O ateneu – Crônica de saudades - Estudo sobre o livro

O livro é um livro de memórias, ou seja, o tempo da ação é anterior ao tempo da narração, algo já ocorrido anteriormente. O personagem protagornista, Sérgio, agora adulto, narra como fora seu tempo de aluno interno no antigo educandário, denominado Ateneu; a narrativa é feita em primeira pessoa e Sérgio é o personagem-narrador, o que permite ao autor entrar no complexo mundo das revelações que só se fazem à consciência. E mais ainda: O Ateneu é um romance autobiográfico; a fronteira entre a ficção e a realidade é muito frágil. As identidades são claras: Sério é Raul Pompéia; o Dr. Aristarco Argolo de Ramos, Visconde de Ramos, do Norte, é na realidade o Dr. Abílio César Borges, Barão de Macaúbas, do Norte; o Ateneu é o Colégio Abílio; Sérgio, assim como Raul Pompéia, entra no colégio com 11 anos de idade.
O Ateneu é uma obra que permite duas leituras: uma no campo individual, fruto da vivência de Sérgio/Raul Pompéia como interno no Ateneu/Colégio Abílio, que representa, segundo Mário de Andrade, a “vingança” do autor contra a estrutura do internato; outra, no campo político-social, ampliando o universo, sendo o Ateneu a própria representação da Monarquia decadente, e Aristarco, do governo. Ambas as leituras, no entanto, não podem ser feitas isoladamente; ao contrário, elas se interpenetram e se complementam.
Ao se considerar o Ateneu como o Colégio Abílio, percebe-se a crítica de Raul Pompéia a toda a estrutura velha e viciada, um mundo fechado – um microcosmo – moldador dos meninos que lá estudam e deformador de suas personalidades. O romance se inicia com a significativa frase do pai:
“Vais encontrar o mundo”, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. “Coragem para a luta!”
O menino indefeso e despreparado vai enfrentá-lo, sentindo o choque provocado pelo confronto da educação familiar (descrita como “estufa de carinho”) com a vida no Ateneu. Arrancados do contato com os pais e da sua proteção, os meninos sentem a necessidade de substituí-los. Mas por quem? No Ateneu o único que poderia fazer as vezes de pai é Aristarco; no entanto, o diretor não tem essa preocupação – além de egocêntrico, ele não é um pedagogo, mas um comerciante:
Ateneu era o grande colégio da época. Afamado por um sistema de nutrido reclame, mantido por um diretor que de tempos a tempos reformava o estabelecimento, pintando-o jeitosamente de novidade, como os negociantes que liquidam para recomeçar com artigos da última remessa.
Ou ainda: Sua diplomacia dividia-se por escaninhos numerados, segundo a categoria de recepção que queria dispensar. Ele tinha maneiras de todos os graus, segundo a condição social da pessoa. As simpatias verdadeiras eram raras. No âmago de cada sorriso morava-lhe um segredo de frieza que se percebia bem. E duramente se marcavam distinções políticas, distinções financeiras, distinções baseadas na crônica escolar do discípulo, baseadas na razão discreta das notas do guarda-livros. Às vezes uma criança sentia a alfinetada no jeito da mão a beijar. Saía indagando consigo o motivo daquilo, que não achava em suas contas escolares... O pai estava dois trimestres atrasado.
Embora afirmasse demagogicamente: O meu colégio é apenas maior que o lar doméstico.
Os meninos sentem necessidade de substituir a mãe. Mas por quem? No Ateneu a única mulher é Ema, esposa de Aristarco. E nela os meninos vêem a mãe, mas também a mulher, o sexo. Aliás, o seu nome é um grande achado de Raul Pompéia: repare que Ema é anagrama de mãe e do imperativo afirmativo ame.
Sérgio encontrou o mundo no microcosmo do Ateneu, como lhe dissera o pai. Um mundo com regras e leis próprias: o normal, no Ateneu, é ser frustrado, complexado, homossexual. Se os meninos vivessem eternamente naquele mundo, não teriam consciência de seus problemas. Mas um dia abandonam o colégio e sentem o choque com o macrocosmo, o grande mundo, e aí percebem o mundo sórdido, degradante, que é o regime de internato. Raul Pompéia, depois do Colégio Abílio, estudou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco: da sociedade mais fechada à sociedade mais aberta da época.
Para os internos só há uma solução: a eternidade do Ateneu, nunca abandonar aquele mundo e suas “normalidades”. No entanto, ao final do livro, Raul Pompéia destrói o Ateneu: um dos meninos, Américo, provoca um incêndio; é a “vingança” de Raul Pompéia, é a destruição daquele mundo e de seu criador, Aristarco. O romancista não perdoa o diretor nem no aspecto humano: Ema o abandona (‘desapareceu igualmente durante o incêndio a senhora do diretor’).
Podemos também fazer uma segunda leitura, entendendo o Ateneu e sua moral falida coo a própria Monarquia decadente. É evidente a postura republicana de Raul Pompéia, aliás com toques irônicos: Aristarco convidava a princesa regente para as festividades do Ateneu e, numa dessas festividades, houve um incidente provocado exatamente pelo filho do diretor.

