João Guimarães Rosa: sua HORA e sua VEZ

"Todos os poemas são um só poema/todos os porres são um mesmo porre/não é de uma vez que se morre/ todas as horas são extremas." Mário Quintana

"For the creative impulse in the artist, springing from the tendency to immortalize himself, is so powerful that he is always seeking to protect himself against the transient experience, which eats up his ego." Otto Rank (Art and Artist)

"Tenho horror ao efêmero." J.G. Rosa (depoimento a Emir Rodriguez Monegal)

João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo (MG) a 27 de junho de 1908 e teve como pia batismal uma peça singular talhada em milenar pedra calcária - uma estalagmite arrancada à Gruta do Maquiné. Era o primeiro dos seis filhos de D. Francisca (Chiquitinha) Guimarães Rosa e de Florduardo Pinto Rosa, mais conhecido por "seu Fulô" - comerciante, juiz-de-paz, caçador de onças e contador de estórias. Segundo Valentin Paz-Andrade, membro da Real Academia Galega e autor do livro A galeguidade na obra de Guimarães Rosa : a cepa genealógica torna-se translúcida nesses patronímicos: nuns e noutros cintila a ascendência minhoto-duriense do futuro escritor, especialmente em relação ao sobrenome dos Guimarães que são citados nos fólios do Nobiliário de Dom Pedro, conde de Barcelos, filho del-Rei Dom Diniz, de Portugal, e também nas notas do Marquês de Montebello, com a variante Guimaraens, ainda hoje existente na Galiza.

Ressalte-se ainda que o nome do pai, de origem germânica - frod (prudente) e hard (forte) -, e o nome da cidade natal, o "burgo do coração" - do latim cordis, genitivo de cor, coração, mais o sufixo anglo-saxônico burgo -, por sua sonoridade, sua força sugestiva e sua origem podem desde cedo ter despertado a curiosidade do menino do interior, introvertido e calado, mas observador de tudo, estimulando-o a se preocupar com a formação das palavras e com seu significado. Com efeito, esses nomes de quente semântica poderiam ter sido invenção do próprio Guimarães Rosa...(1)

A venda do "seu Fulô" era freqüentada pela gente sertaneja, especialmente por vaqueiros que conduziam boiadas a Cordisburgo para embarque nos trens da Central do Brasil com destino a Belo Horizonte, Rio e São Paulo. A contragosto do pai, Joãozito ficava a escutar a um canto do estabelecimento as conversas e as estórias contadas pelos vaqueiros enquanto comiam, bebiam e descansavam. Mais tarde, porém, "seu Fulô" - homem de minguados estudos mas em compensação dotado de inteligência aguda e memória louvável - em muito contribuiria para a elaboração dos livros do primogênito, fornecendo-lhe rico material representado por estórias, casos, relatos de caçadas, cantigas, quadrinhas, informação sobre crimes e demandas e muitas outras coisas vistas e ouvidas na roça.

A propósito de seus primeiros anos, diria mais tarde o escritor com certa dose de mágoa: Não gosto de falar da infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada. Fui rancoroso e revolucionário permanente, então. Já era míope, e nem mesmo eu, ninguém sabia disso. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas tempo bom de verdade só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e fechar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas. Segundo seu tio Vicente Guimarães:(2)

Sua posição predileta para leitura era sentado no chão, de pernas cruzadas, a modos de BUDA, com o livro aberto sobre as pernas, curvado até bem próximo deste e com dois pauzinhos nas mãos, batendo sobre as páginas, ora um, depois o outro, compassadamente, em ritmo variado, ligeiro ou mais lento, conforme na leitura se movesse o pensamento.

Essa preocupação com o ritmo do discurso, desde cedo manifestada, ajudaria a compor, mais tarde, juntamente com outros atributos, a magistral prosa-poética rosiana. À guisa de exemplo, veja-se o seguinte trecho, extraído do conto O burrinho pedrês, em que se observa uma verdadeira versificação da prosa: Galhudos, gaiolos, estrelos, espácios, combucos, cubetos, lobunos, lompardos, caldeiros, cambraias, chamurros, churriados, corombos, cornetos, bocalvos, borralhos, chumbados, chitados, vareiros, silveiros... E os tocos da testa do mocho macheado, e as armas antigas do boi cornalão...

A miopia - "vista curta" -, que o obrigava a cerrar as pálpebras para melhor ver, somente foi descoberta por acaso pelo Dr. José Lourenço (Dr. Juca), médico do Curvelo, numa visita de amizade que fez à família de Joãozito. A alegria e o deslumbramento do menino usando os óculos do doutor, colega em miopia, foram mais tarde registrados pelo escritor em memorável cena do conto Campo Geral (do livro Manuelzão e Miguilim), quase toda verdadeira, exceção feita para alguns nomes. No real, o Dr. José Lourenço sugeriu aos pais que levassem a criança ao oculista, explicando que ela enxergava tudo fora de foco e recomendando que "por ora era preciso ler o menos possível para não agravar a moléstia". Desde então aumentaram as dificuldades de Joãozito, que precisava se esconder mais e mais para não ser surpreendido, principalmente pelo pai. Só em Belo Horizonte, aos 9 anos, passou a usar óculos.

Aos 7 anos incompletos, Joãozito começou a estudar francês, por conta própria. Em março de 1917, chegava a Cordisburgo, como coadjutor, Frei Canísio Zoetmulder, frade franciscano holandês, com o qual o menino fez amizade imediata. Em companhia do frade, iniciou-se no holandês e deu prosseguimento aos estudos de francês, que iniciara sozinho. Aos 9 anos incompletos, foi morar com os avós em Belo Horizonte, onde terminou o curso primário no Grupo Escolar Afonso Pena; até então fora aluno da Escola Mestre Candinho, em Cordisburgo. Iniciou o curso secundário no Colégio Santo Antônio, em São João del Rei, onde permaneceu por pouco tempo, em regime de internato, visto não ter conseguido adaptar-se - não suportava a comida,(3) retornando a Belo Horizonte matriculou-se no Colégio Arnaldo, de padres alemães, tendo, desde logo, para não perder a oportunidade, se dedicado ao estudo da língua de Goethe, a qual aprendeu em pouco tempo. Sobre seus conhecimentos lingüísticos, assim se expressaria, mais tarde, numa entrevista concedida a uma prima, então estudante no Curvelo:

Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.

Em 1925, matricula-se na Faculdade de Medicina da U.M.G., com apenas 16 anos. Segundo depoimento do Dr. Ismael de Faria, colega de turma do escritor, recentemente falecido, quando cursavam o 2º ano, em 1926, ocorreu a morte de um estudante de Medicina, de nome Oseas, vitimado pela febre amarela; o corpo do estudante foi velado no anfiteatro da Faculdade.(4) Estando Ismael de Faria junto ao ataúde do desventurado Oseas, em companhia de João Guimarães Rosa, teve o ensejo de ouvir deste a comovida exclamação: "As pessoas não morrem, ficam encantadas", que seria repetida 41 anos depois por ocasião de sua posse na Academia Brasileira de Letras.

Em 1929, ainda como estudante, João Guimarães Rosa estreou nas letras. Escreveu quatro contos: Caçador de camurças, Chronos Kai Anagke (título grego, significando Tempo e Destino), O mistério de Highmore Hall e Makiné para um concurso promovido pela revista O Cruzeiro. Visava mais os prêmios (cem mil réis o conto) do que propriamente a experiência literária; todos os contos foram premiados e publicados com ilustrações em 1929-1930. Mais tarde, Guimarães Rosa confessaria que nessa época escrevia friamente, sem paixão, preso a moldes alheios - era como se garimpasse em errada lavra. Com efeito, nessa primeira experiência como escritor chamam a atenção o esquema convencional do conto de suspense, a escritura inteiramente despersonalizada e a falta de originalidade dos temas, verdadeiros protótipos inspirados nos modelos ingleses da época. Mesmo assim, já se esboçava o espírito lúdico do autor na escolha dos nomes próprios como atestam, por exemplo, Tragywyddol e Duw-Rhoddoddag, respectivamente, o nome de um personagem e de um castelo no conto O mistério de Highmore Hall. Seja como for, essa primeira experiência literária de Guimarães Rosa não poderia dar uma Ideia, ainda que pálida, de sua produção futura, confirmando suas próprias palavras em um dos prefácios de Tutaméia:

"Tude se finge, primeiro; germina autêntico é depois."

Em 27 de junho de 1930, ao completar 22 anos, casa-se com Lígia Cabral Penna, então com apenas 16 anos, que lhe dá duas filhas: Vilma e Agnes; essa primeira união não dura muito, desfazendo-se uns poucos anos depois. Ainda em 1930, forma-se em Medicina pela U.M.G., tendo sido o orador da turma, escolhido por aclamação pelos 35 colegas. O paraninfo foi o Prof. Samuel Libânio e os professores homenageados foram David Rabelo, Octaviano de Almeida, Octávio Magalhães, Otto Cirne, Rivadávia de Gusmão e Zoroastro Passos. O fac-símile do quadro de formatura encontra-se atualmente na Sala Guimarães Rosa do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, da Faculdade de Medicina da U.F.M.G. No referido quadro de formatura está estampada a clássica legenda, em latim, com os dizeres "FAC QUOD IN TE EST"; figura, também, a reprodução de uma tela do pintor holandês Rembrandt Van Rijn em que é mostrada uma aula de anatomia (A lição de anatomia do Dr. Tulp, datada de 1632).

O discurso do orador da turma, publicado no jornal Minas Geraes, de 22 e 23 de dezembro de 1930, já denunciava, entre outras coisas, o grande interesse lingüístico e a cultura literária clássica de Guimarães Rosa, que começa sua oração argumentando com uma "licção da natureza":

Quando o excesso de seiva levanta a planta jovem a escalar o espaço, só á custa de troncos alheios logra ella chegar á altura - faltando-lhe as raizes, que sómente os annos soem improvisar, restar-lhe-á apenas o epiphytismo das orchideas. Tal a licção da natureza que faz com que a nossa turma não vos traga pela minha bocca a discussão de um thema scientifico, nem ponha nesta despedida these alguma de medicina applicada, que oscillaria, aliás, inevitavelmente, entre a parolagem incolor dos semidoutos e o plagio ingenuo dos compiladores.

Em seguida, evoca a origem medieval das solenidades universitárias: Venho tão unicamente pedir a palavra de senha ao nosso Paranympho, nesta hora plena de emoção para nós outros, quando o incenso das bellas cousas velhas, desabrochando em nossa alma a flor do tradicionalismo, nos evoca Iena, a douta, e Salamanca, a inesquecível, emquanto o anel symbolico faz-nos sonhar com uma leva de Cavalleiros da Ordem da Esmeralda, que recebessem a investidura ante magica frontaria gothica, fenestrada de ogivas e ventanas e toda colorida de vitraes.

Dando continuidade ao discurso refere-se ao interesse do Prof. Samuel Libânio pelos problemas da gente brasileira: E a sua sabia eloquencia discursará então, utile dulci, sobre assumptos da maior importancia e mais patente opportunidade, tanto mais que elle, o verdadeiro proágoro de hoje, que levou o seu microscopio de hygienista a quasi todos os estados do Brasil, conhece, melhor que ninguem, as necessidades da nossa gente infectada e as condições do nosso meio infectante.

