Universo paralelo

Assim começam muitas cronologias e biografias: "Aos 18 de abril de 1882 nasce em Taubaté, demonstrando desde muito cedo grande interesse pela escrita, pintura e desenho...Ao completar 18 anos, ingressa na Faculdade de Direito...". Muito chato, não é mesmo? Algumas, porém, não deveriam jamais merecer tal maçante destino. Muito menos a do homem do porviroscópio, aquele que antecipava o porvir, ou a do verdadeiro "furacão na Botocúndia", o escritor que revolucionou a literatura infantil, mandou às favas os rapapés ortográficos de sua época e impulsionou o processo de edição e venda de livros no Brasil. Você já sabe que se trata de Monteiro Lobato. Mas faz de conta que, bem a calhar, estamos no mundo do faz-de-conta e ainda não caiu a ficha, certo? Então, vamos lá: prove um pouco do pó de pirlimpimpim.
Primeira dica: ele não era o Peter Pan, embora pudesse ter vestido a carapuça do menino fantástico e destemido. Mas, longe da Terra do Nunca, depois do tuim tradicional causado pelo pó, vamos pisar mesmo é no ano de 1919, bem na esquina da Rua Boa Vista com a Ladeira Porto Geral, no centro de São Paulo. Ali funciona a Revista do Brasil. Está em sua 47ª edição. Seu proprietário esmera-se em produzir o editorial.
"Há por aí inúmeros artistas populares, abafados, asfixiados pela indiferença ambiente, sem meios de alcançar a publicidade (...) a Revista abre-se a todos eles..." O convite, democrático, é mais uma das muitas empreitadas de José Bento Monteiro Lobato, o primeiro brasileiro a compreender que crianças são seres pensantes e inteligentes e, talvez tarde demais, a compreender também que o progresso de seu país nunca esteve nas mãos de gente do mesmo naipe.
O Monteiro Lobato do Sítio do Picapau Amarelo não é novidade para quase ninguém, nem seu mérito questionável. "À minha filha e a todos os meninos e meninas de sua idade, cujos pais estavam em condições de comprar um livro, Lobato deu uma infância maravilhosa, que minha geração não conhecera, na falta de boas histórias nacionais para crianças", atestou o mineiro Carlos Drummond de Andrade. O poeta de Itabira, porém, não deixou de acrescentar que, no entanto, "a lição maior de Lobato é sua própria e tumultuosa riqueza humana".
Reformar o mundo. Toda história de Lobato é caracterizada por esse tumulto, que se empolga e vai adiante em projetos e Ideias e não hesita em reconhecer erros - por exemplo, percebe em seu mea culpa pelo ataque aos caipiras, os jecas tatus do Brasil, que a origem do matuto passava também pela questão social. Ainda estudante ele fundou com seus amigos, na efervescente virada para o Século da Luz, o Cenáculo, Minarete ou Tarascon - muitos nomes para um grupo com um só objetivo: "Reformar o mundo, modificar as leis do universo. Uma nova arte ia surgir, uma ciência e uma filosofia inéditas".
Esse desejo de mudança, de contribuir para que ela ocorresse - e que a boneca Emília tirou de letra depois de regular bem a famosa torneirinha de asneiras -, Monteiro Lobato perseguiu durante toda a sua vida, em algumas vezes com olhos de visionário, noutras, de profeta, mas sempre com os pés bem firmados na realidade brasileira. E fica evidente quando ele se lança na aventura de editor: "Os nossos editores imprimem seiscentos exemplares de um Machado de Assis, de um Euclides da Cunha (...) enfiam-no nas prateleiras de duas ou três livrarias do Rio e daqui de São Paulo, e ficam pitando, à espera de que o morador de Pernambuco, da Bahia (...) etc. tome um navio e viaje uma semana, só pelo incoercível desejo de vir aqui comprá-los".
Ou quando, em plena era Vargas, já preso, desafia o regime ditatorial e os responsáveis pela política que privava o país de buscar riquezas como o petróleo e impulsionar a indústria siderúrgica. "Passei nessa prisão, General, dias inolvidáveis, dos quais sempre me lembrarei com a maior saudade. Tive ensejo de observar que a maioria dos detentos é gente de alma muito mais limpa e nobre do que muita gente de alto bordo que anda solta", diz ele, em carta endereçada ao general Horta Barbosa no ano de 1941. A passagem de Lobato pelas mãos do Deops é um dos episódios brilhantemente registrados no livro Furacão na Botocúndia, pesquisa de Carmen Lucia de Azevedo, Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta (Editora Senac, edição compacta, 2000).
"Monteiro Lobato foi um homem muito especial. Tinha grande esperança no Brasil, era um patriota no bom sentido, sem extremismos. Foi um pioneiro, um desbravador, e não apenas na literatura infantil. Sua obra para adultos também é de grande importância, mas o destaque ao escrever para crianças foi tão grande que acabou por ofuscá-la", aponta a crítica e escritora de livros infantis Tatiana Belinky, 82 anos. Tatiana adaptou e dirigiu com o marido Júlio de Gouveia a primeira versão do Sítio para teleteatro na TV Tupi durante a década de 50. Ela classifica a literatura para crianças como a.M.L e d.M.L. (antes e depois de Monteiro). "Antes dele, os livros para crianças eram pobres, importados de Portugal, muito antiquados e moralistas. Não propunham qualquer discussão. Monteiro Lobato descobriu que criança é gente, e gente inteligente e sensível", afirma a autora, que acaba de lançar Ogro, obra que faz considerações sobre o apagão para a garotada.
