Auto da Alma

ARGUMENTO

 

Assi como foi cousa muito necessária haver nos caminhos estalagens, pera repouso e refeição dos cansados caminhantes, assi foi cousa conveniente que nesta caminhante vida houvesse uma estalajadeira, pera refeição e descanso das almas que vão caminhantes pera a eternal morada de Deus. Esta estalajadeira das almas é a Madre Santa Igreja, a mesa é o altar, os manjares as insígnias da Paixão. E desta perfiguração trata a obra seguinte.

 

 Figuras: Alma, Anjo Custódio, Igreja, Santo Agostinho, Santo Ambrósio, S. Jerónimo, S. Tomás, Dous Diabos.

 

Este Auto presente foi feito à muito devota Rainha D. Leonor e representado ao mui poderoso e nobre Rei Dom Emanuel, seu irmão, por seu mandado, na cidade de Lisboa, nos Paços da Ribeira, em a noite de Endoenças. Era do Senhor de 1518.

 

 

Está posta uma mesa com uma cadeira. Vem a Madre Santa Igreja com seus quatro doutores: S. Tomás, S. Jerónimo, Santo Ambrósio e Santo Agostinho. E diz Agostinho:

 

AGOSTINHO    Necessário foi, amigos,

    que nesta triste carreira

    desta vida,

    pera os mui p'rigosos p'rigos

    dos imigos,

    houvesse alguma maneira

    de guarida.

    Porque a humana transitória

    natureza vai cansada

    em várias calmas;

    nesta carreira da glória

    meritória,

    foi necessário pousada

    pera as almas.

 

    Pousada com mantimentos,

    mesa posta em clara luz,

    sempre esperando

    com dobrados mantimentos

    dos tormentos

    que o Filho de Deus, na Cruz,

    comprou, penando.

    Sua morte foi avença,

    dando, por dar-nos paraíso,

    a sua vida

    apreçada, sem detença,

    por sentença,

    julgada a paga em proviso,

    e recebida.

 

    A Sua mortal empresa

    foi santa estalajadeira

    Igreja Madre:

    consolar à sua despesa,

    nesta mesa,

    qualquer alma caminheira,

    com o Padre

    e o Anjo Custódio aio.

    Alma que lhe é encomendada,

    se enfraquece

    e lhe vai tomando raio

    de desmaio,

    se chegando a esta pousada,

    se guarece.

 

Vem o Anjo Custódio, com a Alma, e diz:

 

ANJO    Alma humana, formada

    de nenhüa cousa feita,

    mui preciosa,

    de corrupção separada,

    e esmaltada

    naquela frágoa perfeita,

    gloriosa!

    Planta neste vale posta

    pera dar celestes flores

    olorosas,

    e pera serdes tresposta

    em a alta costa,

    onde se criam primores

    mais que rosas!

 

    Planta sois e caminheira,

    que ainda que estais, vos is

    donde viestes.

    Vossa pátria verdadeira

    é ser herdei

    da glória que conseguis:

    andai prestes.

    Alma bem-aventurada,

    dos anjos tanto querida,

    não durmais!

    Um ponto não esteis parada,

    que a jornada

    muito em breve é fenecida,

    se atentais.

 

ALMA    Anjo que sois minha guarda,

    olhai por minha fraqueza

    terreal!

    de toda a parte haja resguarda,

    que não arda

    a minha preciosa riqueza

    principal.

    Cercai-me sempre ò redor

    porque vou mui temerosa

    de contenda.

    Ó precioso defensor

    meu favor!

    Vossa espada lumiosa

    me defenda!

 

    Tende sempre mão em mim,

    porque hei medo de empeçar,

    e de cair

ANJO    Pera isso sam e a isso vim;

    mas enfim,

    cumpre-vos de me ajudar

    a resistir

    Não vos ocupem vaidades,

    riquezas, nem seus debates.

    Olhai por vós;

    que pompas, honras, herdades

    e vaidades,

    são embates e combates

    pera vós.

 

    Vosso livre alvedrio,

    isento, forro, poderoso

    vos é dado

    polo divinal poderio

    e senhorio,

    que possais fazer glorioso

    vosso estado.

    Deu-vos livre entendimento,

    e vontade libertada

    e a memória,

    que tenhais em vosso tento

    fundamento,

    que sois por Ele criada

    pera a glória.

 

    E vendo Deus que o metal

    em que vos pôs a estilar,

    pera merecer,

    que era muito fraco e mortal,

    e, por tal,

    me manda a vos ajudar

    e defender.