Mais adiante, continua: Ninguem entre nós, para bem de todos, representa os exemplares do medico commercializado, taylorizado, standardizado, aperfeiçoadissima machina mercantil de diagnosticos, ‘un industriel, un exploiteur de la vie et de la mort’, no dizer de Alfred Fouillé, para quem nada significam as dôres alheias, tal qual Chill, o abutre kiplinguiano, satisfeito no jangal faminto, por certo de que depressa todos lhe virão a servir de pasto.

Esses justificam a velha frase de Montaigne, ‘Science sans conscience est la ruine de l’âme’, hoje aposentada no archivo dos logares comuns, mas que de verdadeira se faria sublime, si se lhe intercallasse: ‘...et sans amour...’

Porque, dêm-lhe os nomes mais diversos, philantropia tolstoica, altruismo contista, humanitarismo de Kolcsey Ferencz, solidariedade classica ou beneficencia moderna, bondade natural ou caridade theologal, (quanto a nós preferimos chamar-lhe mais simplesmente espirito christão), esse é o sentimento que deverá presidir os nossos actos e orientar as agitações do que seremos amanhã, na vitalidade maxima da expressão, homens no meio dos homens.

Demo-nos por satisfeitos com o facultar-nos a profissão escolhida as melhores opportunidades de praticar a lei fundamental do Christianismo e, já que o mesmo Christo, sabedor das profundezas do egoismo humano, estigmatizou-o no ‘... como a ti mesmo’ do mandamento, ampliemos fóra de medida esse eu comparativo, fazendo com que elle integre em si toda a fraternidade soffredora do universo.

Tambem, a bondade diligente, a ‘charité efficace’, de Mamoz, será sempre a melhor collaboradora dos clinicos avisados.

De distincto patricio contam que, achando-se moribundo, gostava que os companheiros o abanassem. E a um deles, que se offerecera trazer-lhe modernissimo ventilador electrico, capaz de renovar-lhe continuamente o ar do aposento, respondeu, admiravel no esoterismo profissional e sublime na intuição de curador: ‘ - Obrigado; o que me allivia e conforta, não é o melhor arejamento do quarto, mas sim a solicita solidariedade dos meus amigos...’

Não será a capacidade de esquecer-se um pouquinho de si mesmo em beneficio de outrem (digo um pouquinho porque exigir mais seria platonizar esterilmente) que aureola certas personalidades, creando o iatra verdadeiro, o medico de confiança, o medico da familia?

Mais adiante refere-se às pesadas críticas de que sempre foram alvo os médicos, destacando entre os que tentaram denegrir a classe a figura do genial dramaturgo Molière e fazendo menção a sua peça L’Amour Médecin,(5) mas contrapõe a essas críticas uma série de gestos meritórios e de real grandeza praticados por médicos abnegados, a ponto de elas lhe parecerem cada vez mais injustificadas:

Ao lado dos sacerdotes e dos estrangeiros, os medicos sempre alcançaram o record indesejavel de principaes personagens do anecdotario mundial.

Satiras, comedias e bufonices não os pouparam. Era fatal. As anecdotas representam a maneira mais commoda das massas apedrejarem, no escuro do anonymato, os tabus que as constrangem com sua real ou pretensa superioridade.

E Molière, hostilizando durante toda a vida medicos e medicina com tremenda guerra de epigramas, não passou de um speaker genial e corajoso da vox populi do seu tempo. Contudo, a nossa classe já não ocupa lugar tão destacado no florilegio da truaneria. A causa? Parece-me simples.

É que as chufas dos Nicoeles não fazem ninguem mais se rir daquelles que se infectaram mortalmente aspirando as mucosidades de creancinhas diphtericas; é que a mordacidade dos Brillons não attinge agora a pleiade dos metralhados nos hospitaes de sangue, quando soccorriam amigos e inimigos; é porque, aos quatro ridiculos medicastros do ‘Amour Médecin’, com longas vestes doutoraes, attitudes hieraticas e palavreado abracadabrante, a nossa imaginação contrapõe involuntariamente os vultos dos sabios abnegados, que experimentaram nos proprios corpos, ‘in anima nobilissima’, os effeitos dos virus que não perdoam; é porque a cerimonia de Argan recebendo o titulo ao som do ‘dignus est intrare’ perde toda a sua hilaridade quando confrontada com a scena real de Pinel, do ‘citoyen Pinel’, arrostando a desconfiança e a ferocidade do Comité de Salvação Pública, para dar aos loucos de Bicêtre o direito de serem tratados como seres humanos!

Guimarães Rosa prossegue em sua linguagem peculiar e, já na parte final do discurso, refere-se à "Oração" do "illuminado Moysés Maimonides": Senhor, enche a minha alma de amor pela arte e por todas as creaturas. Sustenta a força do meu coração, para que esteja sempre prompto a servir ao pobre e ao rico, ao amigo e ao inimigo, ao bondoso e ao malvado. E faz com que eu não veja sinão o humano, naquelle que soffre!...

E terminando: Quero apenas repetir convosco, nesta ultima revista de aquem-Rubicão, um velho proverbio slovaco, em que clarinam sustenidos marciaes de encorajamento, mostrando a confiança do auxilio divino e nas forças da natureza:

‘Kdyz je nouze nejvissi, pomoc byva nejblissi!’ (Quando mais terrível é o desespero, é que o socorro já vem perto!).

E, quanto a vós, caro Padrinho, ao apresentar-vos os agradecimentos e as despedidas dos meus collegas, eu lamento não poderem falar-vos todos elles a um tempo, para que sentisseis, na prata das suas vozes, o oiro de seus corações.

Depois de formado, Guimarães Rosa vai exercer a profissão em Itaguara, então município de Itaúna (MG), onde permanece cerca de dois anos; ali, passa a conviver harmoniosamente até mesmo com raizeiros e receitadores, reconhecendo sua importância no atendimento aos pobres e marginalizados, a ponto de se tornar grande amigo de um deles, de nome Manoel Rodrigues de Carvalho, mais conhecido por "seu Nequinha", que morava num grotão enfurnado entre morros, num lugar conhecido por Sarandi. Seu Nequinha era adepto do espiritismo e parece ter inspirado a extraordinária figura do Compadre meu Quelemém, espécie de oráculo sertanejo, personagem do Grande Sertão: Veredas.(6) Ademais, consta que o Dr. Rosa cobrava as visitas que fazia, como médico, pelas distâncias que, a cavalo, tinha de percorrer. No conto Duelo, de Sagarana, o diálogo entre os personagens Cassiano Gomes e Timpim Vinte-e-Um testemunha esse critério - comum entre os médicos que exerciam seu ofício na zona rural - de condicionar o montante da remuneração a ser recebida à distância percorrida para visitar o doente: Cassiano perguntou: - Me diz uma coisa, Vinte-e-Um: nas Abóboras tem doutor?

- Tem sim, mas em-antes não tivesse, meu Deus!... Como é que eu, que não sou dono de nada nesta vida, hei de poder pagar seu doutor-médico a trinta mil réis a légua pr’a ele querer vir até cá?!... Já mandei buscar receita-de-informação, e, o resto do cobrinho que o senhor me deu, eu gastei tudo nas meizinhas de botica...

Semelhante critério aplicava-o, também, o Dr. Mimoso - homem "inteligente, bom e justo" - a seu ajudante-de-ordens Jimirulino, protagonista do conto - Uai, eu?, de Tutaméia, que assim se expressa a respeito:

Assim a gente vinha, e ia, a essas fazendas, por doentes e adoecidos. Me pagava mais, gratificado, por léguas daquelas, às-usadas. Ele, desarmado, a não ser as antes Ideias. Eu - a prumo. Mais meu revólver e o fino punhal. De cotovelo e antebraço, um homem pode dispor. Sou da laia leal. Então, homem que vale por dois não precisa de estar prevenido?"

Segundo depoimento de sua filha Vilma, a extrema sensibilidade do pai, aliada ao sentimento de impotência diante dos males e das dores do mundo (tanto mais quanto os recursos de que dispunha um médico do interior há meio século eram por demais escassos), acabariam por afastá-lo da Medicina. Aliás, foi justamente em Itaguara, localidade desprovida até mesmo de luz elétrica, que o futuro escritor se viu obrigado a assistir o parto da própria esposa por ocasião do nascimento de Vilma. Isso porque o farmacêutico de Itaguara, Ary de Lima Coutinho, e seu irmão, médico em Itaúna, Antônio Augusto de Lima Coutinho, chamados com urgência pelo aflito Dr. Rosa, só chegaram quando tudo já estava resolvido. É ainda Vilma quem lembra que sua mãe chegou a se esquecer das contrações para apenas se preocupar com o marido - um médico que chorava convulsivamente!

Outra ocorrência curiosa, contada por antigos moradores de Itaguara, diz respeito à atitude do Dr. Rosa quando da chegada de um grupo de ciganos àquela cidade. Valendo-se da ajuda de um amigo, que fazia as vezes de intermediário, o jovem médico procurou aproximar-se daquela gente estranha; uma vez conseguida a almejada aproximação, passava horas envolvido em conversa com os "calões" (7) na "língua disgramada que eles falam", como diria, mais tarde, Manuel Fulô, protagonista do conto Corpo fechado, de Sagarana, que resolveu "viajar no meio da ciganada, por amor de aprender as mamparras lá deles". Também nos contos Faraó e a água do rio, O outro ou o outro e Zingaresca, todos do livro Tutaméia, Guimarães Rosa refere-se com especial carinho a essa gente errante, com seu peculiar modus vivendi, seu temperamento artístico, sua magia, suas artimanhas e negociatas. Do conto Zingaresca, recolhe-se um fragmento exemplar, falando dos ciganos:

Sobrando por enquanto sossego no sítio do dono novo Zepaz, rumo a rumo com o Re-curral e a Água-boa, semelhantes diversas sortes de pessoas, de contrários lados, iam acudir àquela parte.

A boiada, do norte. Antes, porém, os ciganos, de roupagem e de linguagem, tribo de gente e a tropa cavalar. Zepaz se irou, ranhou pigarro. Mas esses citavam licença, o ciganão Vai-e-Volta, primaz, sacou um escrito, do antigo sitiante. Tinham alugado ali uma árvore! - o que confirmou o preto Mozart, servo morador: dês que sepultado debaixo do oiti um deles, só para sinalarem onde, ou com figuração pagã, por crerem em espíritos e nas fadas; e pago o preto Mozart para, durado de semana, verter goles de vinho na cova.

De volta de Itaguara, Guimarães Rosa atua como médico voluntário da Força Pública, por ocasião da Revolução Constitucionalista de 1932, indo servir no setor do Túnel. Posteriormente entra para o quadro da Força Pública, por concurso. Em 1933 vai para Barbacena na qualidade de Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria. Segundo depoimento de Mário Palmério,8 em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, o quartel pouco exigia de Guimarães Rosa - "quase que somente a revista médica rotineira, sem mais as dificultosas viagens a cavalo que eram o pão nosso da clínica em Itaguara, e solenidade ou outra, em dia cívico, quando o escolhiam para orador da corporação". Assim, sobrava-lhe tempo para dedicar-se com maior afinco ao estudo de idiomas estrangeiros; ademais, no convívio com velhos milicianos e nas demoradas pesquisas que fazia nos arquivos do quartel, o escritor teria obtido valiosas informações sobre o jaguncismo barranqueiro que até por volta de 1930 existiu na região do Rio São Francisco (Antônio Dó, o famigerado bandido do sertão mineiro - referido de passagem no Grande Sertão: Veredas -, morreu na segunda metade da década de 20).

