...]
Julgando-o seu pai bastante habilidoso para tomar conta da escrituração de sua loja, que era por partida simples, fê-lo em 1833 seu caixeiro. Era para ver como ele tamanino, que mal lhe aparecia a cabeça por trás do balcão, não se deixava embair pelos fregueses, antes levava-lhes a melhor em respostas agudas e ditos picantes.[...]
Desde a meninice que mostrou Gonçalves Dias decidida paixão pela leitura.[...]
Freqüentava então a loja, entre outros, um velho sabido em contos maravilhosos e nas proezas de Roldão, de Oliveiros, de Ricareto, de Bernardo del Caspio, e de outros quejandos personagens desse livro de cavalaria andante e esse o trazia embutido de tais Ideias. Tudo isso aguçava o desejo que nutria o menino de possuir um exemplar do seu mimoso autor, e não descansou enquanto não lhe comprou o pai tão precioso tesouro, dando-lhe ao mesmo tempo, como corretivos, a História de Portugal por Laclède e a Vida de D. João de Castro por Jacinto Freire. Essa aplicação tão ardente aos livros fez com que o pai de Gonçalves Dias reconhecesse que não era ele talhado para medir chitas aos côvados e pesar manteiga aos arráteis, e assim, sem retirá-lo de todo do balcão, fê-lo em junho de 1835 em diante freqüentar as aulas de latim e francês do professor Ricardo Leão Sabino. Dentro de pouco percebeu o inteligente e perspicaz professor que tinha no discípulo um talento fora do comum e entrou a instar com João Manuel Gonçalves Dias que aplicasse o filho às ciências. Abraçada essa Ideia, trouxe-o consigo para a cidade de São Luís em maio de 1837, para daí transportar-se com ele para Portugal, onde ia aquele procurar, senão restabelecimento, ao menos alívio aos seus padecimento pulmonares; mas foi-se ali agravando essa enfermidade até que a 13 de junho do mesmo ano expirou nos braços de Gonçalves Dias [...]
Orfão, só no mundo, sem arrimo nem proteção, e tão verde em anos, se tornou para Caxias acabrunhado de tantas mágoas e com suas esperanças de todo desvanecidas; mas sua madrasta, que o estimava, o acolheu em seu desamparo. Instigavam-na para que efetuasse o intento de seu defunto marido, o juiz de direito da comarca, o Sr. Dr. Antônio Manuel Fernandes Júnior (depois de desembargador), prometendo obter da nossa assembléia legislativa provincial, de que era membro, um subsídio a fim de auxiliar as despesas de Gonçalves Dias na Europa, o Professor Ricardo Sabino, o Coronel João Paulo Dias Carneiro e os Drs. Luís Paulino Costa Lobo e Gonçalo da Silva Porto, oferecendo-se para contribuírem com quotas mensais que assegurassem a manutenção do inteligente menino. Em vista de tão generosos e instantes oferecimentos e ainda mais desejosa de cumprir a última vontade do esposo, a Exmª Sr.ª D. Adelaide Ramos resolveu-se a mandá-lo para a Universidade de Coimbra, recusando contudo para isso quaisquer alhe os auxílios. No dia 13 de maio de 1838, retirou-se de Caxias, em companhia do ferreiro Bernardo de Castro e Silva, natural da Figueira da Foz, e para onde se retirava com a pequena fortuna que ali adquirira. Ia incumbido de vigiar Gonçalves Dias e de abonar-lhe as mesadas.[...]
(Praça Gonçalves Dias – Caxias – MA)
Para a capital do nosso Império estavam pois a impelir o poeta seus incontestáveis e extraordinários merecimentos literários, e é nesse grande teatro que vamos seguir os passos de Gonçalves Dias. No dia 6 de julho desse ano de 1846 chegou ao Rio de Janeiro, depois de uma trabalhada viagem de vinte e um dias cheia de acidentes desagradáveis, como ele próprio nos refere “Foi maldita a viagem, e tanto que eu desesperava de chegar a salvamento. Saindo da Paraíba encontramos um iate pelo meio da noite. Houve abalroamento, a tripulação saltou para o vapor, e creio que aquele foi ao fundo. Em Pernambuco arrebentou uma amarra, e andamos às cristas com os navios ancorados. Na Bahia o contramestre matou um companheiro e amigo! Ao entrar finalmente no Rio faltou-lhe carvão ao vapor, e uma das caldeiras por estar rachada, ou por outro qualquer motivo, deixou de funcionar. Entramos pois no dia 6 à noite e desembarcamos a 7. Ao desembarcar a bagagem, vi eu que uma caixa de livros estava molhada; estragaram-se os três últimos volumes do Byron, alguns de Filinto, todos os meus escritos, etc., etc. E por fim, como eu não posso mudar de terra sem granjear moléstias, estou com a boca toda ferida, não sei de quê, talvez seja por causa do creosote de que fiz muito uso para aliviar de dores de dentes, talvez ainda do charuto: veremos de que é!!
“Nesses seis dias vou fazer imprimir os prospectos dos meus Primeiros Cantos.”[...]
No mês de janeiro de 1847 publicou enfim o seu primeiro volume de poesias. Saiu à luz desacompanhado de louvores preventivos ou de anúncios pomposos, em letras capitais, como que para reclamar a atenção pública, senão de duas linhas em tipo miúdo perdidas entre mil outros da quarta página do Jornal do Comércio, [...]
Pouco depois apareceu outra análise às poesias de Gonçalves Dias em um jornal literário – A Revista Universal do Rio de Janeiro, que começava então a sua carreira jornalística.