    Andemos a estrada nossa;

    olhai: não torneis atrás,

    que o imigo

    à vossa vida gloriosa

    porá grosa,

    Não creiais a Satanás,

    vosso perigo!

 

    Continuai ter o cuidado

    no fim de vossa jornada,

    e a memória,

    que o espírito atalaiado

    do pecado

    caminha sem temer nada

    pera a Glória.

    E nos laços infernais,

    e nas redes de tristura

    tenebrosas

    da carreira, que passais,

    não caiais:

    siga vossa fermosura

    as gloriosas.

 

Adianta-se o Anjo, e vem o Diabo a ela e diz:

 

DIABO    Tão depressa, ó delicada,

    alva pomba, pera onde isso?

    Quem vos engana,

    e vos leva tão cansada

    por estrada,

    que somente não sentis

    se sois humana?

    Não cureis de vos matar

    que ainda estais em idade

    de crecer

    Tempo há i pera folgar

    e caminhar

    Vivei à vossa vontade

    e havei prazer.

 

    Gozai, gozai dos bens da terra,

    Procurai por senhorios

    e haveres.

    Quem da vida vos desterra

    à triste serra?

    Quem vos fala em desvarios

    por prazeres?

    Esta vida é descanso,

    doce e manso,

    não cureis doutro paraíso.

    Quem vos põe em vosso siso

    outro remanso?

ALMA    Não me detenhais aqui,

    leixai-me ir que em al me fundo.

 

DIABO    Oh! Descansai neste mundo

    que todos fazem assi:

    Não são em balde os haveres.

    não são em balde os deleites,

    e fortunas;

    não são debalde os prazeres

    e comeres:

    tudo são puros afeites

    das criaturas:

 

    Pera os homens se criaram.

    Dai folga à vossa passagem

    d'hoje a mais:

    descansai, pois descansaram

    os que passaram

    por esta mesma romagem

    que levais.

    O que a vontade quiser

    quanto o corpo desejar,

    tudo se faça.

    Zombai de quem vos quiser

    reprender

    querendo-vos marteirar

    tão de graça.

 

    Tornara-me, se a vós fora.

    Is tão triste, atribulada,

    que é tormenta.

    Senhora, vós sois senhora

    emperadora,

    não deveis a ninguém nada.

    Sede isenta.

ANJO    Oh! andai; quem vos detém?

    Como vindes pera a Glória

    devagar!

    Ó meu Deus! Ó sumo bem!

    Já ninguém

    não se preza da vitória

    em se salvar!

 

    Já cansais, alma preciosa?

    Tão asinha desmaiais?

    Sede esforçada!

    Oh! Como viríeis trigosa

    e desejosa,

    se vísseis quanto ganhais

    nesta jornada!

    Caminhemos, caminhemos.

    Esforçai ora, Alma santa,

    esclarecida!

 

Adianta-se o Anjo, e torna Satanás:

 

DIABO    Que vaidades e que extremos

    tão supremos!

    Pera que é essa pressa tanta?

    tende vida.

 

    Is muito desautorizada,

    descalça, pobre, perdida,

    de remate:

    não levais de vosso nada.

    Amargurada,

    assi passais esta vida

    em disparate.

    Vesti ora este brial;

    metei o braço por aqui.

    Ora esperai.

    Oh! Como vem tão real!

    Isto tal

    me parece bem a mi:

    ora andai.

 

    Uns chapins haveis mister

    de Valença: ei-los aqui.

    Agora estais vós mulher

    de parecer

    Ponde os braços presumptuosos:

    isso si!

    Passeai-vos mui pomposa,

    daqui pera ali, e de lá pera cá,

    e fantasiai.

    Agora estais vós fermosa

    como a rosa;

    tudo vos mui bem está.

    Descansai.

 

Torna o Anjo à Alma, dizendo:

 

ANJO    Que andais aqui fazendo?

ALMA   Faço o que vejo fazer

    polo mundo.

ANJO   Ó Alma, is-vos perdendo!

    Correndo vos is meter

    no profundo!

    Quanto caminhais avante,

    tanto vos tornais atrás

    e através.

    Tomastes, ante com ante

    por mercante,

    o cossairo Satanás,

    porque quereis.

 

    Oh! caminhai com cuidado,

    que a Virgem gloriosa

    vos espera.

    Deixais vosso principado

    deserdado!

    Enjeitais a glória vossa

    e pátria vera!