Quando Guimarães Rosa servia em Barbacena, um amigo de convívio diário, impressionado com sua cultura e erudição, e, particularmente, com seu notável conhecimento de línguas estrangeiras, lembrou-lhe a possibilidade de prestar concurso para o Itamarati, conseguindo entusiasmá-lo. O então Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria, após alguns preparativos, seguiu para o Rio de Janeiro onde prestou concurso para o Ministério do Exterior, obtendo o segundo lugar. Por essa ocasião, aliás, já era por demais evidente sua falta de "vocação" para o exercício da Medicina, conforme ele próprio confidenciou a seu colega Dr. Pedro Moreira Barbosa, em carta datada de 20 de março de 1934:

Não nasci para isso, penso. Não é esta, digo como dizia Don Juan, sempre ‘après avoir couché avec...’ Primeiramente, repugna-me qualquer trabalho material - só posso agir satisfeito no terreno das teorias, dos textos, do raciocínio puro, dos subjetivismos. Sou um jogador de xadrez - nunca pude, por exemplo, com o bilhar ou com o futebol.

Em 1936, Guimarães Rosa concorreu com um livro de versos intitulado Magma ao prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras. O poeta Guilherme de Almeida, relator do parecer da comissão julgadora, dirigiu palavras altamente elogiosas ao livro do escritor mineiro, concedendo-lhe o primeiro lugar e negando-se a outorgar a qualquer outro trabalho o segundo lugar, tal o desnível de qualidade que havia entre os demais concorrentes e o primeiro colocado. Não seria injusto considerar Guilherme de Almeida o verdadeiro descobridor de Guimarães Rosa, aquele que teve a lúcida antevisão do "gênio engarrafado". Em seu parecer, o poeta assim se referiu a Magma: "Nativa, espontânea, legítima, saída da terra com uma naturalidade de vegetal em ascensão, Magma é poesia centrífuga, universalizadora, capaz de dar ao resto do mundo uma síntese perfeita do que temos e somos". Esses rasgados elogios ao que parece não chegaram a convencer o autor que preferiu não permitir a divulgação de seu livro de poemas, somente publicado em 1997, 30 anos após sua morte. Diga-se de passagem que em entrevista concedida a Günter Lorenz,(9) Guimarães Rosa lança alguma luz sobre o provável motivo de seu comportamento em relação ao livro em questão, ao lhe dizer em tom confidencial:

Meu começo, foram poesias (...) escrevi um volume nada pequeno de poesias que foram até elogiadas, e que me proporcionaram louvor. Mas aí, eu, quase diria felizmente, comecei a ser absorvido pela minha profissão: eu viajei no mundo, conheci muita coisa, aprendi línguas, acolhi tudo isso em mim, mas não pude mais escrever. Assim se passaram 10 anos até eu poder dedicar-me de novo à literatura. E quando eu revi, então, meus exercícios líricos, achei-os na verdade não ruins de todo, mas também não particularmente convincentes. Sobretudo descobri que a poesia profissional que a gente tem de lançar mão nos poemas pode ser a morte da verdadeira poesia. Por isso eu me voltei para a lenda heróica, o conto fabuloso, a estória simples. Por que isso são coisas que a vida escreve, não a legalidade das chamadas regras poéticas. Então, eu me sentei e comecei a escrever Sagarana.

Em 1937, durante "sete meses de exaltação e deslumbramento" consoante mais tarde ele próprio declararia, Guimarães Rosa escreveu uma série de contos e os reuniu em um volume; em dezembro do mesmo ano resolveu concorrer ao prêmio Humberto de Campos instituído pela Livraria José Olympio Editora. Remeteu os originais à comissão julgadora (constituída por Graciliano Ramos, Marques Rebelo, Prudente de Morais Neto, Dias da Costa e Peregrino Júnior), usando, na oportunidade, o pseudônimo de VIATOR (em latim - o passageiro, o viandante); o título dos originais era tão-somente Contos. Participaram do concurso mais 57 candidatos e Guimarães Rosa obteve o 2º lugar, perdendo por 3 votos contra 2 no confronto direto com Luís Jardim, que concorria com o livro Maria Perigosa.

Em 1938, Guimarães Rosa é nomeado Cônsul Adjunto em Hamburgo, e segue para a Europa; lá fica conhecendo Aracy Moebius de Carvalho (Ara), que viria a ser sua segunda mulher. Sobre as vivências do escritor na Alemanha leia-se O mau humor de Wotan, A velha, A senhora dos segredos e Homem, intentada viagem - artigos publicados no livro póstumo Ave, Palavra, todos eles com algum conteúdo autobiográfico. Durante a guerra, por várias vezes escapou da morte; ao voltar para casa, uma noite, só encontrou escombros. Ademais, embora consciente dos perigos que enfrentava, protegeu e facilitou a fuga de judeus perseguidos pelo Nazismo; nessa empresa, contou com a ajuda da mulher, D. Aracy. Em reconhecimento a essa atitude, o diplomata e sua mulher foram homenageados em Israel, em abril de 1985, com a mais alta distinção que os judeus prestam a estrangeiros: o nome do casal foi dado a um bosque que fica ao longo das encostas que dão acesso a Jerusalém. A concessão da homenagem foi precedida por pesquisas rigorosas com tomada de depoimentos dos mais distantes cantos do mundo onde existem sobreviventes do Holocausto. Foi a forma encontrada pelo governo israelense para expressar sua gratidão àqueles que se arriscaram para salvar judeus perseguidos pelo Nazismo por ocasião da 2ª Guerra Mundial. Com efeito, Guimarães Rosa, na qualidade de cônsul adjunto em Hamburgo, concedia vistos nos passaportes dos judeus, facilitando sua fuga para o Brasil. Os vistos eram proibidos pelo governo brasileiro e pelas autoridades nazistas, exceto quando o passaporte mencionava que o portador era católico. Sabendo disso, a mulher do escritor, D. Aracy, que preparava todos os papéis, conseguia que os passaportes fossem confeccionados sem mencionar a religião do portador e sem a estrela de Davi que os nazistas pregavam nos documentos para identificar os judeus. Nos arquivos do Museu do Holocausto, em Israel, existe um grosso volume de depoimentos de pessoas que afirmam dever a vida ao casal Guimarães Rosa. Segundo D. Aracy, que compareceu a Israel por ocasião da homenagem,(10) seu marido sempre se absteve de comentar o assunto já que tinha muito pudor de falar de si mesmo. Apenas dizia: "Se eu não lhes der o visto, vão acabar morrendo; e aí vou ter um peso em minha consciência."

Em 1942, quando o Brasil rompe com a Alemanha, Guimarães Rosa é internado em Baden-Baden, juntamente com outros compatriotas, entre os quais se encontrava o pintor pernambucano Cícero Dias, cognominado "o pequeno Chagall dos trópicos" já que, no início de sua carreira, tentou adaptar para a temática dos trópicos a maneira do pintor, gravador e vitralista russo MarcChagall, recentemente falecido. Ficam retidos durante 4 meses e são libertados em troca de diplomatas alemães. Retornando ao Brasil, após rápida passagem pelo Rio de Janeiro, o escritor segue para Bogotá, como Secretário da Embaixada, lá permanecendo até 1944. Sua estada na capital colombiana, fundada em 1538 e situada a uma altitude de 2.600 m, inspirou-lhe o conto Páramo, de cunho autobiográfico, que faz parte do livro póstumo Estas Estórias. O conto se refere à experiência de "morte parcial" vivida pelo protagonista (provavelmente o próprio autor), experiência essa induzida pela solidão, pela saudade dos seus, pelo frio, pela umidade e particularmente pela asfixia resultante da rarefação do ar (soroche - o mal das alturas). Sobre a constrangedora impressão que lhe causava a capital andina, o escritor assim se expressa:

Aconteceu que um homem, ainda moço, ao cabo de uma viagem a ele imposta, vai em muitos anos, se viu chegado ao degredo em cidade estrangeira. Era uma cidade velha, colonial, de vetusta época, e triste, talvez a mais triste de todas, sempre chuvosa e adversa, em hirtas alturas, numa altiplanície na cordilheira, próxima às nuvens, castigada pelo inverno, uma das capitais mais elevadas do mundo. Lá, no hostil espaço, o ar era extenuado e raro, os sinos marcavam as horas no abismático, como falsas paradas do tempo, para abrir lástimas, e os discordiosos rumores humanos apenas realçavam o grande silêncio, um silêncio também morto como se mesmo feito da matéria desmedida das montanhas.

Por lá, rodeados de difusa névoa sombria, altas cinzas, andava um povo de cimérios. Iam, por calhes e vielas, de casas baixas, de um só pavimento, de telhados desiguais, com beirais sombrios, casas em negro e ocre, ou grandes solares, edifícios claustreados, vivendas com varandal à frente, com adufas nas janelas, rexas, gradis de ferro, rótulas mouriscas, mirantes, balcões e altos muros com portinholas, além dos quais se vislumbravam os pátios empedrados, ou, por lúgubres postigos ou por alguma porta deixada aberta, entreviam-se corredores estreitos e escuros, crucifixos, móveis arcaicos. Toda uma pátina sombria. Passavam homens abaçanados e agudos, em roupas escuras, soturnas fisionomias, e velhas de mantilhas negras, ou mulheres índias, descalças, com sombreiros, embiocadas em xales escuros (pañolones), caindo em franjas. E os arredores se povoavam, à guisa de ciprestes, de filas negras de eucaliptos, absurdos, com sua graveolência, com cheiro de sarcófago.

Um ano depois de regressar da Colômbia, retoma os originais dos Contos com os quais concorrera ao prêmio Humberto de Campos e, após "cinco meses de reflexão e lucidez", refaz inteiramente o livro, submetendo-o a uma verdadeira depuração e suprimindo duas estórias. O volume é publicado em 1946 pela Editora Universal com o título Sagarana, esgotando-se, no mesmo ano, duas edições. A palavra sagarana, de formação híbrida, foi cunhada pelo próprio autor e resulta da justaposição de saga, substantivo comum de proveniência germânica, aplicada genericamente a narrativas históricas ou lendárias, e rana, adjetivo tupi que significa "parecido com, mal feito, tosco". Os contos de Sagarana, num total de nove, seriam, pois, parecidos com lendas, lendas toscas, rudes; ou, conforme os via o próprio Guimarães Rosa, "uma série de histórias adultas da Carochinha".

Em dezembro de 1945 o escritor retornou à terra natal depois de longa ausência. Dirigiu-se, inicialmente, à Fazenda Três Barras, em Paraopeba, berço da família Guimarães, então pertencente a seu amigo Dr. Pedro Barbosa e, depois, a cavalo, rumou para Cordisburgo, onde se hospedou no tradicional Argentina Hotel, mais conhecido por Hotel da Nhatina. Nessa oportunidade esteve na casa do Cel. Geraldino Rocha, chefe político e comerciante em Cordisburgo, jogou uma partida de xadrez com o dono da casa (como a partida demorasse muito propôs, diplomaticamente, que fosse decretado o empate),(11) saboreou um licor de jabuticaba e proseou longamente com Cristóvão Rocha, um dos filhos do Cel. Geraldino, que também manifestava pendores literários e que escrevera um belo poema intitulado Gruta de Maquiné. Na crônica-reminiscência intitulada Dois soldadinhos mineiros, contida no livro póstumo Ave, Palavra, o escritor se refere a sua estada na fazenda Três Barras, numa manhã chuvosa do mês de dezembro de 1945. E relembra: Sob céu diferente, para mim, acha-se neste mundo a das Três Barras, fazenda que foi dos meus...

