Auto Chamado de Filodemo - Fragmento

Entram as figuras seguintes: Filodemo, Vilardo, seu moço, Dionisa, Solina, sua moça, Venadoro, monteiro, um pastor Doriano. amigo de Filodemo, um Bobo, filho do pastor, Florimena, pastora, Dom Lusidardo, pai de Venadoro, três Pastores bailando, Doloroso, amigo de Vilardo

Argumento do Auto

Um fidalgo português, que a caso andava nos Reinos de Dinamarca, como por largos amores e maiores serviços tivesse alcançado o amor de üa filha del Rei, foi lhe necessário fugir com ela em üa galé, por quanto havia dias que a tinha prenhe; e de feito, sendo chegados à costa de Espanha, onde ele era Senhor de grande património, armou-se-lhe grande tromenta, que, sem nenhum remédio dando a galé à costa, se perderam todos miseravelmente, senão a Princesa, que em üa tábua foi à praia; a qual, como chegasse o tempo de seu parto, junto de üa fonte pariu duas crianças, macho e fêmea; e não tardou muito que um pastor castelhano, que naquelas partes morava, ouvindo os tenros gritos dos meninos, Ihe acudiu a tempo que a mãe já tinha espirado. Crecidas, enfim, as crianças debaixo da humanidade e criação daquele Pastor, o macho, que Filodemo se chamou à vontade de quem os bautizara, levado da natural inclinação, deixando o campo, se foi pera a Cidade, aonde por músico e discreto valeu muito em casa de Dom Lusidardo, irmão de seu Pai, a quem muitos anos serviu sem saber o parentesco que entre ambos havia. E como de seu Pai não tivesse herdado mais que os altos espritos, namorou se de Dionisa, filha de seu Senhor e Tio, que, incitada ao que por suas obras e boas partes merecia, ou porque elas nada enjeitam, Ihe não queria mal. Aconteceu mais que Venadoro, filho de Dom Lusidardo, mancebo fragueiro e muito dado ao exercício da caça, andando um dia no campo após um cervo, se perdeu dos seus; e indo dar em üa fonte, onde estava Florimena, irmã de Filodemo, que assim Ihe puseram o nome, enchendo üa talha de água, se perdeu de amores por ela, que se não soube dar a conselho, nem partir se donde ela estava, até que seu Pai o não foi buscar. O qual, informado pelo pastor que a criara (que era homem sábio na arte mágica) de como a achara e como a criara, não teve por mal de casar a Filodemo com Dionisa, sua filha, e prima de Filodemo, e a Venadoro, seu filho, com Florimena, sua sobrinha, irmã de Filodemo, pastor, e também pela muita renda que tinha que de seu Pai ficara, de que eles eram verdadeiros herdeiros. E das mais particularidades da Comédia, fará menção o Auto, que é, o seguinte:

Entra logo Filodemo e um seu moço Vilardo

Filodemo:

Vilardo, Moço:

Ei lo vai.

Filodemo:

Falai eramá, falai,
e sai cá pera a sala.
O vilão como se cala!

Moço:

Pois, Senhor, saio a meu pai,
que quando dorme não fala.

Filodemo:

Trazei cá üa cadeira.
Ouvis, vilão?

Moço:

Senhor, sim.

Se m'ela não traz a mim,
vejo lh'eu
ruim maneira.

Filodemo:

Acabai, vilão ruim.
Que moço pera servir
quem tem as tristezas minhas!
Quem pudesse assi dormir!

Moço:

Senhor, nestas menhãzinhas
não há i senão cair:
por demais é trabalhar,
qu'este sono se me ausente.

Filodemo:

Porquê?

Moço:

Porque há de assentar
que se não for com pão quente,
não há de desaferrar.

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