“O livro deste ilustre e talentoso poeta, diz ele, é e deve ser considerado como um acontecimento importante para as letras brasileiras, porque ele encerra em si a majestade poética, encarnada em cada um dos seus cantos: é um livro que deve vulgarizar-se, e andar em todas as mãos, porque na sua expressão sublime o pensamento está com o sentimento, o coração com o entendimento, a Ideia com a paixão, e tudo isto colorido com a imaginação, e fundido com o sentimento da religião e da divindade.”
“Não é possível individualizar este ou aquele canto para o recomendar, porque todos eles importam um merecimento real, mas sempre especializaremos as Poesias Americanas que vêm repassadas e ungidas de uma originalidade e nacionalidade muito felizes.” [...]
“Não conheço, nem sequer de nome um só dos que têm escrito a meu respeito: não consenti que nenhum dos meus amigos me elogiasse”, escrevia-me ele em data de 5 de julho de 1847.
Estava então bem longe de prever que seria glorificado por um dos maiores vultos de Portugal! Não acho expressões com que possa descrever a extrema alegria que manifestou o poeta quando em um dos dias de novembro de 1847 entrando-lhe eu pela sala onde trabalhava, dei-lhe a ler o número da Revista Universal Lisbonense, onde vinha o artigo do Sr. Alexandre Herculano. Foram momentos de louco prazer. Lemos e relemos o artigo e o comentamos uma e muitas vezes, fazendo observações sobre o nome e qualidades do autor, a espontaneidade, as conceituosas frases e as circunstâncias que concorreram para isso. Tudo notamos, desfiamos e aplaudimos.[...]
Na página 5 do tomo VI da Revista Universal Lisbonense de 1847 esse artigo tão animador e benévolo, e onde dizia do livro: “Os Primeiros Cantos são um belo livro; são inspirações de um grande poeta. A Terra de Santa Cruz, que já conta outros no seu seio, pode abençoar mais um ilustre filho.”
Com ter alcançado desde o aparecimento de seus Primeiros Cantos tão radiosos troféus, e tão universal reputação, havia quase um ano que estava posto no Rio de Janeiro sem obter um emprego que lhe assegurasse a subsistência e lhe desse folga para poder realizar seus projetos literários, e ainda assim freqüentava a Biblioteca Pública, onde continuava a compulsar com profunda atenção todas as obras relativas à história pátria, cismando desde então escrever a História dos Jesuítas no Brasil, para o que já colhia materiais, como mo participou em carta de 23 de janeiro de 1847.
“Continuo com os meus estudos para os romances históricos que devem de ser, com os dramas e a história dos jesuítas, as minhas únicas obras em prosa.”
“Tenho lido muito alfarrábio velho, muita crônica antiga; se não saírem bons, não será nem por falta de estudo nem de meditação sobre a matéria. É a primeira vez que me tenho dado ao trabalho de tomar apontamentos, e para a primeira vez tenho bons cadernos cheios de maçada indigesta.”
Depois de um ano de promessa, realizaram-se as esperanças do poeta com a criação do liceu de Niterói. Noticiando-me a expectação em que estava desse arranjo, dizia:
“Há perto de um ano que aqui estou e por ora nada de arranjar-me – até disso vou perdendo as esperanças. Os nossos grandes homens recebem-me com a carinha n’água, namoram-me quase como se eu pudesse dispor de alguns votos, e estou certo que se for bem recebido pelo Imperador, a quem terei a honra de ser apresentado um destes dias, ninguém será mais festejado, mais gabado, mais apreciado, mais acariciado que eu; veremos pois se os bons olhos do nosso monarca farão mudar a minha estrela; de promessas já estou farto, de esperanças me vou fartando, e um ano de espera, é já muito! Qualquer dia ponho-me ao fresco e vou plantar batatas que é melhor que fazer versos.”[...]
(Carta de 7 de agosto de 1847.)
“Foi com efeito provido no lugar de secretário e professor adjunto da cadeira de latim desse estabelecimento com um magro ordenado que apenas lhe chegava para passar com muita economia.” [...]
(Gonçalves Dias)
Depois de publicado o seu primeiro livro de poesias, voltou-se com efeito para o teatro. Tinha escrito em Coimbra dois dramas – Patkull e Beatriz Cenci. Não estava contente com o primeiro e pretendia refundi-lo, ou então transformá-lo em romance histórico, e quanto à Beatriz Cenci fê-lo copiar e entregar por interposta pessoa ao presidente do Conservatório Dramático. Queria ver o seu trabalho julgado pelo que realmente valesse, e não avaliado e aprovado em homenagem ao nome do autor.
Vieram os inexoráveis censores confirmar que a capa é que neste mundo faz o monge, descarregando a mão tente profundos golpes no drama desajudado de padrinho e paternidade. Descobriram-lhe mil defeitos de gramática e galicismos imperdoáveis, na essência imoralidades em barda e na forma muito inverossimilhança.
Magoou-se Gonçalves Dias deste juízo na parte concernente aos galicismos, erros de linguagem e de estilo; porque prezava-se de purista e jurou in petto despicar-se de uma maneira conforme a seus brios e generoso coração, e empreendeu desde logo essa coleção admirável de Sextilhas de Frei Antão como única e cabal resposta e prova do seu conhecimento da língua portuguesa.[...]
Em fins desse ano, [...] publica os Segundos Cantos –, que foram muito aplaudidos e admirados.[...]
Anos afanosos e quase estéreis foram para o poeta os de 1848 e 1849!... Os lugares do liceu de Niterói tinham sido extintos e ele para viver com a decência que exigiam as relações que sua grande reputação lhe granjeara e com aquela independência que lhe era inata, teve de lutar, sujeitando-se a grandes privações! [...]