O ATENEU
Capítulo I (fragmento)

“Vais encontrar o mundo”, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. “Coragem para a luta!”
Bastante experimentei depois a verdade desse aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico, diferente do que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos cuidados maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima rigoroso. Lembamo-nos, entretanto, com saudade hipócrita, dos felizes tempos; como se a mesma incerteza de hoje, sob outro aspecto,nãonos houvesse perseguido outrora e não viesse de longe a enfiada das decepções que nos ultrajam.
Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que nos alimentam a saudade dos dias que correram como melhores. Bem considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas. Feita a compensação dos desejos que variam, das aspirações que se transformam, alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma base fantástica de esperanças, a atualidade é uma. Sob a coloração cambiante das horas, um pouco de ouro mais pela manhã, um pouco mais de púrpura ao crepúsculo – a paisagem é a mesma de cada lado beirando a estrada da vida. Eu tinha onze anos.

A PROPÓSITO DO TEXTO
1. Como o narrador Raul Pompéia vê o amor materno? Como você encara a educação recebida pelo personagem?
2. (FUVEST – SP) Este início de romance traz uma atmosfera carregada de prenúncios de fatos que vão balizar a vida do personagem:
a) Qual ou quais os aspectos dominantes desses prenúncios?
b) O narrador está dentro dos acontecimentos e no mesmo tempo da narração? Explique.
3. (FUVEST – SP) Qual o componente, segundo o texto, que torna mais rudes os primeiros ensinamentos?
4. (FUVEST – SP) De acordo com o texto pode-se concluir que a “atualidade” não se modifica nunca, permanecendo a mesma em todas as épocas.
a) Mostre com o texto que a atualidade não se altera.
b) Que é que se altera então?
5. (FUVEST – SP) “... lembramo-nos, entretanto, com saudade hipócrita, dos felizes tempos...”
a) Qual o sentido de hipócrita?
b) O que leva o narrador a dizer que a saudade é hipócrita?
6. (UNICAMP – SP) No capítulo VII de O Ateneu, ao descrever a exposição de quadros dos alunos do colégio, o narrador assim se refere aos sentimentos de Aristarco:
“Não obstante, Aristarco sentia-se lisonjeado pela intenção. Parecia-lhe ter na face a cocegazinha sutil de creiom passando, brincando na ruga mole da pálpebra, dos pés-de-galinha, contornando a concha da orelha, calcando a comissura dos lábios, entrevista na franja pelas dobras oblíquas da pele do nariz, varejando a pituitária, extorquindo um espírito agradável e desopilante.”
a) Quais características de Aristarco estão sugeridas neste comentário do narrador?
b) Lendo esta descrição, você considera que o narrador compartilha dos mesmos sentimentos de Aristarco? Justifique.

Fonte: prof.saulo.vilabol.uol.com.br