O mundo do sertão para o mundo

Por Eliziane Lara

O ano de 1956 marcou a literatura brasileira. Em menos de seis meses eram publicadas Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile, as obras-primas de um dos nossos maiores escritores: João Guimarães Rosa. Já conhecido no Brasil devido à publicação de Sagarana, dez anos antes, Rosa se vê consagrado no exterior contando histórias protagonizadas por gente bem brasileira: os sertanejos.
Em Grande Sertão: Veredas, o protagonista Riobaldo conta tudo o que viveu e sentiu, especialmente durante uma peregrinação que faz pelos sertões de Minas, Bahia e Goiás. O ponto central da história é o amor proibido que o jagunço sente por Diadorim, personagem pela qual se apaixona ao longo da jornada. Corpo de Baile reúne um extenso conjunto de novelas, que, atualmente é publicado em três partes: Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do sertão.
Como um autor que parte de elementos típicos do regionalismo brasileiro consegue atingir e ser consagrado por leitores do mundo inteiro? Uma das chaves para responder a essa pergunta está no fato de que os dramas vividos pelas personagens rosianas são comuns a qualquer ser humano. A trajetória de vida do autor e a sua paixão por outros idiomas também ajudam a entender melhor a composição de sua obra.
Mineiro da cidade de Cordisburgo, na região central de Minas Gerais, Rosa era introvertido e estudioso. Aos sete anos de idade conhecia três idiomas: português, francês e latim. Quieto, ouvia as histórias contadas pelos sertanejos que passavam pela venda do pai. Os “causos” lhe despertaram para o sertão e o saber sobre outras línguas foi fundamental na criação de sua escrita, marcada pela poesia e musicalidade.
Além das histórias, o autor também inventava palavras. Numa entrevista concedida ao crítico Günter Lorenz, em 1965, Rosa conta: “a língua e eu somos um casal de amantes que juntos procriam apaixonadamente”. A professora da Faculdade de Letras da UFMG, Marli Fantini, explica que além dos neologismos, o estilo rosiano também é marcado pela utilização da estrutura de outros idiomas na construção do texto. A forma como o autor organiza as frases, por exemplo, tem semelhanças com o inglês, o grego e o alemão.
Rosa também faz com que seus sertanejos se identifiquem com personagens de obras da literatura universal. Marli Fantini conta que Maria Mutema, personagem de Grande Sertão, assassina o marido jogando chumbo quente em seu ouvido, como ocorre no Hamlet do escritor inglês William Shakespeare.
O diálogo com personagens tão distantes não impede que Rosa dê vez e voz ao povo do sertão. A prova está em Uma história de amor, novela que compõe Corpo de Baile. (Ver Box) A coleção de facas, a capa de cavu e o vistoso chapéu não deixam dúvidas: na novela o autor fala sobre Manuel Nardi, o Manuelzão, um dos chefes da comitiva acompanhada por Rosa em 1952.
Vivendo no exterior como diplomata, o escritor volta ao Brasil com o desejo de conhecer de perto o sertão. Ele acompanha uma condução de boiada, por dez dias, partindo de Três Marias rumo à Araçaí. O que viu e ouviu, Rosa anotou em suas famosas cadernetas. “Essa viagem contribuiu para a sistematização de Grande Sertão: Veredas”, explica Marli Fantini.
Em uma carta enviada ao embaixador brasileiro e amigo, Antônio Azeredo da Silveira, Guimarães Rosa fala sobre a redação do livro: "Eu passei dois anos num túnel, um subterrâneo, só escrevendo, só escrevendo eternamente. Foi uma experiência transpsíquica, eu me sentia um espírito sem corpo, desencarnado - só lucidez e angústia". Não se pode afirmar quando a obra começou a ser gerada, mas, há meio século, findava seu doloroso processo de criação. Rosa apresentava seu sertão ao mundo.
Como ler Guimarães Rosa? Muitos brasileiros já ouviram falar de Guimarães Rosa, que apesar de ter falecido em 1967, aos 59 anos, nos deixou uma rica produção literária. Entretanto, não são tantos os que já leram algum exemplar da obra rosiana. Umas das principais alegações é de que o texto de Rosa é “difícil”. Assim, a linguagem, um dos pontos mais ricos da obra deste autor, acaba sendo vista como uma barreira pelo público. “Guimarães Rosa não é para o leitor apressado, mas para aquele que está disposto a refletir”, afirma o professor da Faculdade de Medicina da UFMG e estudioso da obra de Rosa, Luiz Otávio Savassi. O médico concorda com a comparação que Afonso Arinos faz entre Grande Sertão: Veredas e os casarões antigos. No primeiro momento, as pessoas entram e não vêem nada, é tudo escuro, mas, com o tempo, não é a luz que aumenta, são os olhos que se acostumam e passam a enxergar as belezas que estão ali.
João Rosa e Manuelzão - “O João Rosa era muito enjoado”. Marli Fantini conta que essa foi uma das formas como Manuel Nardi, falecido em 1998, se referiu ao escritor, que de tanto perguntar deixava o vaqueiro irritado. A professora acrescenta que características como a criatividade e as “tiradas” inteligentes de Manuelzão aparecem em vários personagens rosianos, mas a grande homenagem está em Uma história de amor, onde o já idoso e errante vaqueiro reflete sobre sua vida: “... é custoso saber se a gente deve se aprovar ou confessar um arrependimento: nos caroços daquele angu, tudo tão misturado. O ruim e o bom”.
Fonte: www.manuelzao.ufmg.br