Em 1848 fazia extratos das seções da Câmara dos Deputados para o Correio Mercantil, e escrevia também artigos humorísticos e folhetins para o mesmo jornal e no seguinte ano passou a ser redator dos discursos do Senado para o Jornal do Comércio. Nesse insano labor de todas as horas mal tinha tempo para repousar: e menos ainda para ocupar-se de literatura,[...]
Bem tarde acudiu-me o governo nomeando-o a 5 de março de 1849 professor de História Pátria e do 2.º e 3.º ano de Latim do Real Colégio Pedro II, e posto que não bastasse o ordenado para suas despesas, dava-lhe esse emprego certa estabilidade e folga.[...]
Vivia já mais folgadamente com os resultados que lhe subministravam o professorado e a pena literária, e por isso deixou em 1850 a residência meio franciscana da Rua da Misericórdia, passando a habitar um primeiro andar de casas na Rua dos Latoeiros, denominada depois da sua morte – Rua Gonçalves Dias.
Escreveu aí o seu drama – Boabdil – colaborou para o Guanabara, saindo nesta revista, de que foi redator só até findar o primeiro semestre desse ano, vários e importantes artigos seus; foi também assíduo às sessões do Instituto Histórico, onde leu diversas memórias, tais como – O Brasil e Oceania – que é um monumento de investigação e erudição e deu pareceres e tomou parte ativa nos debates, principalmente nos que versaram sobre questões de limites.[...]
Apreciando o Visconde de Monte Alegre, então ministro do Império, o espírito investigador e ativo do poeta, o encarregou de examinar minuciosamente os cartórios dos mosteiros e arquivos de câmaras municipais e de secretarias das províncias ao norte da Corte do Império, a fim de serem transferidos para o Arquivo Público os documentos mais importantes que neles encontrasse; bem como o estado da instrução pública nessas províncias, de que daria conta circunstanciada ao Governo.
(Praça Gonçalves Dias em São Luís – MA)
Começou Gonçalves Dias a exercer essa missão pela cidade de São Luís do Maranhão, para onde partiu a 21 de março de 1851. Antes, porém, de empreender essa viagem, publicou os seus Últimos Cantos, que foram na verdade os últimos; porque mui raras poesias líricas produziu depois.
Parece que o coração lho pressagiava quando dirigindo-se ao Sr. Dr. A. Teófilo, na dedicatória desse volume, exprimiu-se nestes termos: “Eis os meus últimos cantos, o meu último volume de poesias, os últimos harpejos de uma lira, cujas cordas foram estalando, muitas aos balanços ásperos da desventura, e outras, talvez a maior parte, com as dores de um espírito enfermo...”
Ia extinguir as fundas saudades, que o amarguravam, no seio da amizade e nos sítios que lhe recordavam passados gozos da infância, “voltando à habitação singela, como dizia na referida dedicatória, onde correram felizes os primeiros anos da minha infância.”
“Minha alma não está comigo, não anda entre os nevoeiros da Serra dos órgãos, envolta em neblina, balançada em castelos de nuvens, nem rouquejando na voz do trovão. Lá está ela – lá está a espreguiçar-se nas vagas de São Marcos, a rumorejar nas folhas dos mangues, a sussurrar nos leques das palmeiras: lá está ela nos sítios que os meus olhos sempre viram, nas paisagens que eu amo, onde se avista a palmeira esbelta, o cafezeiro coberto de cipós e o pau-d’arco de flores amarelas. Ali sim – ali está – desfeita em lágrimas sobre as folhas das bananeiras – desfeita em orvalho sobre as nossas flores, desfeita em harmonia sobre os nossos bosques, sobre os nossos rios, sobre os nossos mares, sobre tudo que eu amo e que, em bem, veja eu em breve!” [...]
A 15 de Junho de 1854 partiu para a Europa, levando consigo a esposa e uma cunhada.
Foi acolhido em Lisboa com fraternal entusiasmo pelos literatos portugueses, e os jornais de todo o Reino deram notícia da sua chegada em termos assaz lisonjeiros e como de quem rendia preito de admiração a tão ilustre e célebre hóspede; [...]
(Ana Amélia Ferreira Vale – a grande paixão)
Foi em uma das ruas desta cidade que o poeta encontrou inesperadamente aquela mulher dantes risonha, trajando sedas e toda louçã, e agora pobre, abatida, com as feições desfeitas e trocadas as galas dos tempos felizes em rigoroso e profundo luto. O latente e mal sopitado fogo da paixão ateou-se violento, e as feridas não de todo cicratizadas reabriram-se de súbito com aparição tão improvisa. Rebentaram-lhe involuntárias lágrimas, e desvairado voltou para casa, onde a sós consigo deu largas à comprimida dor que lhe despedaçava o peito. Foi nesses transes tão dolorosos e cruéis que brotou-lhe viva, sublime e verdadeira essa plangente poesia – Ainda Uma Vez Adeus – fiel cópia do estado de sua alma.[...]
Nasceu-lhe a 20 de novembro, já em Paris, uma filha, fruto de seu consórcio; –mas tão fraca e enfermiça que entendeu ser-lhe a ela útil, como também à mãe, que padecia no clima da Europa, uma viagem de alto-mar e mudança para os ares pátrios. Nessa conformidade mandou-as para o Rio de Janeiro em companhia do sogro. A 17 de abril de 1855 já se achavam ali, onde não houve cuidado nem medicina que valessem à criancinha, que a 24 de agosto, dia imediato ao do aniversário do nascimento do poeta, já estava na mansão dos justos.[...]