... a casa, andante e vasta, é entre transmontana e minhota, dizem; casa de muita fábrica. Para o convés - que é a varanda - sobem-se os degraus de pau de alta escada. De lá, muito se vê: a visão filtrada. Ainda pende o sino; que tocavam para chamar os escravos. De antes, tempos. Aliás, parece que o último enforcamento em patíbulo público, em Minas, se deu foi, no Curvelo, com um preto que matara seu senhor, meu trisavô materno. Quando fui menino, nem em escravos se falava mais. Só havia os camaradas, que, à noitinha, se sentavam quietos, na varanda, nos longos bancos, esperando o chá de folhas de laranjeira.

Em 1946, Guimarães Rosa é nomeado chefe-de-gabinete do ministro João Neves da Fontoura e vai a Paris como membro da delegação à Conferência de Paz. Mas, apesar de suas constantes andanças pelo exterior, o escritor não perde contato com sua terra. Em novembro de 1947 publica no Correio da Manhã a reportagem poética Com o Vaqueiro Mariano, resultado de uma viagem ao pantanal matogrossense que o deixou deslumbrado a ponto de considerar a região "um verdadeiro paraíso terrestre, um Éden..." A reportagem em questão foi publicada pela segunda vez em 1952 (Edições Hipocampo, Niterói), numa tiragem de apenas 110 exemplares numerados e assinados pelo autor. Atualmente, Com o Vaqueiro Mariano está incluída no volume póstumo Estas Estórias (1969). Do mesmo modo, a crônica Ao Pantanal, incluída no também póstumo Ave, Palavra (1970), refere-se a essa viagem e baseia-se em notas de diário:

Ou - de como se devassa um Éden. Igual a todo éden, aliás, além e cluso. Mesmo em Corumbá, primeiro ouvimos quem nos dissuadisse: - ‘À Nhecolândia? Aquilo não existe. É o dilúvio...’

17 hs 10'. Chegamos. De que abismo nascemos, viemos? Mas no princípio era o querer de beleza. No princípio era sem cor.

Em 1948, Guimarães Rosa está novamente em Bogotá como Secretário-Geral da delegação brasileira à IX Conferência Inter-Americana; durante a realização do evento ocorre o assassinato político do prestigioso líder popular Jorge Eliécer Gaitán, fundador do partido Unión Nacional Izquierdista Revolucionaria, de curta mas decisiva duração. O assassinato de Gaitán desencadeou uma violentíssima revolta popular, o chamado Bogotazo, à qual aderiu a própria polícia da capital e que levou às ruas cerca de 200 mil pessoas. A revolta estendeu-se a todo o país, mas, em virtude de seu caráter anárquico (pilhagem e cerca de duas mil mortes só em Bogotá), o exército debelou-a rapidamente. Decretou-se, em conseqüência, o estado de sítio no país. Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, Guimarães Rosa assim se refere ao incidente:

Nem esqueço, em Bogotá, quando a multidão, mó milhares, estourou nas ruas sua alucinação, tanto o medonho esbregue de uma boiada brava. Saqueava-se, incendiava-se, matava-se, etc. Três dias, sem policiamento, sem restos de segurança, o Governo mesmo encantoado em palácio. Éramos, bloqueados em vivenda num bairro aristocrático, cinco brasileiros, e penso que nem um revólver. Recorro a notas: ‘12.IV.48-22hs 55’. Tiros. Apagamos a luz.’ Mas, o que, com João Neves, por sua calma instigação, então discorríamos, a rodo, eram matérias paregóricas: paleontologia, filosofia, literatura; ou lembrava tropelias brilhantes de seu Sul, citava o saudoso nosso Dr. Glicério Alves, nobre tipo humano, do melhor gaúcho e amigo. E todavia foi sua determinada e ativa decisão um dos ponderáveis motivos por que a IX Conferência se manteve na capital andina, adiante e a cabo.

De 1948 a 1950, o escritor encontra-se de novo em Paris, respectivamente como 1º Secretário e Conselheiro da Embaixada. Em 1951, de volta ao Brasil, é novamente nomeado Chefe de Gabinete de João Neves da Fontoura. Em 1953 torna-se Chefe da Divisão de Orçamento e em 1958 é promovido a Ministro de Primeira Classe (cargo correspondente a Embaixador). Em janeiro de 1962, assume a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras, cargo que exerceria com especial empenho, tendo tomado parte ativa em momentosos casos como os do Pico da Neblina (1965) e das Sete Quedas (1966). Em 1969, em homenagem ao seu desempenho como diplomata, seu nome é dado ao pico culminante (2.150 m) da Cordilheira Curupira, situado na fronteira Brasil/Venezuela. O nome de Guimarães Rosa foi sugerido pelo Chanceler Mário Gibson Barbosa, como um reconhecimento do Itamarati àquele que, durante vários anos, foi o chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras da Chancelaria Brasileira.

Em 1952, Guimarães Rosa retorna aos seus "gerais" e participa, juntamente com um grupo de vaqueiros, de uma longa viagem pelo sertão; o objetivo da viagem era levar uma boiada da Fazenda da Sirga (município de Três Marias), de propriedade de Chico Moreira, amigo do escritor, até a Fazenda São Francisco, em Araçaí, localidade vizinha de Cordisburgo, num percurso de 40 léguas. A viagem propriamente dita dura 10 dias, dela participando Manuel Narde, vulgo Manuelzão, falecido em 5 de maio de 1997, protagonista da novela Uma estória de amor, incluída no volume Manuelzão e Miguilim. Segundo depoimento do próprio Manuelzão, durante os dias que passou no sertão, Guimarães Rosa pedia notícia de tudo e tudo anotava - "ele perguntava mais que padre" -, tendo consumido "mais de 50 cadernos de espiral, daqueles grandes", com anotações sobre a flora, a fauna e a gente sertaneja - usos, costumes, crenças, linguagem, superstições, versos, anedotas, canções, casos, estórias... A curiosidade inesgotável demonstrada pelo escritor durante essa famosa viagem, aproxima-o dos naturalistas europeus que percorreram o Brasil no século passado e o redescobriram, como é o caso, p. ex., do dinamarquês Peter Wilhelm Lund - "o pai da paleontologia brasileira" - e do extraordinário botânico francês Auguste de Saint-Hilaire. A propósito, o próprio Guimarães Rosa prestou carinhosa homenagem a esses estudiosos ao criar a figura ímpar de "seu Alquiste", ou "Olquiste", que aparece no conto O recado do morro, cuja trama se desenrola, toda ela, em Cordisburgo e arredores:(12)

Seguindo-o, a cavalo, três patrões, entrajados e de limpo aspecto, gente de pessoa. Um, de fora, a quem tratavam por seu Alquiste ou Olquiste - espigo, alemão-rana, com raro cabelim barba-de-milho e cara de barata descascada. O sol faiscava-lhe nos aros dos óculos, mas, tirados os óculos, de grossas lentes, seus olhos se amaciavam num aguado azul, inocente e terno, que até por si semblava rir, aos poucos se acostumando com a forte luz daqueles altos. Calçava botas cor de chocolate, de um novo feitio; por cima da roupa clara, vestia guarda-pó de linho, para verde; traspassava a tiracol as correias da codaque e do binóculo; na cabeça um chapéu-de-palha de abas demais de largas, arranjado ali na roça. Enxacoco e desguisado nos usos, a tudo quanto enxergava dava um mesmo engraçado valor: fosse uma pedrinha, uma pedra, um cipó, uma terra de barranco, um passarinho a tôa, uma moita de carrapicho, um ninhol de vespos."

Ao dito, seu Olquiste estacava, sem jeito, a cavalo não se governava bem.Tomava nota, escrevia, na caderneta: a caso tirava retratos.

Colhia, com duas mãos, a ramagem de qualquer folhinha campã sem serventia para se guardar: de marroio, carqueja, sete-sangrias, amorzinho-seco, pé-de-perdiz, João-da-costa, unha-de-vaca-roxa, olhos-de-porco, copo d’água, língua-de-tucano, língua-de-teiú. Uma hora, revirou a correr atrás, agachado, feito pegador de galinha, tropeçando no bamburral e espichando tombo, só por ter percebido de relance, inho e zinho, fugido no balango de entre as moitas, o orobó de um nhambu.

Saudou, em beira de capão, um tamanduá longo, saído em seu giro incerto; se não o segurassem, ia lá, aceitava o abraço?

Finalmente, em 1956, dez anos depois da publicação de Sagarana, Guimarães Rosa comparece novamente no cenário da literatura brasileira com as novelas de Corpo de Baile - longos poemas em prosa, de feição barroca -,13 em dois volumes (824 páginas). A partir da 3ª edição o livro se desdobra em três volumes autônomos, figurando Corpo de Baile como subtítulo; os três volumes são, respectivamente, Manuelzão e Miguilim, no Urubùquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão. Nesse mesmo ano é lançada a 4ª edição de Sagarana (em sua versão definitiva), com ilustrações de Poty. Para surpresa geral, ainda em 1956, no mês de maio, Guimarães Rosa apresenta o romance Grande Sertão: Veredas, causando enorme impacto; devido, sobretudo, às inovações formais, a crítica e os leitores se dividem entre louvações apaixonadas e ataques ferozes. O fato é que ninguém lhe fica indiferente. Enquanto alguns colocam o livro no pináculo da criação literária nacional, outros não conseguem ir além das primeiras páginas, considerando-o "um matagal indevassável". Em matéria publicada na revista Leitura (outubro, 1958) e intitulada Escritores que não conseguem ler Grande Sertão: Veredas, o poeta Ferreira Gullar alegou que não conseguira ir além das 70 primeiras páginas do romance o qual, a essa altura, começou a lhe parecer "uma história de cangaço contada para lingüistas". Por sua vez o escritor baiano Adonias Filho, também ouvido na ocasião, afirmou: "A obra de Guimarães Rosa, apesar do interesse que possa oferecer, constitui um equívoco literário que necessita ser imediatamente desfeito." Passadas quatro décadas da publicação do livro, a razão parecia estar mesmo com Afonso Arinos de Melo Franco que, já em 1957, "no calor da hora", sentindo o cheiro de obra-prima, advertia, mineiramente:

Cuidado com este livro, pois Grande Sertão: Veredas é como certos casarões velhos, certas igrejas cheias de sombras. No princípio a gente entra e não vê nada. Só contornos difusos, movimentos indecisos, planos atormentados. Mas aos poucos, não é luz nova que chega; é a visão que se habitua. E, com ela, a compreensão admirativa. O imprudente ou sai logo, e perde o que não viu, ou resmunga contra a escuridão, pragueja, dá rabanadas e pontapés. Então arrisca-se chocar inadvertidamente contra coisas que, depois, identificará como muito belas.