Prestes e Ford. Voltando à aterrissagem com o pó de pirlimpimpim, foi um outro racionamento de energia elétrica, em 1924, que levou à falência a Cia-Gráfico Editora Monteiro Lobato, empresa criada em conseqüência do sucesso da Revista do Brasil e da edição de livros nos moldes lobatianos de publicidade. Ele, é claro, foi em frente. Velho "sapo de redação", colaborador em vários jornais - chegou a lançar uma campanha para determinar as características do Saci, divulgada no Estadinho e que depois resultou em seu primeiro livro -, Monteiro Lobato seria ainda proprietário da Cia Editora Nacional e adido comercial nos EUA, nomeado pelo presidente Washington Luís. No estrangeiro, começa a estudar o desenvolvimento da indústria e o uso do petróleo e do ferro, estabelecendo contatos para acordos com o Brasil. Empolgado, tenta efetivá-los, mas é brecado com a ascensão do Estado Novo.
Seu descompromisso com nada que não fosse o próprio pensamento - "temos que ser nós mesmos, apurar nossos Eus (...) sob o risco de não sermos coisa nenhuma" - levou-o a admirar homens como Luiz Carlos Prestes e Henry Ford, que, se hoje parecem sinceramente antagônicos, não o eram quando um falava em trabalho para todos e o outro no trabalho como fonte de desenvolvimento para os seres humanos.
"Eis um nome que, entre nós, enche a primeira metade deste século. (É)..o exemplo magnífico e raro do intelectual que não se vende e não se aluga, não se coloca a serviço dos poderosos ou dos sabidos", declarou sobre o escritor o modernista Osvald de Andrade, embora, para muitos contemporâneos e críticos da atualidade, tenha sido justamente Lobato o precursor do Modernismo, mesmo em meio às muitas rusgas com o grupo de 1922.
Moderno ou não, no romance O Choque (Companhia Editora Nacional, 1926) Lobato surpreende ao antecipar em anos a chegada da televisão e, pasme, o processo que denomina de "rádio-transporte", imaginando o mundo informatizado das redes por computador, fibras ópticas e infovias da virada para o ano 2000. O que leva a crer que, embora não lhe tenha chegado o tempo para vislumbrar essas últimas maravilhas - morreu em 1948 -, aprovaria uma dona Benta internauta e um sítio equipado com comodidades como um forno de microondas, caso da recente adaptação da TV que, sem faz-de-conta, tem seduzido novas gerações e transportado para o Picapau Amarelo milhares de pequenos telespectadores. "Ainda acabo fazendo livros onde nossas crianças possam morar. Não ler e jogar fora; sim morar, como morei no Robinson e n'Os filhos do Capitão Grant", escreveu ao amigo Godofredo Rangel, com quem se correspondeu por mais de quarenta anos. Acabou criando um verdadeiro universo, de portas sempre abertas para a garotada. Nele - quem duvida? - vive certamente o libertário Lobato.
Impasse nos livros, festa nas prateleiras
Impulsionada pela nova versão na TV, obra inspira de brinquedos a CD Roms; disputa de herdeiros com editora já dura três anos
A editora Brasiliense e os herdeiros da família de Monteiro Lobato travam desde 1998 uma disputa judicial que ainda parece distante de um desfecho. Segundo o representante da família, Jorge Kornbluh, a maioria dos processos em curso têm por objetivo a rescisão do contrato de edição que Monteiro Lobato assinou com a editora e dos respectivos termos aditivos. No site da Brasiliense há informações sobre o assunto com a versão da empresa, em ícone sugestivamente intitulado Brasiliense x Herdeiros.
De acordo com Kornbluh, casado com a neta do escritor, Joyce, são várias as questões que motivaram os processos. As acusações dos herdeiros incluem a não manutenção do estoque mínimo contratual de duzentas coleções, falta de pagamento dos direitos autorais e desmembramento de obra sem autorização, negados pela empresa. Mas, entre as causas do descontentamento, está também o fato de que "desde o início da década de 70 as características dos livros de Lobato (ilustrações, paginação e diagramação) não foram modificadas pela Brasiliense", embora isso tivesse sido insistentemente solicitado. "A maioria das ilustrações ainda é em preto e branco, sendo impossível comprar a obra de Monteiro Lobato em formato de coleção", destaca.
Segundo a divulgação da Brasiliense em seu site, as principais ações movidas pelos herdeiros foram julgadas improcedentes. "Mas a editora se esquece de explicar que isso ocorreu em primeira instância em dois dos processos, e que o trânsito em julgado de um processo somente se materializa na terceira instância", rebate o representante da família Lobato. Os resultados negativos em primeira instância provocaram a substituição dos advogados dos herdeiros.
Longe da livraria, porém, a obra de Lobato vive novo período de florescimento, impulsionado pela exibição do Sítio. Após contrato firmado entre a Globo Marcas, empresa licenciadora, e a família Lobato, cerca de 250 produtos já foram licenciados em torno da marca Sítio do Picapau Amarelo. De acordo com comunicado da Globo, metade desses produtos é brinquedo. O restante vai de material escolar a CDs para computador, e parte ainda está por ser lançada. "O escritor foi um grande novidadeiro. Para quem conhece sua obra ou conviveu com ele durante dezoito anos, como minha esposa, não há a menor dúvida de que Monteiro Lobato apreciaria tais 'modernidades'", afirma Kornbluh, quando questionado sobre a atual versão televisiva do Sítio, que inclui até internet.
O diretor da ML Licenciamentos, que se apaixonou pela obra do avô muito antes de se encantar com a neta, conta que a filha do casal aprendeu a falar e foi alfabetizada ao som de histórias do bisavô. "A característica de Lobato que mais admiro é a sua profunda honestidade, inclusive a honestidade intelectual", aponta.
Fonte: lobato.globo.com