Depois de ter percorrido a Bélgica, a Inglaterra, a Itália, a Suíça e diferentes estados da Confederação Germânica, a fim de examinar em países onde a instrução pública está tão adiantada quais os sistemas mais convinháveis a adotar-se na nossa pátria, tornou-se a Lisboa onde entregou-se a investigações de documentos históricos na Torre do Tombo e nas bibliotecas nacionais de Évora e de Lisboa, mandando extrair cópia de tudo quanto lhe pareceu de proveito para a nossa história, e para as questões territoriais, como sesmarias, forais, privilégios etc., que tudo enviou para o Arquivo Público, não se descuidando também do Instituto Histórico para cuja biblioteca adquiriu manuscritos, bem como obras raras e cópia de outras de que não sabia de mais de um exemplar. [...]
Em Lisboa foi procurado e obsequiado por todos os literatos portugueses de certa nomeada – os Srs. Conselheiros Mendes Leal, A. F. de Castilho, Rebelo da Silva, Pinheiro Chagas, Teixeira de Vasconcelos, Camilo Castelo Branco, Biester, Bulhão Pato, Lopes de Mendonça, Gomes de Amorim, Xavier Cordeiro, Inocêncio da Silva, Alexandre Herculano, tendo com estes três últimos estreitas relações. Cumpre notar que estas demonstrações de afeto e admiração pelo gênio não foram procuradas pelo poeta, cuja modéstia não consentia se valesse de cartas de recomendação que lhe teciam louvores. Disso tenho provas nas cartas que salvaram-se do naufrágio, e entre as quais encontrei algumas do Sr. Alexandre Herculano, Martius, Sturz, Jacques Arago e de outros recomendando-o a Victor Hugo, Lamartine, Alexandre Dumas (pai), Julio Janin e mais literatos franceses e alguns alemães; as quais deixou de apresentar porque o exaltavam, comparando-o aos primeiros escritores contemporâneos. Não obstou semelhante retraimento a que conhecesse pessoalmente as celebridades européias, a quem foi apresentado por M. Ferdinand Denis que lhe consagrava entranhada afeição e a quem retribuía o poeta, fazendo-lhe também, na ausência, justiça à sua muita probidade, erudição e cavalheirismo.
Na Alemanha encontrou outro amigo no naturalista Martius que o estimava e com quem conviveu na mais cordial intimidade enquanto ali residiu.
Não foi perdida para Gonçalves Dias a sua estada na Prússia, onde aplicou-se ao estudo da língua alemã, que já cultivava de muito, e então aprofundou, procurando ao mesmo tempo dar maior desenvolvimento a seus conhecimentos de ciências naturais, sem descuidar-se contudo da literatura; e foi nessa época que travando relações com os livreiros Brockhaus, publicou em 1857 seus Primeiros, Segundos e Últimos Cantos em um volume nítida e elegantemente impresso com o título de Cantos, e em que vêm suas poesias expurgadas de alguns descuidos de linguagem devidos ao verdor dos anos, e suprimidas outras que lhe não agradavam. Deu pouco depois à luz os quatro primeiros cantos de seu poema – Os Timbiras, e o Dicionário da Língua Tupi, ou Geral dos Indígenas no Brasil.
Estava ainda ocupado com os encargos relativos à instrução pública, quando o encarregaram em 1858 de nova comissão, nomeando-o, nosso governo, chefe da seção etnográfica da Expedição Científica que havia sido criada no desígnio de estudar as riquezas naturais das províncias do norte do Brasil. Na intenção de corresponder de todo o ponto à escolha, dedicou-se com inexcedível ardor a estudar craniologia; galvanoplastia para modelar os pés e mãos dos indígenas; fotografia para retratar alguns espécimens e paisagens; química, física e fisiologia. Pelas noções, que já tinha desses ramos, achou-se dentro de poucos meses suficientemente habilitado neles. Depois de comprar, por conta e ordem do nosso governo, instrumentos, aparelhos, livros e todo o mais material necessário para o bom desempenho da expedição, partiu no fim desse ano (1858) para o Rio de Janeiro a fim de reunir-se a seus companheiros. Prestadas as contas dos dinheiros recebidos na Europa para a compra do que era preciso para a comissão, seguiram a 26 de janeiro de 1859 todos os membros dela com seus adjuntos para o Ceará primeiro ponto de suas observações.[...]
Tendo-se retirado para a Corte, em 1860, quase todos os membros da Expedição Científica, e como que dissolvida esta, veio Gonçalves Dias para o Maranhão no propósito de visitar o Pará e o Amazonas, onde as tribos indígenas conservam muitos dos seus primitivos costumes e falam a língua tupi com mais pureza. Passados alguns meses em minha casa e outros no Mearim, com seu amigo o Sr. Dr. A. Teófilo de Carvalho Leal, e em Caxias com a mãe e amigos, voltou de sua cidade contentíssimo com a brilhante e festiva recepção que seus conterrâneos lhe fizeram, e foi-se em janeiro de 1861 para o Pará, daí passando-se logo para o Amazonas, onde recebeu a notificação de que o Governo dera por terminada a comissão, como a 25 de junho desse mesmo ano mo participou:[...]
(Universidade de Coimbra – Portugal)
As poucas poesias que então compôs foram todas inspiradas por esses dois sentimentos, como se vê da coleção com o título Versos Modernos que publiquei no primeiro tomo de suas Obras Póstumas. Refundiu aí também o seu poema Os Timbiras, e quiçá o concluiu; acabou de traduzir o Raposo de Goethe e adiantou muito a Noiva de Messina de Schiller, versões ambas que começara no Ceará e em que punha todo o cuidado, tendo-as em muita estimação.