As raízes da inspiração rosiana, em Grande Sertão: Veredas (como, de resto, em quase toda sua obra), mergulham no grande magma anônimo da cultura popular brasileira como bem demonstra Leonardo Arroyo em seu magnífico livro A cultura popular em Grande Sertão: Veredas; só que essa cultura passa por um processo de depuração e, sem perder sua autenticidade, é submetida a um tratamento refinado, guiado por disciplinada e vigorosa consciência estética, num milagre possível apenas em se tratando de um artista genuíno, capaz, nas palavras de Mallarmé, de "donner un sens plus pur aux mots de la tribu".

O romance recebeu três prêmios: O Machado de Assis, do Instituto Nacional do Livro; o Carmem Dolores Barbosa, de São Paulo e o Paula Brito, da municipalidade do Rio de Janeiro. As edições de Grande Sertão: Veredas se sucederam mas, ainda hoje, fica a sensação de que a maioria das pessoas que se referem ao livro não o leram, pelo menos da forma como deveriam ler, de acordo com a recomendação do próprio autor: "Minha literatura é para bois, não é para ser engolida de vez".

Em 1985, milhões de telespectadores, em todo o Brasil, tiveram acesso a um seriado baseado no livro, levado ao ar pela Rede Globo de Televisão entre 18 de novembro e 20 de dezembro, num total de 25 capítulos; a direção foi de Walter Avancini que, sem dúvida, deu uma demonstração de coragem e obstinação ao enfrentar tamanho desafio. O seriado foi considerado por muitos como o momento mais elevado da teledramaturgia brasileira. Outros limitaram-se a considerá-lo um marco, ainda que debatível. Numa análise dentro do possível desapaixonada conclui-se que o saldo do empreendimento foi positivo, com passagens de grande força dramática e de rara beleza cênica, destacando-se, à guisa de exemplo, a travessia do arraial do Sucruiú dizimado pela bexiga preta (14) (capítulo 17) - uma travessia que, nas palavras de Riobaldo, durou "só um instantezinho enorme" -, vendo-se as fogueiras ardendo em frente às casas, os doentes desfigurados, os ratos, os jagunços a recitar contritos o Pai-Nosso para exorcizar o mal e, sobretudo, a mulher ensandecida a entoar rezas no meio da rua. Não obstante, o seriado mostrou pontos criticáveis a começar pelo vestuário de cangaceiro nordestino exibido pelos jagunços e pela pronúncia (por vezes ridícula, caricata) de boa parte dos personagens (incluídos muitos dos personagens principais e o próprio narrador) que tentaram mas não conseguiram falar ao modo dos homens e mulheres dos gerais. Pelo contrário, o que se ouviu foi, não raramente, uma fala de caipira paulista entrecortada, vez por outra (e o caso de Otacília, representada pela atriz Ana Helena Berenguer, é exemplar), por pitadas de fala carioca (palatalização da fricativa alveolar surda /s/ que adquire o som de /j/ ou de /x/). Talvez por isso mesmo, muitos dos momentos de maior autenticidade do seriado correram por conta dos coadjuvantes, representados por gente da terra; a propósito, ao saber que muitos deles não eram atores, o diretor de teatro Amir Haddad surpreendeu-se e afirmou: "Então fico com o Pasolini, que preferia os não-atores..." Acrescente-se, ainda, o grave equívoco da cena final quando, coincidindo com a derradeira menção do manuelzinho-da-crôa, surge a atriz Bruna Lombardi (que fez o papel de Diadorim) dando liberdade a um passarinho inteiramente diverso, da ordem Passeriformes. Ora, o manuelzinho-da-crôa (Charadrius collaris), ave não-Passeriforme da família Charadriidae, vive sempre em casal e pode ser visto como um símbolo da fidelidade conjugal, donde sua importância no contexto do romance dada a forte relação afetiva existente entre Diadorim e Riobaldo, relação essa que pelas emoções que mobiliza tem muitas das características de uma verdadeira relação conjugal, a começar pela exigência de exclusividade por parte de Diadorim. É preciso não esquecer que, na obra rosiana, os menores detalhes são fortemente carregados de significação como, aliás, adverte o próprio Riobaldo-Rosa no Grande Sertão: Veredas: "Não esperdiço palavras. Macaco meu veste roupa."

Ainda em 1956, João Guimarães Rosa prefaciou a Antologia do Conto Húngaro, com seleção, tradução e notas de seu amigo Paulo Rónai, professor e poliglota húngaro, naturalizado brasileiro. No prefácio, o autor de Grande Sertão: Veredas faz inteligentes reflexões a respeito da língua magiar, dando a entender que a considerava uma língua próxima da ideal, uma língua que qualquer escritor (ele incluído) quereria para si, para o exercício de sua arte, mercê de sua insuperável potencialidade e plasticidade.

Pela importância desses comentários para o entendimento, inclusive, do próprio fazer literário rosiano, eles merecem ser aqui transcritos, na íntegra:

Disse já que o húngaro, por seu rico registro de vogais - que a caracterizam imediatamente - e da prevalência das claras sobre as surdas, dá-se como uma das línguas mais sonoras, musicais, em seu vozeio. Sonorosa, se bem que de ritmo fundamental muito enérgico, nela as seqüências de inflexões naturalmente modulam e fácil melodiam. De si concretizante, figurativa, imagista, encerra copiosa quantidade de onomatopéias. Sua gramática, parca, põe garra mais curta que a da emoção. Suas palavras nem sempre se fecham na racional fixidez conceitual explícita, na rigidez denotativa, antes guardam sob o significado uma ativa carga potencial, rudimentar, com o que, nos diversos momentos, inteiram-se mais variadamente de sentido, e, segundo as soluções rítmicas, se reembebem de um halo vivaz. Será, se dizer posso, uma língua menos ‘da lei’ que ‘da graça’; uma língua para homens muito objetivos, ou para poetas.

Nem não é tudo. Também, e o quanto ninguém imagina, é uma língua in opere, fabulosamente em movimento, fabril, incoagulável, velozmente evolutiva, toda possibilidades, como se estivesse sempre em estado nascente, apta avante, revoltosa. Sem desfigurar-se, como um prestante e moderno mecanismo, todo tratável, ela aceita quaisquer aperfeiçoamentos estruturais e instrumentais, que, nas exaltadas arremetidas criadoras de uma experimentação contínua, os escritores lhe infligem, segundo as mais sutis ou volumosas intenções. Suas partes obedecem à arte. Deste ponto-de-vista, nenhuma outra haverá tão plástica e colaborante, sem inércia. Por sua própria natureza original, permite todas as caprichosas e ousadas manipulações da gênese inventiva individual. Praticamente ilimitada é a criação de neologismos, o verbum confingere. O intercambiar dos sufixos e das partículas verbais é universal: os radicais aí estão, à espera de um qualquer afixo, como os forames de um painel de mesa-telefônica, para os engates ad libitum. Possível, mesmo, é a engendra de sufixos novos, partindo de terminações singulares ou peregrinas de vocábulos. Vale é o valível. Imissões adúlteras não são ilegítimas. A seiva arcaica se redestila. Absorvem-se os ruralismos. Recapturam-se as esquivas florações da gíria. Entre si, as palavras armam um fecundo comércio.

Molgável, moldável, digerente assim - e não me refiro em espécie só à língua literária - ,ela mesma se ultrapassa; como a arte deve ser, como é o espírito humano: faz e refaz suas formas. Sem cessar, dia a dia, cedendo à constante pressão da vida e da cultura, vai se desenrolando, se destorce, se enforja e forja, maleia-se, faz mó do monótono, vira dinâmica, vira agente, foge à esclerose torpe dos lugares comuns, escapa à viscosidade, à sonolência, à indigência; não se estatela. Seus escritores não deixam.

Os felizes escritores húngaros usam e mais usam da tratabilidade daquele esquematismo opulento, de um aparelho de tanta liberdade. E não o praticam apenas nos casos de necessidade elementar, conforme o ‘Sunt novis rebus nova ponenda nomina’ ciceroniano. Nesse contínuo operatório, querem não menos as operações estéticas fantasistas. O que eles buscam, às inspirações, toda-a-vida, é a máxima expressividade, a mais ponta para penetrar a matéria; o jogo eficaz. São todos individualistas. Desde que o entenda, cada um pode e deseja criar sua ‘língua’ própria, seu vocabulário e sintaxe, seu ser escrito. Mais do que isso: cada escritor húngaro, na prática, quase que não pode deixar de ter essa língua própria, pessoal. O alcance disso é mágico. Com isso, está o espírito geral da gente, que ele invoca. E essa é tendência que não arrefece. Cada jornal, em Budapeste, é escrito em seu dialeto ‘da casa’, às vezes fora da linguagem culta corrente - diz Laczkó Géza; e ajunta: ‘Na vida de sociedade húngara não basta ter-se espírito; mas a forma lingüística do dito espirituoso tem também de ser espirituosa’. Será que - como se fosse ainda o guerreiro em movimento ou solitário pastor, nas estepes antigas do Pamir ou, depois, onde volga o Volga e dona o Don - em o versar de seu idioma o magiar ficou sempre nômade.

Em 1958, no começo de junho, Guimarães Rosa viaja para Brasília, e escreve para os pais: Em começo de junho estive em Brasília, pela segunda vez lá passei uns dias. O clima da nova capital é simplesmente delicioso, tanto no inverno quanto no verão. E os trabalhos de construção se adiantam num ritmo e entusiasmo inacreditáveis: parece coisa de russos ou de norte-americanos"... "Mas eu acordava cada manhã para assistir ao nascer do sol e ver um enorme tucano colorido, belíssimo, que vinha, pelo relógio, às 6 hs 15’, comer frutinhas, durante 10’, na copa da alta árvore pegada à casa, uma ‘tucaneira’, como por lá dizem. As chegadas e saídas desse tucano foram uma das cenas mais bonitas e inesquecíveis de minha vida.

Mais tarde, o escritor aproveitaria a experiência, cristalizando-a de forma magistral no conto Os cimos, que encerra a coletânea em Primeiras Estórias:

Outra era a vez. De sorte que de novo o Menino viajava para o lugar onde as muitas mil pessoas faziam a grande cidade.

E: - Pst - apontou-se. A uma das árvores, chegara um tucano, em brando batido horizontal. Tão perto! O alto azul, as frondes, o alumiado amarelo em volta e os tantos meigos vermelhos do pássaro - depois de seu vôo. Seria de ver-se: grande, de enfeites, o bico semelhando flor de parasita. Saltava de ramo em ramo, comia da árvore carregada. Toda a luz era dele, que borrifava-a de seus coloridos, em momentos pulando no meio do ar, estapafrouxo, suspenso esplendentemente. No topo da árvore, nas frutinhas, tuco, tuco... daí limpava o bico no galho. E, de olhos arregaçados, o Menino, sem nem poder segurar para si o embevecido instante, só nos silêncios de um-dois-três. No ninguém falar. Até o Tio. O Tio, também, estava de fazer gosto por aquilo: limpava os óculos. O tucano parava, ouvindo outros pássaros - quem sabe, seus filhotes - da banda da mata. O grande bico para cima, desferia, por sua vez, às uma ou duas, aquele grito meio ferrugento dos tucanos: - ‘Crrée!’... O menino estando nos começos de chorar. Enquanto isso, cantavam os galos. O Menino se lembrava sem lembrança nenhuma. Molhou todas as pestanas.