    Deixai esses chapins ora,

    e esses rabos tão sobejos,

    que is carregada;

    não vos tome a morte agora

    tão senhora,

    nem sejais, com tais desejos,

    sepultada.

 

    Andai! dai-me cá essa mão!

ALMA    Andai vós, que eu irei,

    quanto puder.

 

Adianta-se o Anjo, e torna o Diabo:

 

DIABO    Todas as cousas com razão

    têm sazão

    Senhora, eu vos direi

    meu parecer:

    Há i tempo de folgar

    e idade de crecer;

    e outra idade

    de mandar e triunfar

    e apanhar

    e adquirir prosperidade

    a que puder.

 

    Ainda é cedo pera a morte;

    tempo há-de arrepender

    e ir ao Céu.

    Ponde-vos à for da corte;

    desta sorte

    viva vosso parecer

    que tal naceu.

    O ouro pera que é,

    e as pedras preciosas,

    e brocados?

    E as sedas pera quê?

    Tende por fé,

    que pera as almas mais ditosas

    foram dados.

 

    Vedes aqui um colar d'ouro,

    mui bem esmaltado,

    e dez anéis.

    Agora estais vós pera casar

    e namorar

    Neste espelho vos tereis,

    e sabereis

    que não vos hei-de enganar.

    E poreis estes pendentes,

    em cada orelha seu.

    Isso si!

    Que as pessoas diligentes

    são prudentes.

    Agora vos digo eu

    que vou contente daqui.

 

ALMA    Oh! Como estou preciosa,

    tão dina pera servir

    E santa pera adorar!

ANJO    Ó Alma despiedosa

    perfiosa!

    Quem vos devesse fugir

    mais que guardar!

    Pondes terra sobre terra,

    que esses ouros terra são.

    Ó Senhor

    porque permites tal guerra,

    que desterra

    ao reino da confusão

    o teu lavor?

 

    Não íeis mais despejada,

    e mais livre da primeira

    pera andar?

    Agora estais carregada

    e embaraçada

    com cousas que, à derradeira,

    hão-de ficar.

    Tudo isso se descarrega

    ao porto da sepultura.

    Alma santa, quem vos cega,

    vos carrega

    dessa vã desaventura?

 

ALMA    Isto não me pesa nada,

    mas a fraca natureza

    me embaraça.

    Já não posso dar passada

    de cansada:

    tanta é minha fraqueza,

    e tão sem graça!

    Senhor, ide-vos embora,

    que remédio em mim não sento,

    já estou tal...

ANJO    Sequer dai dous passos ora,

    até onde mora

    a que tem o mantimento

    celestial.

 

    Ireis ali repousar

    comereis alguns bocados

    confortosos;

    porque a hóspeda é sem par

    em agasalhar

    os que vêm atribulados

    e chorosos.

ALMA    É longe?

ANJO    Aqui mui perto,

    Esforçai, não desmaieis!

    E andemos,

    qu'ali há todo concerto

    mui certo:

    quantas cousas querereis

    tudo tendes.

 

    A hóspeda tem graça tanta.

    far-vos-á tantos favores!

ALMA    Quem é ela?

ANJO    É a Madre Igreja Santa,

    e os seus santos Doutores.

    I com ela.

    Ireis d'i mui despejada,

    cheia do Spírito Santo,

    e mui fermosa.

    Ó Alma, sede esforçada!

    Outra passada,

    que não tendes de andar tanto

    a ser esposa.

 

DIABO    Esperai, onde vos isso?

    Essa pressa tão sobeja

    é já pequice.

    Como! Vós, que presumis,

    consentis

    continuardes a igreja,

    sem velhice?

    Dai-vos, dai-vos a prazer

    que muitas horas há nos anos

    que lá vêm.

    Na hora que a morte vier

    como se quer

    se perdoam quantos danos

    a alma tem.

 

    Olhai por vossa fazenda

    tendes umas escrituras

    de uns casais,

    de que perdeis grande renda.

    É contenda,

    que leixaram às escuras

    vossos pais;

    é demanda mui ligeira,

    litígios que são vencidos

    em  um riso.

    Citai as partes terça-feira,

    de maneira

    como não fiquem perdidos,

    e havei siso.

 

ALMA    Cal'-te por amor de Deus!

    leixa-me, não me persigas!

    Bem abasta

    estorvares os heréus

    dos altos céus,

    que a vida em tuas brigas

    se me gasta.

    Leixa-me remediar

    o que tu, cruel, danaste

    sem vergonha,

    que não me posso abalar,

    nem chegar

 

    ao lugar onde gaste

    esta peçonha.