Tencionava, logo que terminasse esta excursão, vir assentar sua residência definitiva na nossa capital, junto de seus amigos. Preocupava-o tanto esse projeto, que em mais de uma carta que me dirigiu do Pará e do Amazonas, dizia-me que assim que chegasse ao Rio de Janeiro trataria de obter dos demais membros da Expedição Científica os apontamentos necessários para organizar o seu relatório que viria a escrever no Maranhão, tendo antes conseguido a aposentadoria de oficial da Secretaria dos Estrangeiros para com o rendimento dela e o produto da venda de suas obras viver entre nós vida obscura e sossegada em um arrabalde solitário onde pudesse entregar-se a sua vontade à cultura das letras. Desvaneceu, porém, sonhos tão formosos uma desagradável notícia que recebeu do Rio de Janeiro, acompanhando um número da Semana Ilustrada, onde havia uma gravura que lhe fizeram crer alusiva a fato que entendia com ele.
Falsa ou verdadeira, transtornou-lhe ela inteiramente os planos e turbou-lhe completamente o espírito. Abandonando de repente as margens do Amazonas, passou em meado de novembro desse ano pelo Maranhão, onde se não demorou. Estava triste, desconcertado, taciturno, visivelmente contrariado e por vezes como que alucinado. Prometia estar de volta em princípios de janeiro do seguinte ano; mas chegando ao Rio de Janeiro a 8 de dezembro, comunicou-me que teria de demorar-se ali até conclusão de seu relatório, porque assim era forçoso; mas que apesar de sentir-se bastante doente trabalharia dia e noite contanto que o concluísse com a máxima brevidade.
Ou fosse das privações que sofreu nas viagens pelos rios da província do Amazonas, ou a prolongada exposição ao sol, às chuvas e a toda a espécie de intempéries, e os efeitos da intoxicação lenta dos miasmas palustres que emanam dessa rede de rios que cobre o vale do Amazonas, ou os desgostos e contrariedade que o assediaram no Rio de Janeiro, ou por todas estas causas juntas, como é mais seguro de crer, poucos dias depois de sua chegada, escreveu-me que estava com febre e sentindo-se do fígado.
“A 5 de fevereiro (1862), dois meses depois, comunicava-me que: “................... estas contrariedades me põem num estado de irritação e de suscetibilidade difícil de descrever-se. Fui a isso obrigado por causa da apresentação dos primeiros trabalhos da comissão, que nunca a tivesse aceitado! O primeiro folheto contendo a história da comissão, da excursão de seus membros, o resumo de todos os trabalhos, deve estar impresso para a abertura das câmaras. Em maio ou junho já poderei sair daqui, querendo-o Deus e permitindo-me os meus incômodos, porque sabes ou ficarás sabendo que estou um poço de moléstias – do fígado, dos rins e do coração, de uma, de duas ou das três causas. O que Deus quiser, e seria muito bom que ele o quisesse para muito cedo.”
(Gonçalves Dias)
Continuava a moléstia nos seus estragos e daí a um mês, a 23 de março, referindo-se de novo a ela dizia-me:
“Estou, segundo dizem os médicos, com uma inflamação crônica de fígado, uma lesão incipiente do coração, pernas inchadas em conseqüência do fígado, donde pode resultar uma anasarca, e a voz rouca e presa em conseqüência de desordem dos pulmões que se desordenam com a desordem do supradito fígado.”
“Apesar deste almanaque de cousas ruins não te dê isso cuidado. Deus me deu vida para cem anos, e a prova é que desde os quinze anos a esbanjo tola, estúpida e insipidamente como faz da sua fortuna mal adquirida o herdeiro de casa milionária.”
“Trato de concluir ou antes de atamancar os trabalhos da comissão e depois ponho-me daqui para fora antes que me sobrevenha a máxima de todas as infelicidades, cair de cama no Rio! Quero morrer, lá, no meio de meus amigos, no seio de minha família.” [...]
“Como! eu perco meu pai, quando o apenas contava treze anos. Acho-me aos quatorze, uma criança, sem ter quem olhe por mim, mas também sem dever satisfações a ninguém, só, sem meios nem recursos, quase a mendigar, e tenho a imensa fortuna de sair dessa posição socorrido pelos meus primeiros e bons amigos que datam desse tempo, mas que eu não conhecera dantes, Teófilo, Serra, Lapa, Rego, Pedro, Morais, Virgílio, Jacobina, maranhenses e aqueles três últimos fluminenses que então estudavam em Coimbra e alguns outros que são hoje dos primeiros homens em Portugal.”
“Aos vinte e um anos volto ao Brasil, sem fortuna e sem proteção: percorro em 1851 as províncias do Norte, e deixo por todas elas simpatias!”
“Chego em 1846 ao Rio com 200$000 réis no bolso, vivi sempre de cabeça erguida, não cometi nunca uma indignidade, não tinha de que me envergonhar diante dos homens e tenho a dita de granjear outros amigos, Segundino, Macedo, Porto-Alegre, Capanema e todos os membros dessa boa família de Lopes e Gomensoro, e na Europa deixo Odorico, Sampaio, Mota, Drummond, Ferdinand Denis, A. Herculano, Martius, e na Comissão Científica, Gabaglia, Freire Alemão, Coutinho, e no Ceará Ratisbona, Pompeu e Juvenal.”
“Vou aqui, ou antes ia, como tu tiveste ocasião de ver, aos bailes mascarados de cara descoberta para que todos me conhecessem, e no meio das folias do carnaval, nessa turbamulta de um baile público, ninguém tinha senão lisonjas para me dizer.”
“E esse homem, isto é, eu, vivi dos quatorze anos aos vinte e oito anos de idade, sem nenhuma mancha, sem torpeza, sem que tivesse que fazer reparo na minha vida! E na idade em que nos outros se acalma o fogo da juventude, quando o bom senso começa a predominar sobre o ímpeto e a cegueira das paixões, é então que eu, transtornando o curso normal da natureza, me havia de tornar mau, péssimo, indigno e debochado! Isso é estupendo! E merece bem a pena que se tome nota!” [...]