Após outro longo período de silêncio, Guimarães Rosa reaparece em 1962 justamente com Primeiras Estórias, uma coletânea de 21 pequenos contos. É um livro sem a vastidão e o caráter sinfônico de Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas, embora estejam presentes, e talvez em grau até mais acentuado, aquelas surpreendentes pesquisas formais. Em carta dirigida ao tradutor J. J. Villard, assim se expressa o escritor a respeito do novo livro (o qual chamava, carinhosamente, de "o amarelinho", numa referência à cor da capa da edição da Livraria José Olympio Editora):

Só aparentemente e enganosamente é que ele se finge de simples e livrinho singelo. Muito mais que uma coleção de estórias místicas, Primeiras Estórias é, e pretende ser, um manual de metafísica, e uma série de poemas modernos. Quase cada palavra nele assume pluralidade de direções e sentidos. Tem de ser tomado de um ângulo poético, anti-racionalista e anti-realista.

Acredita-se que o autor tenha escolhido tanto o formato quanto a temática do novo livro após os distúrbios cardiovasculares de que foi vítima a partir de 1958 e a inevitável crise existencial que se seguiu. Assim, 1958 seria um marco, um divisor de águas; teria havido, a partir de então, uma mudança de perspectiva por parte do escritor que, vendo a saúde periclitar, não mais se permitiu elaborar projetos tão arrojados quanto Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas. Essa impressão é corroborada pela leitura das cartas que escreveu aos pais entre 1958 e 1964, em que confessa, reiteradamente, a necessidade que tinha de fazer tudo "picadinho", "miudinho", "devagarinho":

20/12/58: Ultimamente não tenho andado bem. Passei mesmo por um susto, há 15 dias. Fui ao médico, fiz todos os exames e felizmente achou-se que não era tão grave. Estou é com a pressão muito alta, eu que sempre tive pressão baixa... ..."Também tenho descansado mais, vou levando a vida com mais sossego, me defendendo, pois o pior é que tenho de evitar qualquer esforço físico, e as emoções, surpresas, contrariedades, sustos, etc. Fazendo assim - dizem os médicos - poderei chegar aos 90 anos... Não me alargarei mais pois ainda tenho de ir fazendo tudo picadinho, miudinho, a fim de evitar o cansaço."

11/6/59: "... o médico me recomenda maior número de horas de sono, dormir antes da meia-noite, viver com moderação e calma, não me preocupar nem me afobar; enfim tudo tem de ir num ritmo sossegado, picadinho, devagarinho... Rezar é o que importa. Como o sr. está vendo, coloco o centro da vida na RELIGIÃO. Com isso consigo despreocupar-me e evito que a pressão arterial suba mais."

9/7/64: "... desde uns anos para cá só posso trabalhar mais devagarinho, o que complica o expediente. Sinto mais o frio, o calor, as mudanças bruscas do tempo, etc. A gente vai vivendo, vai empurrando, vai rezando e agüentando.

Os problemas de saúde apresentados por Guimarães Rosa a partir de 1958 seriam, na verdade, o prenúncio do fim próximo, tanto mais quanto, além da hipertensão arterial, o paciente reunia outros fatores de risco cardiovascular como excesso de peso, vida sedentária e, particularmente, o tabagismo. Era um tabagista contumaz e embora afirme ter abandonado o hábito, em carta dirigida ao amigo Paulo Dantas em dezembro de 1957, na foto tirada em 1966, quando recebia do governador Israel Pinheiro a Medalha da Inconfidência, aparece com um cigarro na mão esquerda. A propósito, na referida carta, o escritor chega mesmo a admitir, explicitamente, sua dependência da nicotina:

... também estive mesmo doente, com apertos de alergia nas vias respiratórias; daí, tive de deixar de fumar (coisa tenebrosa!) e, até hoje (cabo de 34 dias!), a falta de fumar me bota vazio, vago, incapaz de escrever cartas, só no inerte letargo árido dessas fases de desintoxicação. Oh coisa feroz. Enfim, hoje, por causa do Natal chegando e de mais mil-e-tantos motivos, aqui estou eu, heróico e pujante, desafiando a fome-e-sede tabágica das pobrezinhas das células cerebrais. Não repare.

É importante frisar também que, coincidindo com os distúrbios cardiovasculares que se evidenciaram a partir de 1958, Guimarães Rosa parece ter acrescentado a suas leituras espirituais publicações e textos relativos à Ciência Cristã (Christian Science), seita criada nos Estados Unidos em 1879 por Mrs. Mary Baker Eddy e que afirmava a primazia do espírito sobre a matéria - "... the nothingness of matter and the allness of spirit" -, negando categoricamente a existência do pecado, dos sentimentos negativos em geral, da doença e da morte.

Segundo Suzi Frankl Sperber - que teve acesso à biblioteca-espólio do escritor e reuniu no livro Caos e Cosmos suas observações a respeito da influência das leituras espirituais de Guimarães Rosa sobre sua obra, tomando como ponto de partida os trechos assinalados pelo próprio autor - as publicações do Christian Science Journal, datadas de 1961, são as mais abundantemente sublinhadas, marcadas, semeadas de pontos de exclamação e de signos do infinito. A autora reconhece ter encontrado outros textos alusivos à Ciência Cristã menos anotados e datando de 1956; mas acredita que a segunda leitura dos textos, em 1961, teria influenciado muito mais intensamente o escritor a ponto de essa influência se fazer sentir em Primeiras Estórias, publicado em 1962.

Em maio de 1963, Guimarães Rosa candidata-se pela segunda vez à Academia Brasileira de Letras (a primeira fora em 1957, quando obtivera apenas 10 votos), na vaga deixada por João Neves da Fontoura. A eleição dá-se a 8 de agosto e desta vez é eleito por unanimidade. Mas não é marcada a data da posse, adiada sine die, somente acontecendo quatro anos depois. Por essa ocasião aumenta o seu conceito no exterior e seus livros começam a ser traduzidos para vários idiomas apesar das enormes dificuldades encontradas pelos tradutores, obrigando-os a manter estreita correspondência com o autor. Passa a interessar, igualmente, aos cineastas; assim é que, em 1966, o conto A hora e vez de Augusto Matraga possibilita a Roberto Santos a realização de um filme admirável, que se projeta em vários festivais internacionais. O mesmo não se pode dizer da tentativa dos irmãos Santos Pereira de transpor para o cinema o romance Grande Sertão: Veredas, que se converteu num verdadeiro fiasco: em meio a um sertão disciplinado e maquilado, privilegiaram-se os cavalos, o que levou alguns críticos a considerá-lo "um filme hípico com veleidades épicas".

Em janeiro de 1965, participa do Congresso de Escritores Latino-Americanos, em Gênova. Como resultado do congresso ficou constituída a Primeira Sociedade de Escritores Latino-Americanos, da qual o próprio Guimarães Rosa e o guatemalteco Miguel Angel Asturias (que em 1967 receberia o Prêmio Nobel de Literatura) foram eleitos vice-presidentes. Durante a realização do referido congresso, Guimarães Rosa, contrariando seus hábitos, concede uma longa entrevista ao alemão Günter Lorenz, durante a qual fala longamente sobre sua obra, sua relação com a língua, sua visão-de-mundo. Até então, sempre que era instado a prestar depoimentos ou conceder entrevistas, remetia o interlocutor a seus textos, à "conversa manuscrita". A entrevista foi publicada como parte de um livro de Lorenz - Dialog mit Lateinamerika, Tubingen e Basiléia, 1970 -, sendo posteriormente traduzida para o português e transcrita no Suplemento Literário do Minas Gerais de 23/3/1974. A linguagem da entrevista (ou melhor, da conversa, como queria Rosa) é rica em paradoxos e imagens e cheia de humor e ironia: o escritor se compara, por exemplo, a certa altura, com um jacaré do Rio São Francisco... Na opinião de Willi Bolle (Guimarães Rosa - artigo de exportação. Humboldt 30:93-99, 1974), o ficcionista: atrai o interlocutor ao terreno das metáforas, dos paradoxos e das ambigüidades, que conhece como poucos e que lhe servem de camuflagem e proteção. Pode ser considerado então uma pessoa estranha, e alimenta tal imagem, na medida em que isso seja equivalente a ‘profundo’, ‘misterioso’, ‘insondável’. Não quer fornecer esclarecimentos - o que, de fato, é um trabalho que a crítica tem que fazer -, mas indica a perspectiva em que ela deve vê-lo: como feiticeiro da linguagem, como autor metafísico ou como a esfinge da literatura brasileira, diante da qual se reúnem os críticos para solucionar enigmas.

A opinião de Willi Bolle é, de certa forma, endossada pela própria filha do escritor, Vilma Guimarães Rosa, autora de Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, quando afirma: Havia nele um certo mistério, em parte espontâneo, em parte cultivado como elemento de encanto.

Em abril de 1967, Guimarães Rosa vai ao México na qualidade de representante do Brasil no I Congresso Latino-Americano de Escritores, no qual atua como vice-presidente. Na volta é convidado a fazer parte, juntamente com Jorge Amado e Antônio Olinto, do júri do II Concurso Nacional de Romance Walmap que, pelo valor material do prêmio, é o mais importante do país. Foi premiado o livro Jorge, um brasileiro, do escritor mineiro Oswaldo França Júnior.

Em meados do mesmo ano Guimarães Rosa publica Tutaméia (Terceiras Estórias), um conjunto de 44 narrativas curtas das quais 4 desempenham também o papel de "prefácios" ("prefácios travestidos", na visão de Lenira M. Covizzi). Tutaméia é uma espécie de "livro testamento", um texto decodificador da obra rosiana ou, ainda, a chave estilística de sua obra, um resumo didático de sua criação. Nos 4 "prefácios travestidos", através de rodeios e circunlóquios, por meio de alegorias e parábolas, o autor analisa o seu gênero, seu instrumento de expressão, a natureza de sua inspiração, a finalidade de sua arte, de toda a Arte. As estórias propriamente ditas, em número de 40, primam pela excessiva concentração. Na visão de Paulo Rónai: são episódios cheios de carga explosiva, retratos que obrigam o leitor a reconstruir os dramas que moldaram os traços dos originais, romances em potencial comprimidos ao máximo. Fiel ainda desta vez ao cenário das obras anteriores, isto é, aos de sua infância, Guimarães Rosa faz caber neles a angústia existencial dos personagens e a sua própria. É naquele ambiente de agreste e dramática beleza que o inexistente entremostra a sua vontade de encarnar-se, que aquilo que não é passa a influir no que é, que o que poderia ter sido modifica o sentido do que houve. Isso num estilo que tira dos processos da fala sertaneja, propensa ao lacônico e ao sibilino, ao pedante e ao sentencioso, ao subentendido e ao elíptico, ao enfático e ao colorido; que vai buscar seu léxico num enorme estoque de regionalismos, arcaismos, latinismos, plebeismos e brasileirismos, completando-o por criações de cunho individualíssimo; e que se inova, sobretudo, por ousadias sintáticas e capazes de sugerir o que não é dito num jogo de anacolutos, reticências e omissões.

