(...) Lorenz: (...) Gostaria de falar com você sobre o escritor Guimarães Rosa, o romancista, o mágico do idioma, baseando-nos em seus livros que fazem parte, penso eu, do tema “o homem do sertão”.
Guimarães Rosa – Sim, acho que se quiséssemos dizer sobre estes três ou quatro pontos tudo o que temos de dizer, daqui a um ano ainda estaríamos conversando. E nem você nem eu temos tanto tempo. Suponho que esta enumeração das coisas que lhe interessam a meu respeito não tem uma seqüência estrita...
Lorenz: Apenas uma seqüência improvisada, intercambiável.
Guimarães Rosa – Precisamente. E por isso gostaria que começássemos pelo que você mencionou como tema final. Chamou-me “o homem do sertão”. Nada tenho em contrário, pois sou um sertanejo e acho maravilhoso que deduzisse isso lendo meus livros, porque significa que você os entendeu. Se você me chama de “o homem do sertão” (e eu realmente me considero como tal), e queremos conversar sobre esse homem, já estão tocados no fundo os outros pontos. É que eu sou, antes de mais nada, este “homem do sertão”; e isto não é apenas uma afirmação biográfica, mas também – e nisto pelo menos acredito tão firmemente como você – que ele, esse “homem do sertão”, esta presente como ponto de partida mais do que qualquer coisa.
Lorenz: Fixemos este ponto de partida; e para encaminhar nossa conversa, queria propor-lhe um início convencional: biográfico, embora ele já não seja tão convencional, se minhas conclusões sobre o que disse há pouco estiverem certas. Nasceu no sertão, aquela estepe quase mística do interior de seu país, encarnada como um mito de consciência brasileira...
Guimarães Rosa – Sim, mas para sermos exatos, devo dizer-lhe que nasci em Cordisburgo, uma cidadezinha não muito interessante, mas para mim, sim, de muita importância. Além disso, em Minas Gerais. Sou mineiro. E isto, sim, é o importante, pois quando escrevo, sempre me sinto transportado para esse mundo. Cordisburgo. Não acha que soa como algo muito distante? Sabe também, que uma parte de minha família é, pelo sobrenome, de origem portuguesa, mas na realidade é um sobrenome sueco que na época das migrações era Guimaranes (1), nome que também designava a capital de um estado suevo na Lusitânia? Portanto, pela minha origem, estou voltado para o remoto, o estranho. Você certamente conhece a história dos suevos. Foi um povo que, como os celtas, emigrou para todos os lugares sem poder lançar raízes em nenhum. Este destino, que foi tão intensamente transmitido a Portugal, talvez tenha sido o culpado por meus antepassados se apegarem com tanto desespero àquele pedaço de terra que se chama o sertão. E eu também estou apegado a ele...
Lorenz: Você está se referindo a seu “caráter literário” que inclui no importante grupo de literatos brasileiros denominados regionalistas?
Guimarães Rosa – Sim e não. É necessário salientar pelo menos que entre nós o “regionalismo” tem um significado diferente do europeu, e por isso a referência que você fez a esse respeito em sua resenha de Grande Sertão é muito importante. Naturalmente não gostaria que na Alemanha me considerassem um Heimatschriftsteller (2). Seria horrível, uma vez que é para você o que corresponderia ao conceito de “regionalista”. Ah, a dualidade das palavras! Naturalmente, não se deve supor que quase toda a literatura brasileira esteja orientada para o “regionalismo”, ou seja, para o sertão ou para a Bahia. Portanto, estou plenamente de acordo, quando você me situa como representante da literatura regionalista; e aqui começa o que eu já havia dito antes: é impossível separar minha biografia de minha obra. Veja, sou regionalista porque o pequeno mundo do sertão...
Lorenz: Pequeno talvez para o Brasil, não para os europeus...
Guimarães Rosa – Para a Europa, é sem dúvida um mundo muito grande, para nós, apenas um mundo pequeno medido segundo nossos conceitos geográficos. E este pequeno mundo do sertão, este mundo original e cheio de contrastes, é para mim o símbolo, diria mesmo modelo de meu universo. Assim, o Cordisburgo germânico, fundado por alemães, é o coração do meu império suevo-latino. Creio que esta genealogia haverá de lhe agradar.