“Já que me falta tudo, foi Deus servido dar-me amigos bem sinceros, amigos para quando deles preciso, que esses são os verdadeiros. E enquanto me restar um só que seja, não me queixarei da sorte!”
“E todos esses amigos, dizia eu, homens de bem, como os que o são, ciosos de sua reputação e de seu nome, não me repelem, não me abandonam quando me torno indigno deles!”
“Para consolar-me de tantas injustiças, muitas vezes digo comigo mesmo que se pudesse haver alguma verdade no que se espalha, a conclusão seria que fui bom em outro tempo e que deixei agora de o ser!”
“Esta atmosfera do Rio pesa-me, sufoca-me, e estou vendo a hora e o momento em que estalo de dor! e só peço a Deus que isso aconteça bem cedo!”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
“E apesar de tudo, sem que eu comunicasse a minha chegada, sem dizer onde morava, fui procurado e visitado. Um marechal, conselheiros, ministros, senadores, deputados e muitos, quase todos os que entre nós figuram na tribuna, na imprensa e nas letras,– procuraram-me no hotel de S. Paulo. Da Paraíba, de Nova Friburgo, do Maranhão, do Ceará, tem-se-me escrito instando comigo para que eu aceite a hospitalidade que eles de bom grado me oferecem para o meu tratamento e convalescença. A imprensa festeja-me não como a um amante que volta, mas acaricia-me como se acaricia um amigo que sofre.”
“Nas ruas, quando eu passeio arrastando-me enfermo e desanimado, sinto o calor vivificante de olhos compadecidos que me acompanham. Essa mocidade inteligente e benévola do Rio, que me aprecia muito além do que valho, parece compreender, vendo-me, que há em mim o quer que seja que me alquebra o corpo, depois de me ter acabrunhado o espírito. S. M. mesmo, com uma bondade, de que me não esquecerei nunca, recomendou a um amigo meu que me meta em um carro e me leve para fora do Rio.”
“Chego a pensar com amargura que eu já vivi muito e vejo com satisfação que já é tempo de morrer!”
“Sei que a minha moléstia é grave, e nunca me tratei. Precisava descanso e alegava necessidade de trabalho! Precisava sobretudo sair do Rio e procurar em outra parte algum alívio, e deixo-me ficar aqui até hoje! Podia medicar-me, trabalhando, e tão longe estou disso que o meu médico desconfiou já que eu tomasse cousas que me fizessem mal! Não; não preciso disso. Eu bem sei que tenho dentro em mim melhor veneno do que as drogas que se vendem nas boticas!”
“Outro médico deu-me um mês apenas para me ter de pé, e no fim de mês e meio admira-se que eu seja tão forte, porque ainda não estou de cama!”
(Gonçalves Dias)
Havendo por fim concluído o relatório que o retinha no Rio de Janeiro, partiu a 7 de abril (1862) no Apa com destino ao Maranhão; mas já estava a doença mui adiantada, todo edemaciado, sofrendo fortes palpitações de coração, rouco e com tosse. Visitado em Pernambuco pelo Sr. Dr. Sarmento, prescreveu-lhe este, peremptoriamente, que se embarcasse quanto antes para fora do Brasil, se tinha ainda algum apego à existência.
Impressionou-o tanto o parecer do abalizado médico que procurou partir sem mais detença para a Europa. Não foi sem muito custo que conseguiram pessoas qualificadas do Recife, sobretudo o Sr. José de Vasconcelos, a cujo préstimo socorreu-se, obter-lhe passagem no brigue francês Grand Condé, que estava prestes a sair; mas cujo dono, M. Teste, recusava-se a admiti-lo como passageiro por julgar que não deitaria a viagem com vida, obrigando talvez o navio a quarentena e a despesas desnecessárias em Marselha, como também por lhe não convir meter mantimentos para um único passageiro. Removidas estas dificuldades com declaração do médico, e por haver-se sujeitado Gonçalves Dias a fazer matelotagem a sua custa, de bordo do Apa, de onde me escreveu dando conta de tudo isto e dispondo dalguns objetos como quem conhecia próxima a sua hora, passou-se ele para o brigue que já no dia imediato navegava.
Por esta relação escrita dia por dia, e às vezes hora por hora, e que remeteu-me Gonçalves Dias pouco depois de chegar a Paris, conhecerá o leitor o estado e marcha de sua moléstia e mais ocorrências que se deram em sua viagem desde que saiu do Rio de Janeiro até que chegou a Marselha, ficando assim mais que satisfeita a sua curiosidade:
O Diário
“Saída do Apa – 7 de abril.
À noite, ao largar da Bahia, chega o paquete inglês e quebra-se uma pá do nosso que torna uma roda de pouca utilidade. Viemos a custo até Maceió e chegamos a Pernambuco no dia 15.
“Grande novidade! Aconselha-me o Dr. Sarmento que parta quanto antes para a Europa.
“Embarco no dia 18 às 2 horas da tarde, Sexta-feira Santa, depois dos arranjos de passagem, de medicamentos e do farnel de boca, e de vencer as dificuldades do dono do Grand Condé, que a instâncias de amigos deixa-me embarcar no seu brigue no estado perigoso em que me achava.
“Dia 20. Partimos às 6 horas da manhã, levamos todo o dia navegando à vista de terra. Tenho mais apetite, mais sono, mas a inchação cresce. As partes inferiores muito inchadas.”[...]
“Dia 22. Alevantei-me às 2 horas da manhã, adormeci ao relento, retiro-me às 3 para o meu camarote: amanheço com os olhos e rosto inchados. Devo ter 23 galinhas ou frangos. Leio Górgias e Ariosto.” [...]