De acordo com Aglaeda Facó, a trajetória percorrida pelo escritor desde Sagarana até Tutaméia partiu "da mais pictórica iconização" e evoluiu para a "mais metafísica simbolização". Segundo a autora, a partir de Primeiras Estórias e, sobretudo, em Tutaméia, "o que estava no sintagma é pressionado para o paradigma e a decomposição prismática analítica da realidade vai dando lugar a uma decomposição prismática sintética" - uma espécie de "passagem do IMPRESSIONISMO para o CUBISMO". O livro Tutaméia foi o último publicado em vida pelo autor; após sua morte foram publicados, respectivamente em 1969 e 1970, os livros Estas Estórias (contendo a obra-prima Meu Tio, o Iauaretê que trata, de forma exemplar, da extinção da cultura indígena e de suas trágicas conseqüências) e Ave, Palavra (com páginas antológicas como Uns inhos engenheiros, De stelle et adventu magorum, Circo do miudinho, Minas Gerais e As garças).

Logo após a publicação de Tutaméia, Guimarães Rosa concede uma entrevista a alunos do Colégio Pedro II do Rio de Janeiro, permitindo que a mesma seja gravada. Mostra-se descontraído e inteiramente à vontade, dá risadas e faz os jovens rirem muito mercê de seu inegável senso de humor. Durante a entrevista, tece comentários a respeito dos assuntos os mais diversos, variando da mini-saia, que considerava "uma gracinha", à bomba atômica. Diz-se torcedor do Fluminense F. C., no Rio de Janeiro, e afirma "adorar" música de carnaval, chegando mesmo a cantarolar um verso do samba Não tenho lágrimas, de autoria de Max Bulhões e Milton de Oliveira (gravação original de Patrício Teixeira), gravado para o carnaval de 1938; ademais, confidencia aos estudantes que cultivava o hábito de manter o rádio ligado enquanto escrevia e que o referido samba era muito tocado enquanto preparava a versão primeira de Sagarana. Perguntado a respeito do comportamento atual da mulher e se esse comportamento estaria em desacordo com a condição feminina, admite que não, afirmando que "antigamente havia um exagero, o homem era homem demais e a mulher era mulher demais".15 Indagado se já teria tido muitas desilusões, responde que não e completa: "Acho que a verdade é mais deslumbrante e feérica que qualquer ilusão. Cada porta que se fecha é outra melhor que se abre. É imediato. Sempre tive a capacidade de sentir o valor da pele nova debaixo da pele velha que cai." Instado a emitir um conceito sobre a vida, lembra que seus livros estão cheios desses conceitos, destacando uma frase do conto Lá, nas campinas, de Tutaméia, que diz: "Viver é obrigação sempre imediata".16 Elogia as gerações jovens, que considerava cada vez mais vivas e inteligentes, confessando que ficava particularmente feliz quando os jovens gostavam de seus livros. Depois de afirmar que "estamos entrando na era da sinceridade", referindo-se às gerações moças, termina a entrevista contando, a pedido dos estudantes, uma piada que julgou apropriada para a ocasião e que pode ser assim resumida: três grandes sábios discutiam os assuntos mais importantes sobre a vida, a realidade, a metafísica etc.; estavam todos dentro de um barril grande, o maior que acharam; de repente, aproximou-se um garoto rolando um arco de barril, veio correndo, esbarrou e virou o barril, e os sábios ficaram inteiramente atordoados e perdidos, sem saber o que estava acontecendo...

A posse na Academia Brasileira de Letras teve lugar na noite de 16 de novembro de 1967 sendo que, na oportunidade, o escritor foi saudado por Afonso Arinos de Melo Franco - mineiro de Belo Horizonte, mas com fortes laços a ligarem-no à legendária e sertaneja Paracatu -, que pronunciou importante discurso denominado O Verbo e o Logos. Em fragmento exemplar de sua oração, Afonso Arinos procura estabelecer um paralelo entre a obra de Mário de Andrade e a de Guimarães Rosa, ambos "revolucionários", mas cada um a seu modo:

Não me parece possa haver comparação entre o vosso e o estilo de Mário de Andrade, como algumas vezes se tem feito. A renovação lingüística que Mário se propôs era mais imediata, impetuosa e polêmica; em uma palavra: destruidora. O grande polígrafo tinha em vista, ao lado da criação própria, demolir, arrasar as construções condenadas da falsa opulência verbal ou do academicismo tardio. O trabalho de demolição se faz às pressas e, no caso de Mário, com uma espécie de consciência humilde do sacrifício que impunha à própria durabilidade. No vosso caso, a experiência, pela época mesma em que começou, foi sempre construtiva. Não tendes em vista derrubar nada, desfazer nada de preexistente, mas levantar no espaço limpo. Não sois o citadino Mário, que precisava dinamitar o São Paulo burguês para erguer no chão conquistado a Paulicéia desvairada. Sois o sertanejo Rosa, conhecedor dos grandes espaços e forçado a tirar de si mesmo, no deserto, os antiplanos e os imateriais da construção. Devemos respeitar a Mário pelo propósito de sacrificar-se na destruição. Podemos admirar e partilhar em vós a esperança construtora. Não esqueçamos que os chapadões do Brasil Central permitiram, nas artes plásticas, a maior aventura de liberdade formal do mundo moderno, que é Brasília. Ali nada se demoliu, tudo se construiu, no campo livre. Despertastes as inusitadas palavras que dormiam no mundo das possibilidades imaturas. Fizestes com elas o que Lúcio Costa e Oscar Niemeyer fizeram com as linhas e os volumes inexistentes: uma construção para o mundo, no meio do Brasil.

Ressalte-se que três dias antes da posse do novo acadêmico fora lançado no Rio de Janeiro o livro Acontecências, de sua filha Vilma, que estreava como escritora. Guimarães Rosa não teve coragem de comparecer ao evento e escreveu, compungido, para a "jovem colega": "Vir eu queria, queria. Posso não. Estou apertado, tenso, comovido; urso. Meu coração já está aí, pendurado, balançando. Você, mineirinha também, me conhece um pouquinho, você sabe." Na noite da posse o novo acadêmico mais parecia um menino arrebatado, incapaz de se conter mas, ao mesmo tempo, sendo obrigado a fazê-lo; um menino grande que tivesse obtido nota 10 nos exames finais... Ao invés da atitude ligeiramente superior que se poderia esperar de um "imortal" em data tão solene, deixava transparecer sua satisfação, sua alegria, seu encantamento. Chegara a pedir ao presidente da Academia, Austregésilo de Athayde, que encomendasse uma banda de música, incumbida de atacar "fogosos dobrados" e mais uma "meia dúzia de foguetes" para compor o clima de festa. Como se pode ver, uma atitude diametralmente oposta à de outro mineiro, também de forte ascendência galega, o poeta itabirano Carlos Drummond de Andrade,(17) tão avesso às honras acadêmicas...

No discurso de posse (1 h e 20’ de duração), Guimarães Rosa procura traçar o perfil do seu antecessor e amigo, o ministro João Neves da Fontoura, de quem fora chefe-de-gabinete no Itamarati; refere-se, também, ao patrono da cadeira n. 2 da Academia, Álvares de Azevedo - "o que morreu moço, poento de poesia" - e ao fundador dessa mesma cadeira, Coelho Neto - "amoroso pastor da turbamulta das palavras". Vale lembrar que, nos dias que antecederam a posse, o escritor recorrera ao médico Pedro Bloch a fim de que este o ajudasse a controlar rigorosamente a voz, a respiração e a velocidade de leitura do discurso, em mais uma demonstração de forte tendência perfeccionista. No início de sua oração, o novo acadêmico refere-se com grande ternura à terra natal e ao fato de o amigo João Neves tratá-lo, na intimidade, por "Cordisburgo":

Cordisburgo era pequenina terra sertaneja, trás montanhas, no meio de Minas Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito: lá se desencerra a Gruta do Maquiné, milmaravilha, a das Fadas; e o próprio campo, com vasqueiros cochos de sal ao gado bravo, entre gentis morros ou sob o demais de estrelas, falava-se antes: ‘Os pastos de Vista Alegre’. Santo, um ‘Padre-Mestre’, o Padre João de Santo Antônio, que recorria atarefado a região como missionário voluntário, além de trazer ao raro povo das grotas toda sorte de assistência e ajuda, esbarrou ali, para realumbrar-se e conceber o que tenha sido talvez seu único gesto desengajado, gratuito. Tomada da inspiração da paisagem a loci opportunitas, declarou-se a erguer ao Sagrado Coração de Jesus um templo, naquele mistério geográfico. Fê-lo e fez-se o arraial, a que o fundador chamou ‘O Burgo do Coração’. Só quase coração - pois onde chuva e sol e o claro do ar e o enquadro cedo revelam ser o espaço do mundo primeiro que tudo aberto ao supraordenado: influem, quando menos, uma noção mágica do universo.

Mas por Cordisburgo, igual, verve no sério-lúdico de instantes, me tratava, ele, chefe e o amigo meu, JOÃO NEVES DA FONTOURA. - ‘Vamos ver o que diz Cordisburgo...’ - com o riso arroucado, quente, dirigindo-se nem reto a mim, senão feito a escrutar sua presente sempre cidade natal, ‘no coração do Rio Grande do Sul’.

Já quase ao final do discurso, destaca-se um trecho de pungente beleza, em que fala sobre a fé e a amizade: João Neves, tão perto o termo, comentávamos, suas filhas e eu, temas desses, de realidade e transcendência; porque agradava-lhe escutar, ainda que não tomando parte. Até que falou: - ‘A vida é inimiga da fé...’ - apenas; ei-lo, ladeira pós ladeira, sem querer fim de estrada. Descobrisse, como Plotino, que ‘a ação é um enfraquecimento da contemplação’; e assim Camus, que ‘viver é o contrário de amar’. Não que a fé seja inimiga da vida. Mas, o que o homem é, depois de tudo, é a soma das vezes em que pôde dominar, em si mesmo, a natureza. Sobre o incompleto feitio que a existência lhe impôs, a forma que ele tentou dar ao próprio e dorido rascunho.

Talvez, também, o recado melhor, dele ouvi, quase in extremis: - ‘Gosto de você mais pelo que você é, do que pelo que você fez por mim...’ Posso calá-lo? Não, porque sincero sei: exata estaria, sim, a recíproca, tanto a ele eu tivesse dito. E porque deve ser esta a comprovação certa de toda verdadeira amizade - impreterida a justiça, na medida afetuosa. Acredito. Nem creio destoante e mal assentado, numa solene inauguração de acadêmico, sem nota de despondência, algum conteúdo de testamento.

E Guimarães Rosa termina, referindo-se à Morte e à morte do amigo que, se vivo, completaria 80 anos, naquela data; invocando o Bhagavad Gita (o canto do bem-aventurado), ele que já se confessara, em carta ao tradutor italiano Edoardo Bizzarri, "impregnado de hinduísmo"; repetindo a frase "as pessoas não morrem, ficam encantadas", que pronunciara pela primeira vez em 1926, diante do ataúde do desventurado estudante Oseas, vitimado pela febre amarela; referindo-se ao buriti (Mauritia vinifera), quase um personagem em sua obra, o majestoso habitante das veredas - cognominado "a palmeira de Deus" -, hoje em processo de extinção mercê do instinto predatório de inescrupulosos que visam o lucro a qualquer preço; e, finalmente, apresentando-se a João Neves como "Cordisburgo", última palavra pública que pronunciou:

Nem agüentaria dobrar mais momentos, nesta festa aniversária - dele, a octogésima, que seria hoje, no plano terreno. Tanto tempo a esperei e fiz que esperásseis. Relevai-me.