   

Chega a Alma diante da Igreja.

 

ANJO    Vedes aqui a pousada

    verdadeira e mui segura

    a quem quer vida.

IGREJA   Oh! Como vindes cansada

    e carregada!

ALMA    Venho por minha ventura,

    amortecida,

IGREJA   Quem sois? Pera onde andais?

ALMA    Não sei pera onde vou;

    sou selvagem,

    sou uma alma que pecou

    culpas mortais

    contra o Deus que me criou

    à Sua imagem.

 

    Sou a triste, sem ventura,

    criada resplandecente

    e preciosa,

    angélica em fermosura,

    e per natura,

    como raio reluzente

    luminosa.

    E por minha triste sorte

    e diabólicas maldades

    violentas,

    estou mais morta que a morte

    sem deporte,

    carregada de vaidades

    peçonhentas.

   

    Sou a triste, sem mezinha,

    pecadora obstinada,

    perfiosa;

    pola triste culpa minha,

    mui mesquinha,

    a todo o mal inclinada

    e deleitosa.

    Desterrei da minha mente

    os meus perfeitos arreios

    naturais;

    não me prezei de prudente,

    mas contente

    me gozei com os trajos feios

    mundanais.

   

    Cada passo me perdi;

    em lugar de merecer,

    eu sou culpada.

    Havei piedade de mi,

    que não me vi;

    perdi meu inocente ser,

    e sou danada.

    E, por mais graveza, sento

    não poder me arrepender

    quanto queria;

    que meu triste pensamento,

    sendo isento,

    não me quer obedecer,

    como soía.

 

    Socorrei, hóspeda senhora,

    que a mão de Satanás

    me tocou,

    e sou já de mim tão fora,

    que agora

    não sei se avante, se atrás,

    nem como vou.

    Consolai minha fraqueza

    com sagrada iguaria,

    que pereço,

    por vossa santa nobreza,

    que é franqueza;

    porque o que eu merecia

    bem conheço.

 

    Conheço-me por culpada,

    e digo diante vós

    minha culpa.

    Senhora, quero pousada,

    dai passada,

    pois que padeceu por nós

    quem nos desculpa.

    Mandai-me ora agasalhar

    capa dos desamparados,

    Igreja Madre.

IGREJA   Vinde-vos aqui assentar

    mui devagar

    que os manjares são guisados

    por Deus Padre.

 

    Santo Agostinho doutor,

    Jerónimo, Ambrósio, São

    Tomás,

    meus pilares,

    servi aqui por meu amor

    o qual milhor

    E tu, Alma, gostarás

    meus manjares.

    Ide à santa cozinha,

    tornemos esta alma em si,

    por que mereça

    de chegar onde caminha,

    e se detinha.

    Pois que Deus a trouxe aqui,

    não pereça.

 

Enquanto estas cousas passam, Satanás passeia, fazendo muitas vascas, e vem outro (Diabo) e diz:

 

2º DIABO   Como andas dasassossegado!

1º DIABO   Arço em fogo de pesar

2º DIABO  Que houveste?

2º DIABO   Ando tão desatinado,

    de enganado,

    que não posso repousar

    que me preste.

    Tinha uma alma enganada,

    já quase pera infernal,

    mui acesa.

2º DIABO   E quem t'a levou forçada?

1º DIABO   O da espada.

2º DIABO   Já m'ele fez outra tal

    burla como essa.

 

    Tinha outra alma já vencida,

    em ponto de se enforcar

    de desesperada,

    a nós toda oferecida,

    e eu prestes pera a levar

    arrastada;

    e ele fê-la chorar tanto,

    que as lágrimas corriam

    pola terra.

    Blasfemei entonces tanto,

    que meus gritos retiniam

    pola serra.

 

    Mas faço conta que perdi,

    outro dia ganharei,

    e ganharemos

1º DIABO   Não digo eu, irmão, assi:

    mas a esta tornarei,

    e veremos.

    Torná-la-ei a afagar

    despois que ela sair fora

    da Igreja

    e começar de caminhar;

    hei-de apalpar

    se vencerão ainda agora

    esta peleja.

   

Entra a Alma, com o Anjo.

 

ALMA    Vós não me desempareis,

    Senhor meu Anjo Custódio!

    Ó incréus

    imigos, que me quereis,

    que já sou fora do ódio

    de meu Deus?