“Dia 26 sábado. O meu cáustico fez-me um mal horrível; tomo três pílulas de calomelanos. As películas do cáustico vêm agarradas ao ungüento e basilicão. Ponho novo: depois de três horas de horríveis sofrimentos, tiro-o e ponho azeite-doce, em falta de ungüento branco. O rosto (face esquerda) amanhece inchado; mas a inchacão torna a desaparecer durante o dia (10 da manhã).”[...]
“Dia 28 - segunda-feira. Amanhecemos em calma, as velas batem desesperadamente.
“Creio que apenas ontem, talvez pela noite, é que passamos a linha!
“Ótima navegação para quem confiou a sua salvação à rapidez da viagem! Dou balanço à minha capoeira – tenho só 20 galinhas.
“Pescamos dois peixes até as 10 horas da manhã. Faltam-me dois cantos para concluir o Orlando, cujos paladinos me andaram apoquentando a noite passada.
“Dia 29. Os meus incômodos aumentam, bem que eu esteja persuadido que a ter ficado em terra, eles teriam progredido muito mais rapidamente.”[...]
“Estando um pouco pior dos testículos pus emplasto de Vigo sobre o cáustico cicatrizado. Tenho apetite, mas qualquer cousa enche-me o estômago e anseia-me. Durmo, mas sono agitado e interrompido por pesadelos, principalmente até à meia-noite.”[...]
“Os testículos vão a mais a ponto de não me deixarem hoje sentar.
“O membro incha e recurva-se cada vez mais. Estou vendo que dentro de dois ou três dias cessará de todo a diurese. Um pigarro incômodo se faz ouvir, quando respiro. Quase me está parecendo que o Dr. Sarmento tem razão!...”[...]
“Dia 3. Tomei hoje dez pílulas de Halloway. Morreu o marujo que se expôs imprudentemente ao tempo, sofrendo de uma cólica. Coitado!
“Dia 3. Restam-me só 14 galinhas!” [...]
“Dia 9 – sexta-feira – Vou melhor, ou antes continuam as melhoras. A goiabada tem destruído todo o efeito dos purgantes. É preciso ter cautela com ela.
“Dia 10 - sábado. Vento fraco, mas ainda se pode calcular em 5 milhas a marcha do Grand Condé Com o balouço, as garrafas de limonada gasosa têm em grande parte estourado. Hoje bebi a última antes que também estourasse.”[...]
“Dia 11 de maio. Passei a noite sofrivelmente, ainda que continuem os maus sonhos e pesadelo quando me acontece pegar no sono antes da meia-noite.
“Sono interrompido, duas a três vezes. Já não urino tantas vezes, mas a urina tem bom aspecto. O ventre continua intumescido e embaraçado. As pílulas de Halloway farão talvez o milagre de me livrar deste incômodo. Algumas dores nas articulações dos membros inferiores sobremodo doridos, mas tenho apetite e durmo umas seis horas.
(Minha Terra tem Palmeira)
Creio que ainda desta feita não me vou. E o coração?! Sinto palpitações, mas não me parece cousa de muito cuidado, e o cansaço diminui. Ontem pude subir ao castelo de popa para ver o brigue americano. Apesar de embarcado há vinte dias ainda não tinha visto o mar, depois que entrei para o Grand Condé.”[...]
“As minhas galinhas deram em se fazer guerra umas às outras, dentro da capoeira. Caíram todas em cima de uma coitada, espicaçaram-lhe o rabo, donde lhe resultou a morte. Se continuam, mando cortar o pescoço a todas, e conservá-las de sal, como se faz com as marrecas no nosso Maranhão.
“Dado o balanço na capoeira, o Mousse trouxe-me a infausta notícia de que existiam onze, incluindo dois franganitos de nonada. Com o oportuno auxílio do bacalhau e uma péssima carne-seca do Rio Grande, que me compraram em Pernambuco para o meu farnel, espero em Deus que não morrerei de fome até Marselha. Em caso de dúvida há tapioca à ufa.”[...]
“Dia 13 – Abro a segunda caixa de vinho de Bordeaux. A primeira tinha uma garrafa quebrada.
“Não sei se mencionei que há coisa de três dias foi-se a última botija de limonada gasosa. A água mineral parece, porém, que com o frio vai tomando mais força.
“O meu café estragou-se. Vinha embrulhado em papel e tão mal preparado que não era de supor que durasse muito. Não tomei dele nenhuma chávena, e assim foi-me preciso dá-lo antes que de todo se acabasse de estragar.
“Um cento de charutos do Rio teve o mesmo destino. Também não me é possível tolerar o charuto, com o hábito que vou tomando do cigarro com o fumo caporal. Miséria! Até fumo importamos da França e dos Estados Unidos! Deste Brasil se pode com igual razão dizer o mesmo que disse Byron da Turquia: “Tudo nessa terra é divino, exceto o homem que a habita!” e principalmente aqueles que a governam. Isto é meu!” [...]
“Dia 23 - Infelizmente contei só com uma viagem de quarenta dias, o que quer dizer que aos cinqüenta estarei comendo, pelo amor de Deus, se houver quê.” [...]
“Continuo a emagrecer. Mas a barriga, os testículos e joanetes não querem ceder de todo. As palpitações continuam também, não muito incômodas, mas continuam. A tossezinha vai e vem. Nos primeiros dias quase havia desaparecido. Como eu tomava então xarope de Labelonge, e a digitális é aconselhada para estas afecções, atribuo a cessação da tosse ao uso desse medicamento. Tendo uns papelitos de digitális, entendi que devia tomar três por dia; mas com um à noite e outro pela manhã, veio-me uma soltura, acompanhada de cólicas e suores frios. Enfim cheguei a desconfiar!... Agora só tomo um papelito.”[...]