Foi há mais de 4 anos, a recém. Vésper luzindo, ele cumprira. De repente, morreu: que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias profundezas. Morreu, com modéstia. Se passou para o lado claro, fora e acima de suave ramerrão e terríveis balbúrdias.

Mas - o que é um pormenor de ausência. Faz diferença?

‘Choras os que não devias chorar. O homem desperto nem pelos mortos nem pelos vivos se enluta’. - Krishna instrui Arjuna, no Bhagavad Gita. A gente morre é para provar que viveu. Só o epitáfio é fórmula lapidar. Elogio que vale, em si, perfeito único, sumário: João Neves da Fontoura.

Alegremo-nos, suspensas ingentes lâmpadas. E: ‘Sobe a luz sobre o justo e dá-se ao teso coração alegria!’ - desfere então o Salmo. As pessoas não morrem, ficam encantadas.

Soprem-se as oitenta velinhas.

Mas eu murmure e diga, ante macios morros e fortes gerais estrelas, verde o mugibundo buriti, buriti, e a sempre-viva-dos-gerais que miúdo viça e enfeita. O mundo é mágico.

- Ministro, está aqui Cordisburgo.

Quando se ouve a gravação do discurso de Guimarães Rosa nota-se, claramente, ao final do mesmo, sua voz embargada pela emoção - era como se chorasse por dentro. É possível que o novo acadêmico tivesse plena consciência de que chegara sua HORA e sua VEZ. Com efeito, três dias após a posse, em 19-XI-1967, ele morreria subitamente em seu apartamento em Copacabana, sozinho (a esposa fora à missa), mal tendo tempo de chamar por socorro. Na segunda-feira, dia 20, o Jornal da Tarde, de São Paulo, estamparia em sua primeira página uma enorme manchete com os dizeres: "MORRE O MAIOR ESCRITOR". Que lhe seja dada a palavra ao final desta tentativa de biografia que se quer, pelo menos, honesta:

Desconfio que sou um individualista feroz, mas disciplinadíssimo. Com aversão ao histórico, ao político, ao sociológico. Acho que a vida neste planeta é caos, queda, desordem essencial, irremediável aqui, tudo fora de foco. Sou só RELIGIÃO - mas impossível de qualquer associação ou organização religiosa: tudo é o quente diálogo (tentativa de) com o ¥. O mais, você deduz.(18)

Morto Guimarães Rosa - lá se vão três décadas -, resta sua obra singular, por demais estudada, mas cujo poder de sedução ainda não foi satisfatoriamente explicado; afinal, como ensina - ou aprende - o próprio Riobaldo, "muita coisa importante falta nome".

Notas

1. Aliás, no conto O recado do morro, do livro No Urubùquaquá, no Pinhém, o escritor batizou um personagem com o nome do próprio pai: "Mas, nesse justo momento, vinham chegando os frades - frei Sinfrão e frei Florduardo - evinham enérgicos."

2. O escritor infantil Vicente Guimarães, mais conhecido por Vovô Felício, é autor do livro Joãozito - Infância de João Guimarães Rosa. Publicou também, pela Editora Minerva (RJ), em 1968, a estória Última aventura do Sete-de-Ouros, uma adaptação, para crianças, do conto O Burrinho Pedrês, de seu sobrinho J. G. Rosa.

3. Segundo Vicente Guimarães, Joãozito era um menino "nojoso", "cheio de nica", "ni-quento". Ao que parece, tais atributos o escritor, de certa forma, transferiu-os mais tarde para Riobaldo, herói anti-heróico, ao atestar a reação do protagonista de Grande Sertão: Veredas ante o hábito, comum no interior do Brasil, de comer tanajuras fritas com farinha, uma herança alimentar indígena assimilada pelo colonizador branco através, possivelmente, do mameluco: "Mas o esgaboar estirante das tanajuras vinha para toda parte, mesmo no meio da gente, chume-chume, fantasiado duma chuva de pedras, e elas em tudo caíam e perturbavam, nos ombros dos homens e no pêlo dos animais. Como digo que eu mesmo a tapas enxotei muitas, e outras que depois tive de sacudir fora da crôa de meu chapéu, por asseio. Içá, savitu: já ouvi dizer que homem faminto come frita com farinha essa imundície..."

4. O episódio da morte do estudante goiano Oseas é mencionado por Pedro Nava no livro Beira-Mar, em cujas páginas o autor revive os velhos tempos de estudante de Medicina em Belo Horizonte.

5. No dia 17 de fevereiro de 1673, quando fazia o papel principal em sua peça Le malade imaginaire, de cunho autobiográfico, onde, com sua habitual irreverência, satirizava os médicos que lhe teriam minado a saúde, Molière passou mal e, horas depois, morreu. A classe médica, exultante, deliciou-se com a irônica advertência: ai daqueles que se atrevem a dizer verdades sobre ela...

6. Segundo o Prof. Paulo Rónai (comunicação pessoal), Quelemém é a transcrição exata do nome próprio Kelemen, forma húngara do antropônimo Clemente (lat. clemens). Como se vê, o nome faz jus ao personagem: "Homem de mansa lei, coração tão branco e grosso de bom, que mesmo pessoa muito alegre ou muito triste gosta de poder conversar com ele."

7. O termo "calões", utilizado por Manuel Fulô, deriva de um dos nomes genéricos da nação dos ciganos, isto é, de kalo (no plural kala), que significa negro, o que, para muitos estudiosos, é um elemento a mais a comprovar sua origem hindustânica. Já uma pessoa estranha, que não pertence à mesma raça, é conhecida por gajão ou ganjão, e Manuel Fulô tem consciência disso: "Pegavam num pangaré pelado, mexiam com ele daqui p’r’ali, repassavam, acertavam no freio, e depois era só chegar pra o ganjão e passar a perna nele, na barganha..."

8. Mário Palmério, escritor e compositor, mineiro de Monte Carmelo, autor de Vila dos Confins e de Chapadão do Bugre, foi o sucessor de Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras, tomando pos-se em 22/11/1968.

9. LITERATURA deve ser vida: Diálogo de Günter W. Lorenz com João Guimarães Rosa. Minas Gerais: Suplemento Literário, Belo Horizonte, n. 395, 23 mar. 1974, p. 8 a 13.

10. Uma foto da solenidade de entrega do prêmio, vendo-se D. Aracy junto às bandeiras do Brasil e de Israel, pode ser vista na Sala Guimarães Rosa do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais da FM - UFMG.

11. Os movimentos das peças do xadrez foram ensinados ao menino Joãozito pela Profª. Maria de Lourdes Rocha Correa, filha mais velha do Cel. Geraldino Rocha, casada com o Sr. Adolfo Correa. O pai deste, de nome Sérgio Correa, embarcava, na estação ferroviária de Cordisburgo, com destino ao Rio de Janeiro, o gado que engordava na Fazenda da Ponte, de sua propriedade, sendo o inspirador da figura do Major Saulo, do conto O Burrinho Pedrês, de Sagarana.

12. No conto O recado do morro, uma mensagem, ouvida durante uma expedição por um velho eremita, passa de boca em boca, de forma ininteligível, por uma seqüência de personagens marginais - seres primitivos de senso embotado mas de sentidos apurados - até chegar a um bardo popular que, não só capta a mensagem - um recado infralógico emanado do Morro da Garça -, como também lhe dá forma e sentido, convertendo-a numa obra de arte (a canção popular) e permitindo a decifração, por parte do protagonista (Pedro Orósio), do código nela con-tido. No referido conto, além da Gruta ou Lapa Nova do Maquiné, situada a 6 km da sede urbana de Cordisburgo, Guimarães Rosa menciona a Fazenda Saco dos Cochos, a Fazenda Bento Velho, o Ribeirão da Onça, o Córrego do Cuba, a Rua dos Pequis, a Rua dos Pacas, a Rua de Cima, a Rua de Baixo, o Hotel do Sinval, a Igreja do Rosário (já demolida), a Matriz do Sagrado Coração, o povoado das Lajes, o distrito da Lagoa, o Araçá (Araçaí, cidade vizinha de Cor-disburgo) e o Morro da Garça - "solitário, escaleno e escuro, feito uma pirâmide" -, acidente geográfico situado próximo à sede do município do mesmo nome (18 30S 44 35W), entre os municípios de Curvelo e de Corinto.

13. Para Davi Arrigucci Jr. (Guimarães Rosa e Gôngora: Metáforas. In: Achados e Perdidos, Pólis, São Paulo, 1979), que aproxima o escritor mineiro do poeta espanhol Luís de Gôngora (1561-1627), o estilo de ambos seria melhor definido como maneirista do que propriamente como barroco. De acordo com o referido ensaísta, embora as diferenças entre os dois autores sejam óbvias, sua atitude em face da linguagem é semelhante, na medida em que "ambos admitem, se não declarada, implicitamente, a insuficiência do instrumento lingüístico que revolucionam à sua maneira, moldando-o a suas necessidades individuais de expressão"; e mais, na medida em que "ambos violentam a língua para acomodá-la a uma visão do mundo que tem por traço característico, no plano expressivo, a ênfase".

14. A expressão bexiga preta refere-se a uma forma grave de varíola (doença hoje em dia praticamente extinta) acompanhada de manifestações hemorrágicas e de sério comprometimento do estado geral, não raro evoluindo para o óbito.

15. A propósito dessa afirmativa, cabe mencionar que, nu-ma época em que semelhante procedimento era inusitado, Guimarães Rosa escreveu um conto magistral denominado Esses Lopes (contido no livro Tutaméia) no qual ele se coloca sob a pele da protagonista e, assumindo provisoriamente a condição feminina - numa atitude empática -, procura experimentar o mundo a partir dessa nova perspectiva: "Má gente, de má paz; deles, quero distantes léguas. Mesmo de meus filhos, os três. Livre, por velha nem revogada não me dou, idade é a qualidade. Amo um homem, ele vive de admirar meus bons préstimos, boca cheia d’água. Meu gosto agora é ser feliz, em uso, no sofrer e no regalo. Quero falar alto. Lopes nenhum me venha, que às dentadas escorraço. Para trás, o que passei, foi arremedando e esquecendo. Ainda achei o fundo do meu coração. A maior prenda, que há, é ser virgem. Mas, primeiro, os outros obram a história da gente."

16. Uma variante da frase citada na entrevista, é esta outra - "A gente pensa que vive por gosto, mas vive é por obrigação", que aparece em A estória do homem do pinguelo; a referida estória foi publicada, inicialmente, na revista Senhor (março de 1962) e, mais tarde, foi incluída no volume póstumo Estas Estórias.

17. A Galiza, região da Espanha situada a noroeste da península ibérica, na fronteira com Portugal, está atualmente dividida em quatro províncias; o nome Galiza é de origem céltica, gaulesa, e o idioma regional muito se aproxima do português. A estirpe dos Andrade (como a dos Guimarães) tem suas raízes plantadas na Galiza; dali, alguns ramos emigraram para Portugal e, posteriormente, para o Brasil, fixando-se principalmente na região de Itabira e Antônio Dias, em Minas Gerais, como demonstram Ormi Andrade Silva e José Gomide Borges no livro Dois séculos dos "Andrade", publicado em 1984.

18. Carta de J. Guimarães Rosa a seu amigo Vicente Ferreira da Silva, datada de 21/5/1958.

Fonte: www.medicina.ufmg.br