Lorenz: O que importa é que, além disso, ela é exata. Mas voltemos à sua biografia...
Guimarães Rosa – Creio que minha biografia não é muito rica em acontecimentos. Uma vida completamente normal.
Lorenz: Acho que não é bem assim. Em sua vida você passou por sua série de etapas muito interessantes, até mesmo instrutivas. Estudou medicina e foi médico, participou de uma guerra civil, chegou a ser oficial, depois diplomata. Deve haver ainda outros fatos, pois estou apenas citando de memória.
Guimarães Rosa – Chegamos novamente ao ponto que indica o momento em que o homem e sua biografia resultam em algo completamente novo. Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida e, a rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico conheci o valor místico do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte...
Lorenz: Deve-se considerar isto como uma escala de valores?
Guimarães Rosa – Exato, é uma escala de valores.
Lorenz: E estes conhecimentos não constituíram, no fundo, a espinha dorsal de seu romance Grande Sertão?
Guimarães Rosa – E são. Mas devemos acrescentar alguns outros sobre os quais ainda temos de falar. Mas estas três experiências formaram até agora meu mundo interior; e, para que isto não pareça demasiadamente simples, queria acrescentar que também configuram meu mundo a diplomacia, o trato com cavalos, vacas, religiões e idiomas.
Lorenz: Parece uma sucessão e uma combinação um tanto quanto curiosas de motivos.
Guimarães Rosa – Bem, tudo isto é curioso, mas o que não é curioso na vida? Não devemos examinar a vida do mesmo modo que um colecionador de insetos contempla os seus escaravelhos.
(...) Lorenz: Atrevo-me a apostar que a maioria de seus leitores alemães, antes de ler seu livro, nem sequer sabia que o sertão existe. Provavelmente ainda o considera uma invenção sua.
Guimarães Rosa – Também acho. Recentemente, durante minha viagem à Alemanha, convenci-me disso. Um crítico que me foi apresentado como homem famoso – prefiro não dizer seu nome – felicitou-me por eu haver “inventado uma nova paisagem literária”, tão “magnífica”, assim entre aspas. Coisas semelhantes me aconteceram na Itália, na França e até na Espanha. Mas é preciso aceitar essas coisas, não se pode evitá-las. Quando escrevo, não posso estar constantemente acrescentando notas de rodapé para assinalar que se trata de realidade.
(...) Lorenz: E o seu Riobaldo? Acho que você ainda não acabou de caracterizá-lo.
Guimarães Rosa – Eu sei. Gostaria de acrescentar que Riobaldo é algo assim como Raskolnikov, mas um Raskolnikov sem culpa, e que, entretanto, deve expiá-la. Mas creio que Riobaldo também não é isso. Melhor, é apenas o Brasil.
(...) Lorenz: Novamente um paradoxo magnífico: “eu tento o impossível”. Entretanto, deveríamos ser ainda mais concretos. Temos essa questão do compromisso, que talvez pudéssemos utilizar nesse sentido. Como você definiria, por exemplo, sua concepção do dever de um autor, diferenciando-a de Astúrias ou, naturalmente, de Jorge Amado?
Guimarães Rosa – Gosto de Astúrias porque se parece tão pouco comigo. Este homem é um vulcão genial, uma exceção, segue suas próprias leis. Nós nos entendemos e nos admiramos, porque somos muito diferentes um do outro. Mas ele vive de um modo que gera perigo: ele pensa ideologicamente.
Lorenz: E Jorge Amado? Você não acha que este grandioso fabulista e amigo dos homens também pensa ideologicamente?