“Dia 26 – segunda-feira. Vento quase bonança e pouco de feição. Só tenho 5 galinhas, o que é uma miséria!” [...]
“1º de junho – [...] Ontem e hoje temos encontrado muitos navios. Hoje, e é apenas meio-dia, já vimos uns dez – entre eles – dois portugueses. Já tenho só 3 galinhas!
“Dia 2 de junho. Á meia-noite de anteontem passamos, ao largo, pelo cabo de S.Vicente.
“Dia 3 – terça-feira. Chegamos à meia-noite à entrada do estreito; mas não havendo o capitão encontrado à venda em Bordeaux um plano do estreito, e não tendo nunca passado por ele, foi-lhe preciso esperar pelo dia.
“Começamos a navegar quando removidas as neblinas, e dentro em pouco estávamos em frente de Tânger. Um barco de pesca espanhol veio a bordo vender-nos charutos, papel de cigarros, figos, laranjas, batatas etc., um pouco caro; mas vinham umas seis pessoas no barco e por muitos dias: ou não farão nada, ou muito pouco; porque os navios que vêm de Portugal ou de outras paragens próximas não lhe darão muito gasto.
“Comprei 24 ovos e 18 laranjas por um peso.” [...]
“Dia 7 – O capitão, o piloto, a tripulação dão-se a perros, e já trabalhou o telégrafo para Paris, participando ao consignatário que ficava o Grand Condé impedido por ter sucedido um falecimento a bordo. Estou muito contrariado com semelhante contratempo que me vai atrasar o tratamento. Escrevi em conseqüência disto a seguinte carta ao nosso ministro em Paris: “Cheguei a 14, e vejo-me desde já forçado a ir importunar a V. Ex.ª.
“Sofrendo do fígado e do coração embarquei no Rio de Janeiro a 7 de abril para vir ao Maranhão tratar da minha saúde; porém no mar a minha moléstia se agravou por tal forma, que chegando a Pernambuco tomei o primeiro navio que saía para França. Passei pois de bordo do Apa para o Grand Condé no dia 20 de abril e aqui chegamos com 55 dias de viagem.”[...]
Foto 11 (Porto de Havre - França - pintura de Claude Monet).
No dia 09 de setembro de 1864 já se achava Gonçalves Dias a bordo do Ville de Boulogne, que no dia seguinte deixava o porto do Havre e fazia-se de vela para São Luís do Maranhão.[...]
Que horas minguadas e tristes não passou o infeliz Gonçalves Dias entre essa marinhagem rude e indiferente, ele tão fraco, já sem voz, antes moribundo que vivo, entregue a seus pesares a sós consigo! Consolava-o ao menos e sustinha-o a Ideia de que ia morrer entre os seus mais íntimos amigos e na terra do seu nascimento.
E essa Ideia tanto o preocupava, que o derradeiro canto que desprendeu dias antes de partir de França, foi a poesia intitulada – Minha Terra.
Nela mostra recordar-se com saudades do céu da pátria, dos amigos e de seu lar! Como com a Canção do Exí1io, inspirada nas saudades da pátria, enceta seus Primeiros Cantos, assim com esta fecha a sua carreira poética! Acabou como havia começado – rememorando a pátria e com ela abraçado:

Quanto é grato em terra estranha
Sob um céu menos querido,

...................................
Recordar sabidos casos
Saudosos da terra amada!
E em tristes serões d’inverno,
Tendo a face contra o lar,
Lembrar o sol que já vimos,
E o nosso ameno luar!
.....................................
....................................
Depois de girar no mundo
Como barco em crespo mar,
Amiga pátria nos chama
Lá no horizonte a brilhar.

E vendo os vales e os montes,
E a pátria que Deus nos deu,
Possamos dizer contentes:
Tudo isto que vejo é meu!

Meu este sol que me aclara,
Minha esta brisa; estes céus,
Estas praias, bosques, fontes,
Eu os conheço, são meus!

Mais os amo, quando volte,
Pois do que por fora vi,
A mais querer minha terra
E a minha gente aprendi.

Foi o brigue segundo sua derrota sem nenhum acidente que a contrariasse. Oito dias antes do naufrágio, já escasseavam tanto as forças ao poeta que para sair do leito havia mister da ajuda de algum dos tripulantes, e repelia toda e qualquer alimentação, contentando-se unicamente de água com açúcar e de aspirar o fumo do charuto, que lhe era soprado na boca por um moço da câmara que se lhe tinha afeiçoado, e a quem Gonçalves Dias dava a entender por acenos que não chegaria à terra natal.
Quando às seis horas da tarde do dia 2 de novembro avistaram as costas do Maranhão, pediu que o levassem ao tombadilho, e aí enfiando por elas os ávidos olhos arrasados de lágrimas, sentiu tão profundo abalo que caiu em delíquio. Das três para as quatro horas da madrugada já do dia 3 de novembro bateu o brigue nos baixos chamados Coroa dos Ovos, ou dos Atins, próximos à vila de Guimarães, e em breve estava toda a embarcação inundada e a câmara completamente tomada de água, perecendo nela Gonçalves Dias! [...]

(LEAL, Antônio Henriques. Pantheon Maranhense. Ensaios Biográficos dos Maranhenses Ilustres já falecidos. Tomo II. Documentos Maranhenses. Rio de Janeiro: Editorial Alhambra, 1987. p. 7-83.)

Edição: Luiz Carlos Amaral (Secretário Municipal de Cultura e Comunicação Social).

Fonte: www.cantanhede.ma.gov.br