A Poesia de Mário de Andrade: Pé Dentro, Pé Fora

Autor: Amador Ribeiro Neto

A poesia de Mário de Andrade é importante mas muito desigual. Importante na multiplicidade técnica e na variedade temática, espelhando nosso país histórica, estética e socialmente. Desigual porque a qualidade estética de seus livros oscila de um poema para o outro, ao longo de toda a sua produção poética.
Comumente marcado por um subjetivismo que várias vezes escorrega para o mero romântico, Mário de Andrade deixa passar-lhe pelos vãos dos dedos a contundência que caracteriza a grande poesia. À exceção de alguns poemas, ou parte de outros, não conseguiu manter o vigor poético de um Cabral, de um Augusto de Campos, ou mesmo de um certo Drummond. Sem dúvida ficou aquém destes. Mas é dono de uma obra tão variada e instigante que ainda hoje é uma pedra no sapato/no caminho dos estudiosos de literatura.
Sua narrativa, p. ex., contém obras primas da nossa literatura como Macunaíma (1928) e Contos Novos (1946). Isso, sem falar de profundos mergulhos no campo da cultura popular, legando-nos obras indispensáveis nas áreas de música, dança, etc. E aí não cabe compará-lo a Cabral, Augusto ou Drummond. Nenhum dos três produziu, p. ex., uma obra tão ricamente diversificada quanto ele.
Por isso, ouvintes, perdão, leitores, por isso leitores, apaguemos a comparação. Todo eu estou comparativo. Ainda há pouco, falando do caráter desigual de sua poesia, cheguei a escrever: chinfrim. Risquei chinfrim. Risquemos a comparação. Digamos somente um poeta desigual. E vamos à poesia de Mário. Sem comparações, abramos nova página. (Nova, não! A primeira. Afinal, estamos iniciando). Vamos lá.
Caramba, amiga! Relendo a poesia de Mário, me dei conta de como ele é um poeta irregular. E até chato em vários momentos. Tem uma coisa nele de querer ditar A poesia. Pior: ditar a consciência nacional pra deus e o mundo. Ele se impôs um compromisso, se cobriu de umas tantas intencionalidades e quer espremer a poesia dentro deste projeto. Coisa de maluco!
Há tempos não ia à poesia de Mário com tempo e fôlego. Há meses meti-me com as Poesias Completas e andei relendo-as em plena Sampa. Sampa e Mário: isso dá samba. E acaba em pizza. Qual o quê. Só se for com a confusão daquela música do Adoniran: "era só pizza que avoava / junto com as brajola".
(Desabafo, em carta a uma amiga, à época da redação deste texto).
Se entendermos que a modernidade se caracteriza pelo descompasso entre a realidade e a sua representação; por uma consciência em crise e consciente desta crise da linguagem, como nos diz João Alexandre Barbosa, então Mário é moderno em vários momentos. Mas, neste autor de tantos talentos, a poesia oscila muito qualitativamente. Podemos dizer que o Mário poeta manteve uma relação pendular com a Estética, ora encharcando-a nos temas nacionais, ora atropelando-a nas técnicas vanguardistas importadas da Europa. Em sua poética, já nos lembra Álvaro Lins, o pensamento continuamente busca uma forma de expressar-se. Isso é moderno. Isso é próprio da poesia moderna. O ruim é que quase não deu certo com o Mário.
Os livros engajados (O Carro da Miséria, Lira Paulistana, Café, p. ex.) sacrificam a forma poética em benefício de uma imposição ideológica: a consciência explícita de um eu problemático que se insere no mundo conflitante das lutas de classe. Os poemas líricos, quando não caem num subjetivismo romântico constrangedor, ou num rebuscamento técnico e terminológico, acabam compondo o que há de melhor em sua poesia. Neles, um franco sensualismo invade os vocábulos e as estruturas dos poemas gerando uma dicção leve, graciosa, sedutora. Nestes momentos, uma musicalidade muito particular, que nasce e se desenvolve dentro de admirável coloquialismo e grande contundência, confere aos poemas líricos o tom harmonioso das obras bem feitas.