    Leixai-me já, tentadores,

    neste convite prezado

    do Senhor

    guisado aos pecadores

    com as dores

    de Cristo crucificado,

    redentor.

 

Estas cousas, estando a Alma assentada à mesa, e o Anjo junto com ela, em pé, vêm os Doutores com quatro bacios de cozinha cobertos, cantando: «Vexilla regis    prodeunt». E, postos na mesa, diz Santo Agostinho:

 

AGOSTINHO   Vós, senhora convidada,

    nesta ceia soberana

    celestial,

    haveis mister ser apartada

    e transportada

    de toda a cousa mundana,

    terreal.

    Cerrai os olhos corporais,

    deitai ferros aos danados

    apetitos,

    caminheiros infernais;

    pois buscais

    os caminhos bem guiados

    dos contritos.

 

IGREJA   Benzei a mesa vós, senhor

    e, pera consolação

    da convidada,

    seja a oração de dor

    sobre o tenor

    da gloriosa Paixão

    consagrada.

    E vós, Alma, rezareis,

    contemplando as vivas dores

    da Senhora;

    Vós outros respondereis,

    pois que fostes rogadores

    até agora.

 

Oração pera Santo Agostinho.

 

    Alto Deus Maravilhoso,

    que o mundo visitaste

    em carne humana,

    neste vale temeroso

    e lacrimoso.

    Tua glória nos mostraste

    soberana.

    E Teu Filho delicado,

    mimoso da Divindade

    e Natureza,

    per todas partes chagado,

    e mui sangrado,

    pela nossa infirmidade

    e vil fraqueza!

 

    Ó Emperador celeste,

    Deus alto, mui poderoso,

    essencial,

    que polo homem que fizeste,

    ofereceste

    o teu estado glorioso

    a ser mortal!

    E Tua Filha, Madre, Esposa,

    horta nobre, frol dos céus,

    Virgem Maria,

    mansa pomba gloriosa;

    oh quão chorosa

    quando o seu Deus padecia!

 

    Ó lágrimas preciosas,

    do Virginal Coração

    estiladas,

    correntes das dores vossas,

    com os olhos da perfeição

    derramadas!

    Quem uma só pudera ver

    vira claramente nela

    aquela dor,

    aquela pena e padecer

    com que choráveis, donzela,

    vosso amor!

   

    E quando vós, amortecida,

    se lágrimas vos faltavam,

    não faltava

    a vosso filho e vossa vida

    chorar as que lhe ficaram

    de quando orava.

    Porque muito mais sentia

    polos seus padecimentos

    ver-vos tal;

    mais que quanto padecia,

    lhe doía,

    e dobrava seus tormentos,

    vosso mal.

   

    Se se pudesse dizer

    se se pudesse rezar

    tanta dor;

    Se se pudesse fazer

    podermos ver

    qual estáveis ao cravar

    do Redentor!

    Ó fermosa face bela,

    ó resplandor divinal,

    que sentistes,

    quando a cruz se pôs à vela,

    e posto nela

    o filho celestial

    que paristes?

   

    Vendo por cima da gente

    assornar vosso conforto

    tão chagado,

    cravado tão cruelmente,

    e vós presente,

    vendo-vos ser mãe do morto,

    e justiçado!

    Ó Rainha delicada,

    santidade escurecida,

    quem não chora

    em ver morta e debruçada

    a avogada,

    a força da nossa vida?

 

AMBRÓSIO   Isto chorou Hieremias

    sobre o monte de Sião,

    há já dias;

    porque sentiu que o Messias

    era nossa redenção.

    E chorava a sem-ventura,

    triste de Jerusalém

    homecida,

    matando, contra natura,

    seu Deus nascido em Belém

    nesta vida.

 

JERÓNIMO    Quem vira o Santo Cordeiro

    antre os lobos humildoso,

    escarnecido,

    julgado pera o marteiro

    do madeiro,

    seu rosto alvo e fermoso

    mui cuspido!

 

(Agostinho benze a mesa.)

 

AGOSTINHO    A bênção do Padre Eternal,

    e do Filho, que por nós

    sofreu tal dor,

    e do Spírito Santo, igual

    Deus imortal,

    convidada, benza a vós

    por seu amor

IGREJA   Ora sus! Venha água às mãos.

 

AGOSTINHO    Vós haveis-vos de lavar

    em lágrimas da culpa vossa,

    e bem lavada.

    E haveis-vos de chegar

    a alimpar

    a uma toalha fermosa,

    bem lavrada

    co sirgo das veias puras

    da Virgem sem mágoa, nacido

    e apurado,

    torcido com amarguras

    às escuras,

    com grande dor guarnecido

    e acabado.