Guimarães Rosa – Sem dúvida, ele também é um ideólogo; mas sua ideologia me é mais simpática que Astúrias. Astúrias tem algo do distanciamento incorruptível de um sumo-sacerdote; sempre enuncia novos dez mandamentos. Isto é admirável, mas não encanta. As palavras de Astúrias são palavras de um pai, de um patriarca que emite sentenças no sentido do Antigo testamento. Amado é um sonhador, e sem dúvida alguma um ideólogo, mas adota a ideologia do conto de fadas com suas normas de justiça e expiação. Amado é um menino que ainda crê no Bem, na vitória do Bem; defende a ideologia menos ideológica e mais amável que já conheci. Astúrias é a poderosa voz do juízo final. Amado vai dando pinceladas a mais não poder, e certamente quer mandar ao diabo muitas coisas, mas o faz de forma tão encantadora que nos convence com maior razão. Astúrias se expressa com palavras de ferro.
(...) Lorenz: Ainda tenho uma última pergunta, a cuja resposta dou muita importância. Não ria, vou lhe perguntar em que está trabalhando agora. Sei que isso não levaria a nada. Mas gostaria que me dissesse o que pensa do futuro da América Latina.
Guimarães Rosa – Realmente, pensei que você estava querendo me comprometer agora e depois me perguntar todo ano quando ficaria pronto o livro anunciado. Prefiro que não tenha sido assim. Sou um homem que viu muitas coisas no mundo, que entende muito de literatura mundial. Não quero pecar por presunção, mas comparando quantitativamente o que se escreve, por exemplo, na Europa, com o que se escreve entre nós, sinto-me um tanto orgulhoso. É claro que também entre nós se imprime muita coisa medíocre que nada tem a ver com literatura. Mas isso existe sempre e em toda parte. Entre nós, não só no Brasil e não só entre os escritores velhos e os de minha geração, há muitos que justificam as maiores esperanças e permitem que encaremos tranqüilamente o futuro. A América Latina se tornou no terreno literário e artístico, digamos em alemão, Weltfähig (“apta para o mundo”). O mundo terá de contar. Olhe, Lorenz, não seria tão errado reduzir todas as ciências a uma lei básica, como fizeram os escolásticos e cientistas medievais. Não, eu não quis evocar a teologia. Mas quero pintar um panorama que, no fundo, delineia todos os problemas intelectuais da atualidade. Olhe, o futuro da Europa e de toda humanidade é como uma equação com várias incógnitas. A Europa é pequena, mas seus habitantes são ativos e, além disso, têm a seu favor uma grande tradição. E, entretanto, os europeus não têm qualquer influência sobre essas incógnitas que determinam o futuro de seu continente. O “x” e o “y” desta equação decidirão o amanhã, tanto assim que quase já se pode dizer hoje. A América Latina talvez não seja a incógnita principal, o “x”, mas provavelmente será o “y”, uma incógnita secundária muito importante. Pela matemática, sabe-se que uma equação não se resolve se uma segunda incógnita não for eliminada. Suponhamos agora que a América Latina seja a tal incógnita “y”. Com isso a Europa está em um ponto culminante para o seu futuro. E não estou falando apenas das necessidades e do potencial econômico de meu continente. Você sabe que nós, os latino-americanos, nos sentimos muito ligados à Europa. Para mim, Cordisburgo foi sempre uma Europa em miniatura. Amamos a Europa como, por exemplo, se ama uma avó. Por isso espero que a Europa reconheça a equação e leve em conta o “y”. Isso não lhe traria nenhum prejuízo. Por nós e conosco talvez a Europa tenha um futuro não só no campo econômico, não só no campo político, mas também como fator de poder espiritual. No final das contas, somos parentes espirituais: avó e netos. A Europa é um pedaço de nós; somos sua neta adulta e pensamos com preocupação no destino, na enfermidade de nossa avó. Se a Europa morresse, com ela morreria um pedaço de nós. Seria triste, se em vez de vivermos juntos, tivéssemos de dizer uma oração fúnebre pela Europa. Estou firmemente convencido, e por isso estou aqui falando com você, de que em 2000 a literatura mundial estará orientada para a América Latina; o papel que um dia desempenharam Berlim, Paris, Madri ou Roma, também Petersburgo ou Viena, será desempenhado por Rio, Bahia, Buenos Aires e México. O século do colonialismo terminou definitivamente. A América Latina inicia agora seu futuro. Acredito que será um futuro muito interessante, e espero que seja um futuro humano.
Fonte: www.vermelho.org.br
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