Mas quando um sentimento de brasileirismo forçado e de gosto duvidoso resvala para o pitoresco pelo pitoresco, cobrindo os poemas de rebuscamentos e preciosismos verbais, fica claro que o Mário quer vestir uma roupa nova para parecer moderno. Nós, leitores, percebemos que tal roupa não lhe cai bem e, à semelhança da Candinha, naquela velha canção, somos obrigados a falar mal do modelo do seu terno.
afinco do compromisso de Mário com o modernismo acaba se convertendo muitas vezes num empecilho à sua poética. Ele não flui. Alguma coisa fica fora da ordem. Fica o Eu lírico gravitando ao redor da linguagem - como se faz com um OVNI sobre o qual se discorre sem, no entanto, ter-se entrado nele. Esse Eu lírico lunático intercepta o poema e deixa os versos expostos em fragmentos temáticos e técnicos não resolvidos. resultado: a forma do poema resulta disforme e desinformante.
No entanto, os olhos deste Eu lírico nunca ficam looking for flying saucers in the sky. Atento ao cotidiano, atento a si mesmo, quando se insere no mundo e em si, canta e grita as necessidades - suas e do Brasil. O país, inicialmente retratado como novo, sensual, convidativo, transmuda-se, nos últimos livros em um país duro, marcado por opressões e recoberto pela miséria advinda da concentração do capital nas mãos de uma minoria. O mundo interior, inicialmente tinto pelas cores do entusiasmo, ao final já se mostra desbotado pelas experiências frustradas. Em ambas as fases temos uma obra poética irregular mas inquietante.
Não pretendo obrigar ninguém a seguir-me.
Costumo andar sozinho.
À primeira vista, parecem versos caetânicos. Mas são de Mário. E estão em um dos seus livros mais problemáticos: Paulicéia Desvairada, de 1922. Um livro onde as técnicas mais avançadas da vanguarda convivem com um certo tom parnasiano da linguagem. Ou com um enfoque romântico. P. ex., em Ode Ao Burguês, Mário opõe a "fraca alternativa" da "visão bucólica da vida dos nossos setembros".
Se os versos citados de Mário lembram outros de Caetano,
Vejo uma trilha clara pro meu Brasil apesar da dor
Vertigem visionária que não carece de seguidor fica difícil dizer que os dois andam pelas mesmas trilhas. Ao optar pelo verbo obrigar (ainda que na forma negativa), o Eu lírico se impõe uma certa disciplina - até militarista, ousaria dizer.
O verbo pretender, auxiliar de obrigar, não esconde matizes semânticos de imposição: não pretende obrigar, mas... Desta forma o Eu lírico não parece convicto da necessária displicência para o fluir poético. Ia só, sim, mas ia duro, num cortado tacanho e até ufanista.
É bem diferente da luminosidade que estampa-se pelos dois versos de Caetano: trilha clara, vertigem visionária. Não há certezas aqui, mas uma clarividência que "não carece de seguidor", quer seja: ela se basta. O Eu lírico está completo em si, sem conflitos. E em outra canção vemos que tal serenidade nasce de uma fala de todo o corpo deste Eu. Diz ele:
É só um jeito de corpo
Não precisa ninguém me acompanhar
Nos versos de Mário, ao contrário, quem fala é uma consciência imbuída de um programa previamente traçado: o seu "Projeto Brasil".
Felizmente este Mário pesadão da Paulicéia Desvairada descontrai-se ao longo de sua produção. Já no livro seguinte, o Losango Cáqui, no poema 37 diz:
Te goso!...
E bem humanamente, rapazmente.
Mas agora esta insistência em fazer versos sobre ti...
A consciência de linguagem, distensionada, permite afluir a metalinguagem num lirismo cadenciado e pipocado de fino humor.
Mesmo sabendo que, na equação dos Andrades, Caetano é mais Oswald, não há dúvidas de que Mário sabe ser odara. Num ritmo envolvente e num coloquialismo conseqüente, que resgata a oralidade da fala sem tirar-lhe a poeticidade, Mário metemorfoseia um militar em malandro-tropical e este no símbolo do Brasil para caetanear a todos nós em
* Este é um fragmento do texto da palestra apresentada na UFPB (Universidade Federal da Paraíba - campus de João Pessoa) e na UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, campus de Natal), em outubro de 1993, por ocasião das comemorações do centenário de nascimento de Mário de Andrade. Permanece inédito até a presente data.
** Amador Ribeiro Neto é Professor de Teoria da Literatura da UFPB, doutorando em Semiótica na PUC-SP, onde prepara tese sobre poesia e música popular.
Fonte: www.revista.agulha.nom.br