 

    Não que os olhos alimpeis,

    que o não consentirão

    os tristes laços;

    que tais pontos achareis

    da face e envés,

    que se rompe o coração

    em pedaços.

    Vereis seu triste lavrado

    natural,

    com tormentos pespontado,

    e figurado

    Deus Criador em figura

    de mortal.

 

Esta toalha, em que aqui se fala, é o Verónica, a qual Santo Agostinho tira d'antre os bacios, e  amostra à Alma; e a Madre Igreja, com os Doutores, lhe fazem adoração de joelhos, cantando: «Salve, Sancta Facies».

E, acabando, diz a Madre Igreja:

 

IGREJA    Venha a primeira iguaria.

 

JERÓNIMO   Esta iguaria primeira

    foi, Senhora,

    guisada sem alegria

    em triste dia,

    a crueldade cozinheira

    e matadora.

    Gostá-la-eis com salsa e sal

    de choros de muita dor;

    porque os costados

    do Messias divinal,

    santo sem mal,

    foram, polo vosso amor

    açoutados.

 

Esta iguaria em que aqui se fala são os Açoutes; e em este passo os tiram dos bacios, e os presentam à Alma, e todos de joelhos adoram, cantando: «Ave, flagellum»; e despois diz:

 

JERÓNIMO    Estoutro manjar segundo

    é iguaria,

    que haveis de mastigar

    em contemplar

    a dor que o Senhor do mundo

    padecia,

    pera vos remediar

    Foi um tormento improviso,

    que aos miolos lhe chegou:

    e consentiu,

    por remediar o siso,

    que a vosso siso faltou;

    e pera ganhardes paraíso,

    a sofriu.

 

Esta iguaria segunda, de que aqui se fala, é a Coroa de Espinhos; e em este passo a tiram dos bacios e, de joelhos, os Santos Doutores  cantam:  «Ave, corona spinarum». E, acabando, diz a Madre Igreja:

 

IGREJA    Venha outra do teor

JERÓNIMO    Est'outro manjar terceiro

    foi guisado

    em três lugares de dor

    a qual maior

    com a lenha do madeiro

    mais prezado.

    Come-se com gram tristura,

    porque a Virgem gloriosa

    o viu guisar:

    viu cravar com gram crueza

    a sua riqueza,

    e sua perla preciosa

    viu furar.

 

E a este passo tira Santo Agostinho os Cravos, e todos de joelhos os adoram cantando: «Dulce lignum, dulcis clavus». E acabada a adoração diz o Anjo à Alma:

 

 Anjo  Leixai ora esses arreios,

    que est'outra não se come assi

    como cuidais.

    Pera as almas são mui feios,

    e são meios

    com que não andam em si

    os mortais.

 

Despe a Alma o vestido e jóias que lh'o imigo deu, e diz Agostinho:

 

AGOSTINHO    Ó Alma bem aconselhada,

    que dais o seu a cujo é:

    o da terra à terra!

    Agora ireis despejada

    pola estrada,

    porque vencestes com fé

    forte guerra.

 

IGREJA    Venha ess'outra iguaria.

JERÓNIMO   A quarta iguaria é tal,

    tão esmerada,

    de tão infinda valia

    e contia,

    que na mente divinal

    foi guisada,

    por mistério preparada

    no sacrário virginal.

    mui coberta,

    da divindade cercada

    e consagrada,

    despois ao Padre Eternal

    dada em oferta.

 

Apresenta S. Jerónimo à Alma um Crucifixo, que tira d'antre os pratos; e os Doutores o adoram, cantando «Domine Jesu Christe». E, acabando, diz:

 

ALMA  Com que forças, com que spírito,

    te darei, triste, louvores,

    que sou nada,

    vendo-Te, Deus Infinito,

    tão aflito,

    padecendo Tu as dores,

    e eu culpada?

    Como estás tão quebrantado,

    Filho de Deos imortal!

    Quem Te matou?

    Senhor, per cujo mandado

    és justiçado,

    sendo Deus universal,

    que nos criou?

 

AGOSTINHO   A fruita deste jantar

    que neste altar vos foi dado

    com amor

    iremos todos buscar

    ao pomar

    adonde está sepultado

    o Redentor.

 

E todos com a Alma, cantando «Te Deum laudamus»; foram adorar o moimento.

 

LAUS DEO

Fonte: www.bibvirt.futuro.usp.br